Wilson Martins
Prosa & Verso, 18.6.2005
Veredas que se bifurcam
(I)
Estreando em 1967, Gabriel Nascente
pertence à constelação do que podemos denominar a “época
Drummond de Andrade” em nossa poesia, sistema solar que dele
recebia luz e calor (Inventário poético. Org. Vera Maria T.
Silva. Goiânia: Alternativa, 2005). Não se trata apenas de
influências propriamente ditas, aliás abundantes em todos os
seus livros, mas da atmosfera instituída pelo que essa forma
poética tem de provincial, se não provinciano e até
regionalista, ao lado do “socialismo” vago e humanitário, sem
chegar a ser a “voz da Revolução” como queria Antero de
Quental, e pela prática da dicção prosaica e coloquial,
incluindo-se nesse coloquialismo os palavrões que Drummond não
empregava jamais e que, de fato, contrariam a própria natureza
da poesia.
É verdade que o mestre nos aconselhava a
ser pornográficos “diante dos últimos acontecimentos”, mas não
passou do preceito ao exemplo, tendência por assim dizer
automática nos discípulos em busca de força expressiva.
Gabriel Nascente não os recusa, antes parece comprazer-se
neles em desafio à “burguesia”, besta negra dos
revolucionários de gabinete. Aqui, a resposta é a mesma que se
aplica à prosa de ficção: o palavrão necessário é
indispensável; o outro, não somente dispensável, é
artisticamente errado, sobretudo em matéria de poesia, cuja
idéia originária é a extrema idealização e finura elocutória.
Outra característica dessa linhagem, sem excluir
Carlos Drummond de Andrade (antes pelo contrário!), é a
transformação do poeta em objeto de sua própria poesia, fonte
privilegiada de inspiração e, mesmo, de limitação criadora. Ao
poeta romântico que exclamava “Sou um homem para quem o mundo
exterior existe”, os drummondianos de primeiro e segundo
escalão contrapõem na prática o homem para quem só o mundo
autobiográfico existe. Eis uma pequena antologia de Gabriel
Nascente: “Embarcado no chão desta barca/ vou remando a vida
neste rio de osso”. Ou então: “Eu, Gabriel Nascente, vim da
serragem (...). Sou de janeiro. Sou das ruas de chão/ do
Bairro Popular, cúpula dos gorgeios/ da minha infância”. O
poeta não se encara apenas como homem comum escrevendo “à
claridade das lâmpadas”, mas como misteriosa transfusão dos
grandes heróis míticos, como no “Edital à praça”: “Declaro a
quem interessar possa/ que vivo maritalmente com as palavras/
E que a poesia me faz refém/ do seu engenhoso afã de quimeras.
//Sou Quixote, queimando a sola no asfalto (...).” O estado de
poesia é nele espontâneo, talvez orgânico: “Eu faço poesia
como quem/ copula com as palavras”, ou “como quem engravida/
um cardume de estrelas”, ou “como quem/ dispara um jato de
amor” — porque as metáforas fisiológicas parecem-lhe
irresistíveis na caça às hipérboles eloqüentes, procuradas,
por contradição, nas regiões baixas do organismo. Claro, em
tudo isso o poeta é um condenado à grandeza: “Se tomarem de
mim/ a poesia/ pelo amor de Deus,/ me salvem // É parte vital/
do meu sangue”.
Nesse contexto solipsístico, o
pensamento político de Gabriel Nascente, como, aliás, o de
Carlos Drummond de Andrade, pertence ao socialismo humanitário
e sentimental, anátema para o que se convencionou chamar de
socialismo científico: “Aberto feito banco de praça,/ é homem,
negro, branco e mulato (...) Em tua tristeza umbilical/ de
haver nascido, és operário”. Ou, no poema sobre os varredores
de rua: “Irmão, que ofício é este/ que o faz gari de ruas?/ O
que bem guardado/ num país do coração/ é alvíssimo desejo/ de
impar o mundo!”. Tudo resumido na antevisão dos amanhãs que
cantam: “O mundo há de ser justo/ com as mocinhas de
pensionato ... com os serventes de pedreiros... com os
relojoeiros... com os alfaiates... com os operários do campo”,
etc., etc..
O poeta é, ao mesmo tempo, o tribuno do
povo e da Revolução com maiúscula: “Não faço proselitismo. Não
prometo./ Apenas levanto a minha voz/ com quem abre bandeiras
de esperança,/ no peito do povo”. Daí para o marxismo vulgar
de simples devaneio é um passo: “Os homens escondem suas
cabeças/ em cobertores de papelão miséria. // E a bordo dos
automóveis, os magnatas/ discutem a cotação do dólar,/ de
celulares/ em punho,/ charutos/ e ar refrigerado (...)”. A
caricatura do capitalista barrigudo, fumando imensos charutos
e esparramado no automóvel é obrigatória na literatura
panfletária que passa por pensamento político e anima as
conversas de bar, explodindo em indignações simplistas: “Um
dia farei um poema/ pedindo a Deus que me dê/ uma tonelada de
palha de aço,/ um tonel de água sanitária/ e trinta mil fardos
de papel/ higiênico,/ para uma faxina na/ consciência dos
homens. // Um dia, sim: eu farei/ o poema,/ antes que o mundo/
cuspa-me na cara”.
