Riviere Briton, 1840-1920, UK, Una e o leão

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Blake, Death on a Pale Horse

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Miguel Afonso Sanches

 

 

 


 

 

Posfácio de

 

 

 

No país dos nossos inimigos

 

 

 

 

Ao ambientar suas narrativas no sertão nordestino, o cearense Pedro Salgueiro enfrenta um grande desafio. Território fixado na literatura brasileira, o sertão guarda uma identidade galvanizada por mestres que foram do recorte naturalista ao experimentalismo de linguagem, retratando ou reinventando uma paisagem humana e social. O retorno ao sertão como literatura estaria, portanto, fadado a decalcar procedimentos narrativos, temáticos e de vocabulários. Mas nada se repete quando se tem uma vivência profunda da realidade ficcionalizada, por isso o sertão vai continuar tendo infinitas possibilidades para os dotados de sensibilidade artística aguçada.

Cada escritor cria o seu sertão, único e intransferível, porque em arte o conceito de superação é sempre restritivo. O sertão de Pedro Salgueiro não guarda parentesco com os outros que nossa literatura já revelou. O seu texto recusa descrições e diálogos, concentrando-se na essencialidade semântica do relato. Não vemos fotograficamente a paisagem, mas ao mesmo tempo sentimos a presença constante dela na linguagem – e aí está o grande diferencial deste novo produto literário: a paisagem sertaneja está mais nas palavras do que na ilusão realista. Com um vocabulário e uma sensibilidade enxutas, privilegiando mais os silêncios e o absurdo, Pedro Salgueiro dá outra dimensão a este território, recusando a idéia de documento para investir numa visão de parábola, aberta a sentidos possíveis, sem o fechamento das análises ou observações racionais. Sertão para Pedro Salgueiro é mistério, sombra, mensagem cifrada, experiência universal. Com isso, desfazem-se as intenções regionalistas, pois o símbolo ultrapassa a paisagem e a peripécia.

Sua linguagem não tem nada de hermética, no entanto. Ela apenas não é regida pelo princípio sociológico, atendendo a uma força centrífuga, enquanto a regional tem um movimento centrípeto. Sentimos a presença do homem nordestino nestas histórias, mas ao mesmo tempo não o visualizamos em seus trajes tradicionais. Com isso, temos fidelidade a um espaço sem que haja submissão literária a ele.

Como as próprias epígrafes deste Inimigos anunciam, estamos dentro de uma paisagem bíblica. O sertão não tem um tempo. A única referência temporal surge, em uma nota de rodapé, em “A passagem do dragão”, mas não consegue retirar deste conto sobre a comprovação da Lei da Relatividade o clima misterioso e atemporal. Tudo nestes contos é instável: datas, personagens, temáticas, identidades, lugares. Nada vem afirmado com certeza, pois o sertão é um palco em que acontecem coisas enigmáticas.

Se a atmosfera é bíblica, conduzindo o leitor a uma sensação densa de tudo, há uma linguagem narrativa extremamente moderna. Se fosse para eleger um parentesco literário, poderíamos dizer que a vila dos contos e a cidade móvel chamada Papaconha (planta nordestina usada como vomitório) são desdobramentos das urbes fictícias de Ítalo Calvino (As cidades invisíveis), o que significa dizer que elas guardam as mesmas latitudes imaginárias, funcionando mais como metáforas do que como pontos em um mapa. Pedro Salgueiro, assim como o grande mestre italiano ou como este outro estrangeiro que foi Jorge Luis Borges, não se filia à escola dos cartógrafos, pois sabe que o papel da literatura passa muito longe da ilusão de fixar ocorrências geográficas. Diz Calvino pela boca de Marco Polo: “Viajando percebe-se que as diferenças desaparecem: uma cidade vai se tornando parecida com todas as cidades, os lugares alternam formas ordens distâncias, uma poeira informe invade os continentes. O seu Atlas mantém intactas as diferenças”. As viagens de Inimigos se dão mais no tempo do que no espaço, e nunca se sai destas ruínas circulares.

