Pois. O poeta “muito me apraz”
Tenho uma amiga do Recife que mora em Lisboa
“pra mais de cinco anos” – a jornalista Juliana Torres, que trabalhou
comigo ano passado na Assessoria de Comunicação do Festival Cineport
em Lagos, no Algarve. Juju é “frevo que freve”. Uma flor de menina
lisbo-pernambucã. Muito gracinha que só ela, com seu cheirim, sua pele
de canela: alegre e “frevente”, sagaz e muito da competente. A “Ninja da
Informática”, como Juju se dizia sempre que meu computador pirava, e eu
com ele me debatia. “Calma, Werneck: a Ninja vai entrar em ação e logo
tudo se resolve”. Batata. Perdão, macaxeira pura. Não fora ela e sem
dúvida as edições diárias do Cineport na Tela, o boletim eletrônico que
faziamos direto do Algarve, estariam ainda hoje lá perdidos, pois de
lá(gos) não teriam saído.
Muito que bem. Há coisa de um mês acionei Juju
para uma tarefa de “jornalismo investigativo”, eufemismo para que ela me
conseguisse em Lisboa o e-mail do poeta António Mega Ferreira, sobre cujo
livro “Roma” andei a comentar aqui na coluna. Dei uma pista: “o Méga é o
atual Diretor do CCB, o Centro Cultural de Belém, que fica aí perto de
onde tu moras, morou tu, ó Jujuju?”. Um dia depois, Juju mandou de lá,
no seu lisbopernambuquês: “ronaldiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiim!! Olha, a tua
Ninja conseguiu uma coisa... Sabes que aqui os doutores passam pela
triagem das secretárias... ehehe A secretária pessoal dele pediu para
que enviasses um e-mail para ela que ela encaminhava para ele...
Beijoooooooooooooo”.
Assim, graças à Juju (brigadim e “um cheirim”,
minha querida) consegui comunicar-me com António Mega e mandei-lhe algumas
colunas que escrevera, centradas em seu livro. Um dia, recebo um mais que
atencioso e-mail do poeta português: “Caro Ronaldo Werneck. Muito obrigado
pelas suas generosas palavras sobre o meu livro “Roma”. Mais ainda, as
abundantes referências que lhe faz em duas de suas interessantíssimas colunas.
O meu Amigo é o leitor com que todo o escritor sonha: atento, perspicaz e
solidário. Não admira, lendo as suas colunas, onde ombreiam sensibilidade e
gosto (palatal…) pela língua portuguesa. Quanto à minha poesia: tenho muito
gosto em enviar-lhe um exemplar de “O Tempo que nos cabe”, bem como de um
livro ensaístico-biográfico sobre Fernando Pessoa. Até já,
António Mega”.
Pois, como lá dizem em Lisboa: ponto. Pois.
Pois não é que caí na besteira de, ao agradecer “desde já” o envio dos
livros, emendar palração meio desairosa sobre o poeta de “Mensagem”? Um
só desassossego para quem sobre ele escrevera um livro que justo queria
me enviar. Pois. Não sei bem o porquê, cometi o desplante de dizer ao
Mega que não me apetecia o Pessoa. Poderia ter dito, pois, como outrora
me disse um amigo dermatologista, em plena consulta, eu prostado por
dores, vamos dizer, furunculares: “Ronaldo: você, como poeta, gosta do
Fernando Pessoa? Ele é um poeta que muito me apraz”. E o tumor a doer
mais e eu a pensar como bom rapaz: “poeta que me apraz?”. Nada disse,
fora um ou dois ais. Dito por não dito, muito me aprazeria, sim, dor não
ter mais. Poeta nenhum propriamente me “apraz”: há os de que gosto, os
que às vezes em paródia “declamo”, e os que na verdade amo. Mas, aprazer?
Pois. Olha que nenhum “me apraz”, como aprazer me aprazem os sorvetes da
“Sol e Neve”, aqui na praça Cataguás, ou aprazer me aprazeriam se de novo
e agora estivesse frente aos gelati italianos a que o Méga sutilmente se
refere ao dizer em seu email sobre minha “sensibilidade e gosto (palatal…)”.
Pois.
