Deram-se
mal, como seria de esperar, todos os que se propuseram a rivalizar com
Machado de Assis, pensando “melhorá-lo”, corrigi-lo, atualizá-lo ou
simplesmente prolongá-lo, como Cyro dos Anjos com “O amanuense Belmiro”
em 1937. Exemplo ainda mais sugestivo e, ao mesmo tempo, fútil exercício
escolar, são os contos de diversos autores, reunidos por Osman Lins na
coletânea “Missa do galo: variações sobre o mesmo tema” (São Paulo:
Summus, 1977), nos quais se conjugam o fascínio medusante de Machado de
Assis e a ambição de igualá-lo, ou seja, de diminuir-lhe a estatura. Na
verdade, qualquer um pode escrever “variações” a partir da obra
machadiana, mas a indiscutível realidade é que somente ele foi capaz de
escrevê-la, de “inventá-la” — é justamente a invenção que falta, no
caso, aos seus imitadores. No que se refere à “Missa do galo”, as
“variações” de 1977 substituíram pelo espírito de geometria o que fôra
escrito pelo espírito de finura, se quisermos lembrar as conhecidas
distinções pascalianas. São trabalhos adjetivos, sem realidade própria:
nada acrescentam a Machado de Assis, podendo-se perguntar se alguma
coisa acrescentam aos diversos autores.
Sofrendo,
como um dos seus personagens, do tédio à controvérsia, o paradoxo está
em que poucos escritores terão provocado tanta controvérsia quanto ele,
nomeadamente a propósito de “Dom Casmurro”, modelo supremo de
ambigüidade machadiana. Com o que, bem entendido, não se conformam os
espíritos de geometria, para os quais não há “provas” do adultério: na
observação algo ingênua de Helen Caldwell, nenhum júri teria elementos
jurídicos suficientes para a condenação. “Dom Casmurro”, dizem ela e os
seus discípulos, não é o romance do adultério, mas do ciúme doentio
(sentimento considerado vergonhoso pelos norte-americanos): Bentinho
trazia dentro de si e no próprio nome o Santo da ingenuidade e o Iago
que lhe insuflava suspeitas, como na peça shakespeariana. Segundo a moda
crítica muito popular nos anos de 1960, Helen Caldwell tirava
interpretações fantasistas e delirantes dos nomes próprios: a rua do
Ouvidor era assim chamada porque, sendo estreita, os que se encontrassem
numa calçada podiam ouvir o que se dizia na outra; o nome de Santiago
era de clareza indiscutível: Sant’Iago, criptônimo que explicava tudo,
não é?
Repetindo
Lygia Fagundes Telles (“Capitu”, 1993) e Fernando Sabino (“Amor de
Capitu”, 1999), Domício Proença Filho (“Capitu: memórias póstumas”. 3
ed. Rio: Record, 2005) acompanha fielmente a jurisprudência caldwelliana,
nela incluindo, literal e anacronicamente, uma Capitu que não podia
conhecê-la. Tendo assistido a uma representação do “Otelo”, registrou
nas “memórias”: “Voltei a casa pensando e ainda identificada com a
desditada Desdêmona. Só que, na peça da minha vida, Otelo e Iago eram a
mesma pessoa. E mais, o segundo passara toda a vida a fingir-se de
santo. Não nos esqueça de que se chamava Bento, Bento Santo Iago”.
Caldwelliano sem falha, Domício Proença Filho escreveu as “memórias
póstumas” de Capitu não só atribuindo-lhe, ao longo das páginas, muito
mais talento literário do que ela jamais demonstrou possuir, mas, ainda,
movido por um sentimento de vingadora justiça e generosa revolta:
“...tomou-me também a indignação diante do narrador e seu texto, feito
de acusação e vilipêndio. Sem qualquer direito de defesa (ah,
Caldwell!). Sem acesso ao discurso, usurpado, sutilmente, pela palavra
autoritária do marido, algoz em pele de cordeiro vitimado. Crudelíssimo
e desumano: não bastasse o que faz com a mulher, chega a desejar a morte
do próprio filho e a festejá-la com um jantar, sem qualquer remorso”.
Bento
Santiago seria um “narrador inconfiável”, categoria metodológica que
esteve na moda universitária por algum tempo, sendo, embora, uma das
mais indefensáveis na história das idéias críticas. De fato, em matéria
de ficção, todos os narradores são confiáveis por definição, salvo
expressa configuração em contrário: se não forem confiáveis não há
ficção, não “acreditamos” na história, cujo único compromisso é com a
verossimilhança, não com a verdade: é o que Aristóteles ensinava há mais
de dois mil anos. Se Capitu for inocente, o romance “Dom Casmurro”, tal
como Machado de Assis o escreveu, deixa de existir, será outro romance.
Sua estética não é a do Naturalismo, pela qual o adultério teria sido
graficamente apresentado para a compreensão do júri, mas o autor
forneceu todos os elementos de convicção para torná-lo provável.
Além disso,
e pelos mesmos princípios, a narradora Capitu não será, por definição,
mais confiável que Bentinho, de forma que a teoria se destrói com a
própria enunciação. Domício Proença Filho apresenta-a desde a juventude
como um espírito ardiloso e interesseiro, mais astuta que Bentinho,
apresentado como ingênuo e algo atoleimado, manipuladora e realista,
hipócrita, capaz de enfrentar as dificuldades com sangue-frio e
habilidade. Tal como a descreve Domício Proença Filho, ela é
intelectualmente limitada, incapaz de perceber o “sentido” de algumas
situações em que se vê envolvida, como nesta passagem: “Sem qualquer
dose de má vontade, seu procedimento não convence. Esperar o copeiro
trazer o café, tudo bem; mas levantar-se depois, guardar o livro,
decerto lustrá-lo com o lenço, verificar se estava no lugar certo,
alertar os ouvidos para os rumores da casa e só então decidir-se a
concretizar o tresloucado gesto? Era calma e preparação demasiadas”.
Aqui não é a
memorialista, mas o crítico que está falando com observações
psicológicas e técnicas que certamente estariam acima dos recursos
intelectuais da heroína, como é ainda o crítico dos nossos dias que lhe
atribui a atitude “feminista” e reivindicativa inteiramente estranha ao
seu quadro de valores, tal como está implícito na “declaração de
princípios”, por exemplo, quando, referindo-se à sua juventude, ela
observa: “hoje percebo como éramos prisioneiras das convenções e da
coerção social”, ou quando se diz transformada em “mulher-objeto”,
expressão polêmica e, aliás, meio tola que só se tornou popular em
nossos dias. É a mesma Capitu que critica o famoso soneto de Camões por
não revelar “qualquer preocupação com o que Raquel pensava ou sentia”,
tudo culminando na declaração programática: “eu devia o meu texto a mim
mesma e às mulheres de todos os tempos”. Ei-la sagrada e consagrada como
feminista militante, situação cujo anacronismo os leitores poderão
avaliar.
Escritor
“problemático”, como também foi moda repetir quando os brasileiros
descobriram G. Lukács, não faltando, tampouco, quem o configure como
“intelectual orgânico” (na evidente intenção de amesquinhá-lo), Machado
de Assis teve o indesejado destino de se tornar o desafio permanente e
incontornável que a literatura brasileira propõe a si mesma.