Essas modas de retórica passaram
pela poesia brasileira no tempo das utopias fáceis,
posteriormente superadas pelo interesse do Drummond de “Claro
enigma” mais do que pelo Drummond da “Rosa do povo”: chegou o
momento em que os “acontecimentos” começaram a entediar os
poetas sociais. Há um outro lado em Gabriel Nascente, o da
pátria, como no poema de mesmo título, ou a grandeza do Brasil
central e sua geografia: “Gosto de dizer o teu nome, Pátria,/
mesmo sabendo que tu vives atraiçoada, e teu povo é uma
ciranda de naufrágios. // Ó Pátria, sensual e bêbada, quero
morrer/ no cheiro de tuas florestas!”.
Ou, ainda, nas
belas evocações do poderoso rio Araguaia: “Este rio passa pelo
sertão/ como um bicho por uma estrada (...). O rio alaga seu
mistério, o rio ronca./ Este rio carrega o remorso dos
afluentes,/ segue o dorso das estradas, o rio”. Tema retomado
no poema “Araguaia, eu sou teu pranto”, em que a brasilidade
profunda reemerge na eloqüência dos grandes rios históricos.
Gabriel Nascente tem também a sua Itabira, poeta de província
lançado outrora na grande cidade: “Goiás agora é apenas/ a
cisma de um sonho./ Perdido na distância/ é lembrança pura/
como dor e sangue/ latejando na memória”. Ou como dizia o
parnasiano injustiçado pelos simplistas: “Pátria, latejo em
ti!”.
Da revolução como religião, Gabriel Nascente
termina na religião como revolução espiritual, tal como se
pode concluir do poema com que se encerra esta coletânea (“Tu,
cetro de estrelas”). É uma metamorfose profunda, sobre a qual
os exegetas e biógrafos do futuro saberão se pronunciar.
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Nascente
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Prosa & Verso,
25.6.2005
Veredas que se bifurcam
(II)
As
veredas que se bifurcam conduzem ao poeta desconhecido que é
também um dos melhores nos quadros históricos da poesia
brasileira em qualquer tempo, não apenas na atualidade
(Annibal Augusto Gama. 50 anos falando sozinho. Poemas
reunidos. Ribeirão Preto, SP: Funpec, 2002). Nas palavras de
Mário Chamie, poeta que “mereceria estar entre os maiores
nomes de nossa poesia do recém-findo século XX (...), na
plenitude de seus 76 anos de idade... Os vários livros
reunidos no presente volume (...) nos ensinam que a poesia, ao
contrário dos amores apressados, tem a virtude da espera. Mais
do que essa virtude, a poesia sabe recolher-se (sic) ao
silêncio astuto a sua grandeza clandestina. E quando a
clandestinidade do verbo poético se rompe, faz-se a luz”.
É, pois, um caso singular, antes de mais nada por
apresentar-se com idioma próprio, lírico e irônico,
reassimilando em visão poética a realidade concreta do mundo
exterior. Assim, por exemplo, no tratamento metafórico do
tempo sem mencionar a palavra, mas transmitindo a sensação de
sua mecânica inexorável: “O monstruoso/ de pé no fundo da
sala,/ com o seu enorme pêndulo (...).// O mofino despertador/
dispara no quarto// na torre da igreja/ o relógio episcopal/
sacode do campanário/ as pombas brancas// O relógio de bolso/
é um cão amarrado à corrente.// O relógio de pulso/ bica miúdo
como um passarinho// O cuco se solta na gaiola/ e cucoreja na
madrugada (...)” — todos marcando a matemática sinistra em que
uma hora a mais é uma hora a menos, enquanto lá fora o
exemplar relógio de sol “espera no mármore branco/ a sobra da
hora que chegou,/ silencioso e hermético”. É a isso que
chamamos vida: “Horas, horas, horas,/ para que vos quero/ e me
desespero/ de vossa fuga irreparável,/ se a vida veio e se
foi/ e me perdi no que não fui?” (“Os relógios”). Assim
podemos compreender a diferença de natureza da linguagem
poética, feita de metáforas, sem jamais empregar a conjunção
“como”, instrumento do idioma prosaico.