Pois, e lá mandei eu de imediato: “Caro António
Mega Ferreira, obrigado pelas palavras mais que gentis sobre minhas colunas.
Vou adorar receber os seus livros. Não só "O Tempo que nos cabe", como aquele
a respeito do Fernando Pessoa, sobre quem guardo em mim uma idiossincrasia,
quase diria um antigo vezo: acredito que por não ter lido direito o Pessoa;
como ele, idolatrado por aqui, sem duvida merece”. Puf! Envei o e-mail.
E parei pra pensar, ó pá! Como pude ser assim tão indelicado ao falar do
Pessoa a uma pessoa que sequer conhecia em pessoa. Não o faz assim a pessoa
que honra o nome de pessoa. Assim foi que rente como o rio (de minha aldeia)
corrente, mandei outro e-mail, não mais que de repente:
“Caro António Mega Ferreira, enviei há pouco
"Mensagem" (palavra certa) onde falo de minha "idiossincrasia", do meu
"vezo" por Fernando Pessoa. Parei para pensar. E pensei: puxa, estou sendo
extremamente indelicado com uma pessoa que exatamente está por me enviar o
livro que escreveu sobre Pessoa. Confesso que estou a me "curar" desse vezo
que me levou a dizer com adolescente empáfia e vida afora: "o Mário
(de Sá-Carneiro) escreveu pouquíssimos poemas, mas formalmente melhores
que os do Fernando". Ou ainda (citando Mallarmé): "um poema se faz com
palavras, não com idéias"... e o Pessoa tem muitas idéias, mas não as
palavras certas.
“Enfim, meu caro Mega, uma chuva de achados
inúteis pela qual o Pessoa, certamente, passa incólume com sua grandeza
e capa e guarda-chuvas, sem receber sequer um respingo. E justo agora,
quando à cabeceira de minha cama encontra-se a esperar leitura (acabo
de receber o exemplar) o livro "Fernando Pessoa: quando fui outro", uma
coletânea de poemas e textos de Pessoa selecionados pelo autor, o escritor
brasileiro Luiz Ruffato. Detalhe: meu amigo Ruffato, o próprio, é
quem escreve o texto de orelha de um de meus últimos livros de poemas.
Sim, acredito que quando ler o teu livro sobre Pessoa corro o sério
risco de me tornar, como muitos, um "fernandólatra". E acabar ocorrendo
comigo & Pessoa o que ocorreu tempos atrás comigo & Clarice Lispector.
Peço que leia, se houver tempo e paciência, a crônica "Clarice-Ela" que
envio em anexo. Como também, etc etc, as demais crônicas, as mais recentes
com relação ao breve tour europeu do ano passado. A saga continua: sequer
cheguei ainda a Paris. Et voilà! Abraços etc”.
Até agora, nada. O Mega não me retornou e eu
resolvi, como penitência, me embrenhar não no “Quando fui outro” do
Ruffato/Pessoa, mas nos Saramagos desta vida, a ver se o mago de Lanzarotte
me salvava desse qüiproquó internacional no ano em que matou Ricardo
Reis. Era 1937, é bem verdade, e lá se vão quarenta anos. Pois. O homem,
claro está, é o labirinto de si mesmo, Um homem rala-se, preocupa-se,
teme o pior, julga que o mundo lhe vai pedir contas e prova real, e o
mundo já lá vai adiante, a pensar noutros episódios, Se aqui o mar
acaba e a terra principia, Aos deuses peço só que me concedam o nada
lhes pedir, As pessoas na verdade são papagaios umas das outras, nem
há outro modo de aprendizagem, Porque esta deve ser a cidade do mundo
onde com maior abundância florescem os calos e as calosidades, os joanetes
e o olhos-de-perdiz, sem falar nas unhas encravadas, Desta maneira se
concluindo o poema, Não quieto nem inquieto meu ser calmo quer erguer
alto acima de onde os homens têm prazer ou dores, o mais que pelo meio
ficou obedecia à mesma conformidade, quase se dispensava, A dita é um
jugo e o ser feliz oprime porque é um certo estado. Prazer ou dores?
Ser feliz oprime? Muito me apraz, Mega, esse ser amargo. Pois.