Ao ambientar suas narrativas
no sertão nordestino, o cearense Pedro Salgueiro
enfrenta um grande desafio. Território fixado na
literatura brasileira, o sertão guarda uma identidade
galvanizada por mestres que foram do recorte naturalista
ao experimentalismo de linguagem, retratando ou
reinventando uma paisagem humana e social. O retorno ao
sertão como literatura estaria, portanto, fadado a
decalcar procedimentos narrativos, temáticos e de
vocabulários. Mas nada se repete quando se tem uma
vivência profunda da realidade ficcionalizada, por isso
o sertão vai continuar tendo infinitas possibilidades
para os dotados de sensibilidade artística aguçada.
Cada escritor cria o seu
sertão, único e intransferível, porque em arte o
conceito de superação é sempre restritivo. O sertão de
Pedro Salgueiro não guarda parentesco com os outros que
nossa literatura já revelou. O seu texto recusa
descrições e diálogos, concentrando-se na essencialidade
semântica do relato. Não vemos fotograficamente a
paisagem, mas ao mesmo tempo sentimos a presença
constante dela na linguagem – e aí está o grande
diferencial deste novo produto literário: a paisagem
sertaneja está mais nas palavras do que na ilusão
realista. Com um vocabulário e uma sensibilidade
enxutas, privilegiando mais os silêncios e o absurdo,
Pedro Salgueiro dá outra dimensão a este território,
recusando a idéia de documento para investir numa visão
de parábola, aberta a sentidos possíveis, sem o
fechamento das análises ou observações racionais. Sertão
para Pedro Salgueiro é mistério, sombra, mensagem
cifrada, experiência universal. Com isso, desfazem-se as
intenções regionalistas, pois o símbolo ultrapassa a
paisagem e a peripécia.
Sua linguagem não tem nada de
hermética, no entanto. Ela apenas não é regida pelo
princípio sociológico, atendendo a uma força centrífuga,
enquanto a regional tem um movimento centrípeto.
Sentimos a presença do homem nordestino nestas
histórias, mas ao mesmo tempo não o visualizamos em seus
trajes tradicionais. Com isso, temos fidelidade a um
espaço sem que haja submissão literária a ele.
Como as próprias epígrafes
deste Inimigos anunciam, estamos dentro de uma paisagem
bíblica. O sertão não tem um tempo. A única referência
temporal surge, em uma nota de rodapé, em “A passagem do
dragão”, mas não consegue retirar deste conto sobre a
comprovação da Lei da Relatividade o clima misterioso e
atemporal. Tudo nestes contos é instável: datas,
personagens, temáticas, identidades, lugares. Nada vem
afirmado com certeza, pois o sertão é um palco em que
acontecem coisas enigmáticas.
Se a atmosfera é bíblica,
conduzindo o leitor a uma sensação densa de tudo, há uma
linguagem narrativa extremamente moderna. Se fosse para
eleger um parentesco literário, poderíamos dizer que a
vila dos contos e a cidade móvel chamada Papaconha
(planta nordestina usada como vomitório) são
desdobramentos das urbes fictícias de Ítalo Calvino (As
cidades invisíveis), o que significa dizer que elas
guardam as mesmas latitudes imaginárias, funcionando
mais como metáforas do que como pontos em um mapa. Pedro
Salgueiro, assim como o grande mestre italiano ou como
este outro estrangeiro que foi Jorge Luis Borges, não se
filia à escola dos cartógrafos, pois sabe que o papel da
literatura passa muito longe da ilusão de fixar
ocorrências geográficas. Diz Calvino pela boca de Marco
Polo: “Viajando percebe-se que as diferenças
desaparecem: uma cidade vai se tornando parecida com
todas as cidades, os lugares alternam formas ordens
distâncias, uma poeira informe invade os continentes. O
seu Atlas mantém intactas as diferenças”. As viagens de
Inimigos se dão mais no tempo do que no espaço, e nunca
se sai destas ruínas circulares.
Por isso, os personagens
praticamente não ostentam nome, a vila em que se passa a
maior parte das histórias é definida de forma imprecisa
(“sovaco de terra em meio aos garranchos da mata”) e
Papaconha é um não-lugar, espécie de ilusão de ótica,
que ora é o paraíso perdido (como no conto
“Descoberta”), ora é um reino áspero (“Os loucos de
Papaconha”). Passamos de um relato a outro sentindo um
tênue fio narrativo entre as histórias, mas a soma total
delas não constitui uma unidade, sobram alguns fatos e
há negações ou duplicações de outros. Todas as histórias
são a mesma, mas cada uma é independente. As várias
cidades são apenas uma. Estas ambigüidades criam um
clima de estranhamento, que conduz o leitor por um texto
que fala sempre de um único tema – os inimigos –, mas
sem propor uma chave.
