Allan Banks, USA, Hanna

 

 

 

 

 

 

 

 

Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Thomas Cole (1801-1848), The Voyage of Life: Youth

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins

Prosa & Verso, 18.6.2005


 

Veredas que se bifurcam (I)

 

Estreando em 1967, Gabriel Nascente pertence à constelação do que podemos denominar a “época Drummond de Andrade” em nossa poesia, sistema solar que dele recebia luz e calor (Inventário poético. Org. Vera Maria T. Silva. Goiânia: Alternativa, 2005). Não se trata apenas de influências propriamente ditas, aliás abundantes em todos os seus livros, mas da atmosfera instituída pelo que essa forma poética tem de provincial, se não provinciano e até regionalista, ao lado do “socialismo” vago e humanitário, sem chegar a ser a “voz da Revolução” como queria Antero de Quental, e pela prática da dicção prosaica e coloquial, incluindo-se nesse coloquialismo os palavrões que Drummond não empregava jamais e que, de fato, contrariam a própria natureza da poesia.

É verdade que o mestre nos aconselhava a ser pornográficos “diante dos últimos acontecimentos”, mas não passou do preceito ao exemplo, tendência por assim dizer automática nos discípulos em busca de força expressiva. Gabriel Nascente não os recusa, antes parece comprazer-se neles em desafio à “burguesia”, besta negra dos revolucionários de gabinete. Aqui, a resposta é a mesma que se aplica à prosa de ficção: o palavrão necessário é indispensável; o outro, não somente dispensável, é artisticamente errado, sobretudo em matéria de poesia, cuja idéia originária é a extrema idealização e finura elocutória.

Outra característica dessa linhagem, sem excluir Carlos Drummond de Andrade (antes pelo contrário!), é a transformação do poeta em objeto de sua própria poesia, fonte privilegiada de inspiração e, mesmo, de limitação criadora. Ao poeta romântico que exclamava “Sou um homem para quem o mundo exterior existe”, os drummondianos de primeiro e segundo escalão contrapõem na prática o homem para quem só o mundo autobiográfico existe. Eis uma pequena antologia de Gabriel Nascente: “Embarcado no chão desta barca/ vou remando a vida neste rio de osso”. Ou então: “Eu, Gabriel Nascente, vim da serragem (...). Sou de janeiro. Sou das ruas de chão/ do Bairro Popular, cúpula dos gorgeios/ da minha infância”. O poeta não se encara apenas como homem comum escrevendo “à claridade das lâmpadas”, mas como misteriosa transfusão dos grandes heróis míticos, como no “Edital à praça”: “Declaro a quem interessar possa/ que vivo maritalmente com as palavras/ E que a poesia me faz refém/ do seu engenhoso afã de quimeras. //Sou Quixote, queimando a sola no asfalto (...).” O estado de poesia é nele espontâneo, talvez orgânico: “Eu faço poesia como quem/ copula com as palavras”, ou “como quem engravida/ um cardume de estrelas”, ou “como quem/ dispara um jato de amor” — porque as metáforas fisiológicas parecem-lhe irresistíveis na caça às hipérboles eloqüentes, procuradas, por contradição, nas regiões baixas do organismo. Claro, em tudo isso o poeta é um condenado à grandeza: “Se tomarem de mim/ a poesia/ pelo amor de Deus,/ me salvem // É parte vital/ do meu sangue”.

Nesse contexto solipsístico, o pensamento político de Gabriel Nascente, como, aliás, o de Carlos Drummond de Andrade, pertence ao socialismo humanitário e sentimental, anátema para o que se convencionou chamar de socialismo científico: “Aberto feito banco de praça,/ é homem, negro, branco e mulato (...) Em tua tristeza umbilical/ de haver nascido, és operário”. Ou, no poema sobre os varredores de rua: “Irmão, que ofício é este/ que o faz gari de ruas?/ O que bem guardado/ num país do coração/ é alvíssimo desejo/ de impar o mundo!”. Tudo resumido na antevisão dos amanhãs que cantam: “O mundo há de ser justo/ com as mocinhas de pensionato ... com os serventes de pedreiros... com os relojoeiros... com os alfaiates... com os operários do campo”, etc., etc..