Se François
Villon, como tantos poetas antes e depois dele perguntava onde
estavam as neves de antanho, Annibal Augusto Gama transmite a
mesma lancinante melancolia por meio de referências irônicas
aos objetos de uso cotidiano: “Onde anda aquele homem,/
belamente escanhoado,/ com seu bigode quadrado/ da Gillette? E
o canivete/ marca Solingen ou corneta?/ E as penas de aço
Mallet?/ E minha tinta Sardinha/ que bem cheirava na Escola?/
E aquelas balas Camões/ ao lado do bilboquet?”. Nomes de
coisas e alusões sentimentais que desapareceram como o próprio
passado, tanto mais mítico e quase imaginário quanto é certo
que as gerações dos nosso dias terão dificuldade em
identificá-las — não como objetos materiais, mas como emblemas
de uma idade perempta, de um estado de espírito para sempre
perdido. Que coisa mais anacrônica que as revistas velhas, no
poema de mesmo nome, e que, contudo, restituem num minuto
nebuloso todo o mundo e o momento de que foram testemunho?
Eis, entretanto, o riso ou, pelo menos, o sorriso sardônico
desencadeado pela ampulheta orgânica: “A um homem da minha
idade/ provecta, tal como sói/ dizer-se, não lhe pergunte/
como é que vai. Pergunte/ onde é que dói”. (“A idade
provecta”).
Além, bem entendido, do que tem de pessoal
e inconfundível, a poesia de Annibal Augusto Gama é um vasto
estuário onde vêm confundir-se águas tão diversas, e contudo
tão similares, quanto as de José Paulo Paes (com quem revela
espontâneas afinidades), Fernando Pessoa e Carlos Drummond de
Andrade, sendo essa a galeria da fama em que devemos situá-lo.
Eis, porém, as diferenças: se Drummond celebrou o hotel em
demolição, para Annibal Augusto Gama o hotel será, antes, a
sede do que se pode chamar, por oxímoro, de tragédia irônica:
“Depois de um dia de silêncio/ e ausência, encontraram o homem
morto/ no quarto do hotel. (...) Esse homem trouxe consigo uma
amante/ escandalosa, vestida de escarlate,/ sem modos, que
entornou o vinho/ na toalha de linho da mesa,/ enquanto os
seus grandes seios saltavam/ impudicos do decote exagerado”
(“O morto no quarto”).
E Brasília, a cidade gloriosa
do futuro ou de um futuro glorioso pelo menos nas hipérboles
ufanistas de André Malraux — Brasília, que tem alguma coisa de
não-cidade nos termos das nossas tradições históricas, urbanas
e emocionais? Brasília é “A cidade nova”: “O engenheiro/ risca
na planilha/ a cidade nova./ Edifícios de silício,/ uma só
avenida /se desenrola em fuso/ e parafuso./ Nenhuma esquina
(...). Nenhuma árvore,/ nenhum cão,/ nenhum pássaro,/ nenhum
carro na contramão, (...) O sol e a lua/ foram abolidos (...).
Não há janela,/ nem casas, nem vidraça (...). De chaminé
nenhuma/ evola a fumaça/ e nada embaça/ a nitidez do vazio
(...).”
É cidade em que todos parecem prisioneiros do
lado de fora, como no poema em que Annibal Augusto Gama se
refere à condição humana: “Estou do lado de cá/ ou do outro
lado das grades?/ Neste mundo relativo/ tudo é dubitativo/ e o
avesso é o começo/ onde principia o fim./ Na prisão o
carcereiro/ é preso do prisioneiro”. Imagem aplicável aos
condomínios urbanos de segurança máxima, acrescento por minha
conta. Ao lado de tudo isso, há os saborosos poemas compostos
de frases feitas: “Antigamente se dava/ às de Vila Diogo, ou
se/ punha sebo nas canelas/ aos gritos de aqui d’el Rei,/ Mas
tudo isso acabou-se/ e as pernas para quem quero elas.../ Nas
ruas, com tanto Cooper,/ se corre de quem não sei./ Da
Polícia, dos gatunos,/ dos ministros, dos políticos/ dos
ianques ou dos hunos/ ou dos esgotos mefíticos?” (“Às de Vila
Diogo”).
Há um belo poema (infelizmente fragmentário)
sobre o misterioso Bacharel de Cananéia, autor da segunda
Carta de Caminha: “Aqui, senhor, há muitos bichos,/ muitos,
que aí não haverá (...). Virão os negros, os italianos,/ os
espanhóis, os alemães,/ e mais japões, e gente arábica, e tudo
se misturará (...).” Claro, não devemos esquecer as “polacas
gordas e francesas, os bordéis, senzalas, catedrais, e, nos
terreiros, saravá”. É o novo retrato do Brasil, longe do
pessimista Paulo Prado e bem mais perto do otimista Pero Vaz
de Caminhas.
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