Assim como Papaconha é um
espaço de mobilidade, sem face definida, os contos
também se movimentam sem seguir um rumo, multiplicando
as tensões, sem intenção de resolvê-las. Apesar desta
imprecisão temporal, geográfica e narrativa, podemos
perceber no livro dois momentos distintos. Nas primeiras
histórias há um clima de suspense com relação à chegada
dos inimigos. A vila vive atormentada pela certeza –
dada à lógica bíblica do fatalismo – de que a qualquer
momento será invadida por aqueles que a destruirão. Um
elemento relevante é que ela se isolou totalmente do
mundo, desviando uma ferrovia, com o medo do inevitável
assalto. Todos existem em função dos inimigos, temendo
sua chegada, e o narrador de muitos contos sente-se um
guardião do horizonte, espreitando-o à procura dos
predadores. Apesar de sua constante e atormentada
vigília, os indesejados subitamente chegam e invadem
sorrateiramente a cidade. Enquanto se buscam os bárbaros
no distante, eles estavam ao lado. É no conto intitulado
justamente “Fronteira” que o invasor surpreende aqueles
que constroem barreiras protetoras: “Nem se deu conta de
que o adversário, zeloso de seus cuidados, se infiltrara
há muito em sua guarda... (Se não olhasse para tão longe
já o teria visto, de sorriso maroto, destampando as
panelas do fogão)”. Já está no cômodo mais íntimo,
integrado à vida doméstica. Daqui para frente,
efetiva-se a invasão, que desfaz a derradeira certeza
deste povo, a da possibilidade de eleger e combater um
inimigo. Depois de séculos de lenta aproximação, em que
a cidade dos salteadores vai se movendo rumo à outra, os
forasteiros se misturam aos autóctones, criando um
estado de tensão ainda maior, pois agora o país do
inimigo se confundiu com a terra natal, tudo virando um
único campo, em que não há mais divisão entre o eu e o
outro. É esta a verdade que o leitor encontra no fim do
livro.
Com a fusão dos espaços
sagrados e profanos, instala-se a pátria demente que é a
Papaconha, lugar-símbolo de uma idade apocalíptica,
tomada pela loucura que anarquiza a percepção do real. E
lembra Calvino: “A mentira não está no discurso, mas nas
coisas”.
As narrativas, assim com os
espaços, são marcadas pela descontinuidade, formando
fragmentos de uma história recuperada pelo Autor contra
o esquecimento e contra a ação dos inimigos. Com este
recurso de uma instância autoral com conhecimento
precário dos fatos, Pedro Salgueiro cria uma imagem
fragmentária do sertão, fazendo eco a um dos textos
recolhidos por Borges em O fazedor (1960) – “Do rigor da
ciência”. Dada à incapacidade e à inutilidade de
levantar o mapa de uma região, resta recolher as
“relíquias das Disciplinas Geográficas” e dar-lhes valor
de parábola.
MIGUEL SANCHES NETO nasceu no
Paraná. É romancista, contista, poeta e crítico
literário. Publicou Chove Sobre Minha Infância, Hóspede
Secreto e Amores Anarquistas, dentre outros.
PEDRO SALGUEIRO nasceu no
Ceará (Tamboril, 1964). Publicou os livros de contos O
Peso do Morto (1995), O Espantalho (1996), Brincar com
Armas (2000), Dos Valores do Inimigo (2005) e Inimigos
(2007), além de Fortaleza Voadora (2007), de crônicas.
Venceu o Prêmio de Contos da Biblioteca Nacional para
obras em curso, o Prêmio da União Latina/Concurso
Guimarães Rosa de Literatura, o Prêmio Ceará de
Literatura, dentre outros. Tem contos publicados nas
antologias: Geração 90: Manuscritos de Computador, Os
Cem Menores Contos Brasileiros do Século XX, Contos
Cruéis e Quartas Histórias. Edita, com Jorge Pieiro, a
revista Caos Portátil: Um Almanaque de Contos.