O poeta é, ao mesmo tempo, o tribuno do povo e da Revolução com maiúscula: “Não faço proselitismo. Não prometo./ Apenas levanto a minha voz/ com quem abre bandeiras de esperança,/ no peito do povo”. Daí para o marxismo vulgar de simples devaneio é um passo: “Os homens escondem suas cabeças/ em cobertores de papelão miséria. // E a bordo dos automóveis, os magnatas/ discutem a cotação do dólar,/ de celulares/ em punho,/ charutos/ e ar refrigerado (...)”. A caricatura do capitalista barrigudo, fumando imensos charutos e esparramado no automóvel é obrigatória na literatura panfletária que passa por pensamento político e anima as conversas de bar, explodindo em indignações simplistas: “Um dia farei um poema/ pedindo a Deus que me dê/ uma tonelada de palha de aço,/ um tonel de água sanitária/ e trinta mil fardos de papel/ higiênico,/ para uma faxina na/ consciência dos homens. // Um dia, sim: eu farei/ o poema,/ antes que o mundo/ cuspa-me na cara”.

Essas modas de retórica passaram pela poesia brasileira no tempo das utopias fáceis, posteriormente superadas pelo interesse do Drummond de “Claro enigma” mais do que pelo Drummond da “Rosa do povo”: chegou o momento em que os “acontecimentos” começaram a entediar os poetas sociais. Há um outro lado em Gabriel Nascente, o da pátria, como no poema de mesmo título, ou a grandeza do Brasil central e sua geografia: “Gosto de dizer o teu nome, Pátria,/ mesmo sabendo que tu vives atraiçoada, e teu povo é uma ciranda de naufrágios. // Ó Pátria, sensual e bêbada, quero morrer/ no cheiro de tuas florestas!”.

Ou, ainda, nas belas evocações do poderoso rio Araguaia: “Este rio passa pelo sertão/ como um bicho por uma estrada (...). O rio alaga seu mistério, o rio ronca./ Este rio carrega o remorso dos afluentes,/ segue o dorso das estradas, o rio”. Tema retomado no poema “Araguaia, eu sou teu pranto”, em que a brasilidade profunda reemerge na eloqüência dos grandes rios históricos. Gabriel Nascente tem também a sua Itabira, poeta de província lançado outrora na grande cidade: “Goiás agora é apenas/ a cisma de um sonho./ Perdido na distância/ é lembrança pura/ como dor e sangue/ latejando na memória”. Ou como dizia o parnasiano injustiçado pelos simplistas: “Pátria, latejo em ti!”.

Da revolução como religião, Gabriel Nascente termina na religião como revolução espiritual, tal como se pode concluir do poema com que se encerra esta coletânea (“Tu, cetro de estrelas”). É uma metamorfose profunda, sobre a qual os exegetas e biógrafos do futuro saberão se pronunciar.

 

Clique na foto para Gabriel Nascente

Gabriel Nascente


 


Prosa & Verso,

25.6.2005

 

 

 

 

Veredas que se bifurcam (II)

 

As veredas que se bifurcam conduzem ao poeta desconhecido que é também um dos melhores nos quadros históricos da poesia brasileira em qualquer tempo, não apenas na atualidade (Annibal Augusto Gama. 50 anos falando sozinho. Poemas reunidos. Ribeirão Preto, SP: Funpec, 2002). Nas palavras de Mário Chamie, poeta que “mereceria estar entre os maiores nomes de nossa poesia do recém-findo século XX (...), na plenitude de seus 76 anos de idade... Os vários livros reunidos no presente volume (...) nos ensinam que a poesia, ao contrário dos amores apressados, tem a virtude da espera. Mais do que essa virtude, a poesia sabe recolher-se (sic) ao silêncio astuto a sua grandeza clandestina. E quando a clandestinidade do verbo poético se rompe, faz-se a luz”.

É, pois, um caso singular, antes de mais nada por apresentar-se com idioma próprio, lírico e irônico, reassimilando em visão poética a realidade concreta do mundo exterior. Assim, por exemplo, no tratamento metafórico do tempo sem mencionar a palavra, mas transmitindo a sensação de sua mecânica inexorável: “O monstruoso/ de pé no fundo da sala,/ com o seu enorme pêndulo (...).// O mofino despertador/ dispara no quarto// na torre da igreja/ o relógio episcopal/ sacode do campanário/ as pombas brancas// O relógio de bolso/ é um cão amarrado à corrente.// O relógio de pulso/ bica miúdo como um passarinho// O cuco se solta na gaiola/ e cucoreja na madrugada (...)” — todos marcando a matemática sinistra em que uma hora a mais é uma hora a menos, enquanto lá fora o exemplar relógio de sol “espera no mármore branco/ a sobra da hora que chegou,/ silencioso e hermético”. É a isso que chamamos vida: “Horas, horas, horas,/ para que vos quero/ e me desespero/ de vossa fuga irreparável,/ se a vida veio e se foi/ e me perdi no que não fui?” (“Os relógios”). Assim podemos compreender a diferença de natureza da linguagem poética, feita de metáforas, sem jamais empregar a conjunção “como”, instrumento do idioma prosaico.