Por isso, os personagens praticamente não ostentam nome, a vila em que se passa a maior parte das histórias é definida de forma imprecisa (“sovaco de terra em meio aos garranchos da mata”) e Papaconha é um não-lugar, espécie de ilusão de ótica, que ora é o paraíso perdido (como no conto “Descoberta”), ora é um reino áspero (“Os loucos de Papaconha”). Passamos de um relato a outro sentindo um tênue fio narrativo entre as histórias, mas a soma total delas não constitui uma unidade, sobram alguns fatos e há negações ou duplicações de outros. Todas as histórias são a mesma, mas cada uma é independente. As várias cidades são apenas uma. Estas ambigüidades criam um clima de estranhamento, que conduz o leitor por um texto que fala sempre de um único tema – os inimigos –, mas sem propor uma chave.

Assim como Papaconha é um espaço de mobilidade, sem face definida, os contos também se movimentam sem seguir um rumo, multiplicando as tensões, sem intenção de resolvê-las. Apesar desta imprecisão temporal, geográfica e narrativa, podemos perceber no livro dois momentos distintos. Nas primeiras histórias há um clima de suspense com relação à chegada dos inimigos. A vila vive atormentada pela certeza – dada à lógica bíblica do fatalismo – de que a qualquer momento será invadida por aqueles que a destruirão. Um elemento relevante é que ela se isolou totalmente do mundo, desviando uma ferrovia, com o medo do inevitável assalto. Todos existem em função dos inimigos, temendo sua chegada, e o narrador de muitos contos sente-se um guardião do horizonte, espreitando-o à procura dos predadores. Apesar de sua constante e atormentada vigília, os indesejados subitamente chegam e invadem sorrateiramente a cidade. Enquanto se buscam os bárbaros no distante, eles estavam ao lado. É no conto intitulado justamente “Fronteira” que o invasor surpreende aqueles que constroem barreiras protetoras: “Nem se deu conta de que o adversário, zeloso de seus cuidados, se infiltrara há muito em sua guarda... (Se não olhasse para tão longe já o teria visto, de sorriso maroto, destampando as panelas do fogão)”. Já está no cômodo mais íntimo, integrado à vida doméstica. Daqui para frente, efetiva-se a invasão, que desfaz a derradeira certeza deste povo, a da possibilidade de eleger e combater um inimigo. Depois de séculos de lenta aproximação, em que a cidade dos salteadores vai se movendo rumo à outra, os forasteiros se misturam aos autóctones, criando um estado de tensão ainda maior, pois agora o país do inimigo se confundiu com a terra natal, tudo virando um único campo, em que não há mais divisão entre o eu e o outro. É esta a verdade que o leitor encontra no fim do livro.

Com a fusão dos espaços sagrados e profanos, instala-se a pátria demente que é a Papaconha, lugar-símbolo de uma idade apocalíptica, tomada pela loucura que anarquiza a percepção do real. E lembra Calvino: “A mentira não está no discurso, mas nas coisas”.

As narrativas, assim com os espaços, são marcadas pela descontinuidade, formando fragmentos de uma história recuperada pelo Autor contra o esquecimento e contra a ação dos inimigos. Com este recurso de uma instância autoral com conhecimento precário dos fatos, Pedro Salgueiro cria uma imagem fragmentária do sertão, fazendo eco a um dos textos recolhidos por Borges em O fazedor (1960) – “Do rigor da ciência”. Dada à incapacidade e à inutilidade de levantar o mapa de uma região, resta recolher as “relíquias das Disciplinas Geográficas” e dar-lhes valor de parábola.

 


MIGUEL SANCHES NETO nasceu no Paraná. É romancista, contista, poeta e crítico literário. Publicou Chove Sobre Minha Infância, Hóspede Secreto e Amores Anarquistas, dentre outros.

 


PEDRO SALGUEIRO nasceu no Ceará (Tamboril, 1964). Publicou os livros de contos O Peso do Morto (1995), O Espantalho (1996), Brincar com Armas (2000), Dos Valores do Inimigo (2005) e Inimigos (2007), além de Fortaleza Voadora (2007), de crônicas. Venceu o Prêmio de Contos da Biblioteca Nacional para obras em curso, o Prêmio da União Latina/Concurso Guimarães Rosa de Literatura, o Prêmio Ceará de Literatura, dentre outros. Tem contos publicados nas antologias: Geração 90: Manuscritos de Computador, Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século XX, Contos Cruéis e Quartas Histórias. Edita, com Jorge Pieiro, a revista Caos Portátil: Um Almanaque de Contos.

                                    


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