Se François Villon, como tantos poetas antes e depois dele perguntava onde estavam as neves de antanho, Annibal Augusto Gama transmite a mesma lancinante melancolia por meio de referências irônicas aos objetos de uso cotidiano: “Onde anda aquele homem,/ belamente escanhoado,/ com seu bigode quadrado/ da Gillette? E o canivete/ marca Solingen ou corneta?/ E as penas de aço Mallet?/ E minha tinta Sardinha/ que bem cheirava na Escola?/ E aquelas balas Camões/ ao lado do bilboquet?”. Nomes de coisas e alusões sentimentais que desapareceram como o próprio passado, tanto mais mítico e quase imaginário quanto é certo que as gerações dos nosso dias terão dificuldade em identificá-las — não como objetos materiais, mas como emblemas de uma idade perempta, de um estado de espírito para sempre perdido. Que coisa mais anacrônica que as revistas velhas, no poema de mesmo nome, e que, contudo, restituem num minuto nebuloso todo o mundo e o momento de que foram testemunho? Eis, entretanto, o riso ou, pelo menos, o sorriso sardônico desencadeado pela ampulheta orgânica: “A um homem da minha idade/ provecta, tal como sói/ dizer-se, não lhe pergunte/ como é que vai. Pergunte/ onde é que dói”. (“A idade provecta”).

Além, bem entendido, do que tem de pessoal e inconfundível, a poesia de Annibal Augusto Gama é um vasto estuário onde vêm confundir-se águas tão diversas, e contudo tão similares, quanto as de José Paulo Paes (com quem revela espontâneas afinidades), Fernando Pessoa e Carlos Drummond de Andrade, sendo essa a galeria da fama em que devemos situá-lo. Eis, porém, as diferenças: se Drummond celebrou o hotel em demolição, para Annibal Augusto Gama o hotel será, antes, a sede do que se pode chamar, por oxímoro, de tragédia irônica: “Depois de um dia de silêncio/ e ausência, encontraram o homem morto/ no quarto do hotel. (...) Esse homem trouxe consigo uma amante/ escandalosa, vestida de escarlate,/ sem modos, que entornou o vinho/ na toalha de linho da mesa,/ enquanto os seus grandes seios saltavam/ impudicos do decote exagerado” (“O morto no quarto”).

E Brasília, a cidade gloriosa do futuro ou de um futuro glorioso pelo menos nas hipérboles ufanistas de André Malraux — Brasília, que tem alguma coisa de não-cidade nos termos das nossas tradições históricas, urbanas e emocionais? Brasília é “A cidade nova”: “O engenheiro/ risca na planilha/ a cidade nova./ Edifícios de silício,/ uma só avenida /se desenrola em fuso/ e parafuso./ Nenhuma esquina (...). Nenhuma árvore,/ nenhum cão,/ nenhum pássaro,/ nenhum carro na contramão, (...) O sol e a lua/ foram abolidos (...). Não há janela,/ nem casas, nem vidraça (...). De chaminé nenhuma/ evola a fumaça/ e nada embaça/ a nitidez do vazio (...).”

É cidade em que todos parecem prisioneiros do lado de fora, como no poema em que Annibal Augusto Gama se refere à condição humana: “Estou do lado de cá/ ou do outro lado das grades?/ Neste mundo relativo/ tudo é dubitativo/ e o avesso é o começo/ onde principia o fim./ Na prisão o carcereiro/ é preso do prisioneiro”. Imagem aplicável aos condomínios urbanos de segurança máxima, acrescento por minha conta. Ao lado de tudo isso, há os saborosos poemas compostos de frases feitas: “Antigamente se dava/ às de Vila Diogo, ou se/ punha sebo nas canelas/ aos gritos de aqui d’el Rei,/ Mas tudo isso acabou-se/ e as pernas para quem quero elas.../ Nas ruas, com tanto Cooper,/ se corre de quem não sei./ Da Polícia, dos gatunos,/ dos ministros, dos políticos/ dos ianques ou dos hunos/ ou dos esgotos mefíticos?” (“Às de Vila Diogo”).

Há um belo poema (infelizmente fragmentário) sobre o misterioso Bacharel de Cananéia, autor da segunda Carta de Caminha: “Aqui, senhor, há muitos bichos,/ muitos, que aí não haverá (...). Virão os negros, os italianos,/ os espanhóis, os alemães,/ e mais japões, e gente arábica, e tudo se misturará (...).” Claro, não devemos esquecer as “polacas gordas e francesas, os bordéis, senzalas, catedrais, e, nos terreiros, saravá”. É o novo retrato do Brasil, longe do pessimista Paulo Prado e bem mais perto do otimista Pero Vaz de Caminhas.



 



 

 

 

 

 

 

22/09/2005