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Sandro Botticelli, Saint Augustine, Ognissanti's Church, Firenze

Wilson Martins


21.5.2005


Controvérsias machadianas

 


Deram-se mal, como seria de esperar, todos os que se propuseram a rivalizar com Machado de Assis, pensando “melhorá-lo”, corrigi-lo, atualizá-lo ou simplesmente prolongá-lo, como Cyro dos Anjos com “O amanuense Belmiro” em 1937. Exemplo ainda mais sugestivo e, ao mesmo tempo, fútil exercício escolar, são os contos de diversos autores, reunidos por Osman Lins na coletânea “Missa do galo: variações sobre o mesmo tema” (São Paulo: Summus, 1977), nos quais se conjugam o fascínio medusante de Machado de Assis e a ambição de igualá-lo, ou seja, de diminuir-lhe a estatura. Na verdade, qualquer um pode escrever “variações” a partir da obra machadiana, mas a indiscutível realidade é que somente ele foi capaz de escrevê-la, de “inventá-la” — é justamente a invenção que falta, no caso, aos seus imitadores. No que se refere à “Missa do galo”, as “variações” de 1977 substituíram pelo espírito de geometria o que fôra escrito pelo espírito de finura, se quisermos lembrar as conhecidas distinções pascalianas. São trabalhos adjetivos, sem realidade própria: nada acrescentam a Machado de Assis, podendo-se perguntar se alguma coisa acrescentam aos diversos autores.

Sofrendo, como um dos seus personagens, do tédio à controvérsia, o paradoxo está em que poucos escritores terão provocado tanta controvérsia quanto ele, nomeadamente a propósito de “Dom Casmurro”, modelo supremo de ambigüidade machadiana. Com o que, bem entendido, não se conformam os espíritos de geometria, para os quais não há “provas” do adultério: na observação algo ingênua de Helen Caldwell, nenhum júri teria elementos jurídicos suficientes para a condenação. “Dom Casmurro”, dizem ela e os seus discípulos, não é o romance do adultério, mas do ciúme doentio (sentimento considerado vergonhoso pelos norte-americanos): Bentinho trazia dentro de si e no próprio nome o Santo da ingenuidade e o Iago que lhe insuflava suspeitas, como na peça shakespeariana. Segundo a moda crítica muito popular nos anos de 1960, Helen Caldwell tirava interpretações fantasistas e delirantes dos nomes próprios: a rua do Ouvidor era assim chamada porque, sendo estreita, os que se encontrassem numa calçada podiam ouvir o que se dizia na outra; o nome de Santiago era de clareza indiscutível: Sant’Iago, criptônimo que explicava tudo, não é?

Repetindo Lygia Fagundes Telles (“Capitu”, 1993) e Fernando Sabino (“Amor de Capitu”, 1999), Domício Proença Filho (“Capitu: memórias póstumas”. 3 ed. Rio: Record, 2005) acompanha fielmente a jurisprudência caldwelliana, nela incluindo, literal e anacronicamente, uma Capitu que não podia conhecê-la. Tendo assistido a uma representação do “Otelo”, registrou nas “memórias”: “Voltei a casa pensando e ainda identificada com a desditada Desdêmona. Só que, na peça da minha vida, Otelo e Iago eram a mesma pessoa. E mais, o segundo passara toda a vida a fingir-se de santo. Não nos esqueça de que se chamava Bento, Bento Santo Iago”. Caldwelliano sem falha, Domício Proença Filho escreveu as “memórias póstumas” de Capitu não só atribuindo-lhe, ao longo das páginas, muito mais talento literário do que ela jamais demonstrou possuir, mas, ainda, movido por um sentimento de vingadora justiça e generosa revolta: “...tomou-me também a indignação diante do narrador e seu texto, feito de acusação e vilipêndio. Sem qualquer direito de defesa (ah, Caldwell!). Sem acesso ao discurso, usurpado, sutilmente, pela palavra autoritária do marido, algoz em pele de cordeiro vitimado. Crudelíssimo e desumano: não bastasse o que faz com a mulher, chega a desejar a morte do próprio filho e a festejá-la com um jantar, sem qualquer remorso”.

Bento Santiago seria um “narrador inconfiável”, categoria metodológica que esteve na moda universitária por algum tempo, sendo, embora, uma das mais indefensáveis na história das idéias críticas. De fato, em matéria de ficção, todos os narradores são confiáveis por definição, salvo expressa configuração em contrário: se não forem confiáveis não há ficção, não “acreditamos” na história, cujo único compromisso é com a verossimilhança, não com a verdade: é o que Aristóteles ensinava há mais de dois mil anos. Se Capitu for inocente, o romance “Dom Casmurro”, tal como Machado de Assis o escreveu, deixa de existir, será outro romance. Sua estética não é a do Naturalismo, pela qual o adultério teria sido graficamente apresentado para a compreensão do júri, mas o autor forneceu todos os elementos de convicção para torná-lo provável.

Além disso, e pelos mesmos princípios, a narradora Capitu não será, por definição, mais confiável que Bentinho, de forma que a teoria se destrói com a própria enunciação. Domício Proença Filho apresenta-a desde a juventude como um espírito ardiloso e interesseiro, mais astuta que Bentinho, apresentado como ingênuo e algo atoleimado, manipuladora e realista, hipócrita, capaz de enfrentar as dificuldades com sangue-frio e habilidade. Tal como a descreve Domício Proença Filho, ela é intelectualmente limitada, incapaz de perceber o “sentido” de algumas situações em que se vê envolvida, como nesta passagem: “Sem qualquer dose de má vontade, seu procedimento não convence. Esperar o copeiro trazer o café, tudo bem; mas levantar-se depois, guardar o livro, decerto lustrá-lo com o lenço, verificar se estava no lugar certo, alertar os ouvidos para os rumores da casa e só então decidir-se a concretizar o tresloucado gesto? Era calma e preparação demasiadas”.

Aqui não é a memorialista, mas o crítico que está falando com observações psicológicas e técnicas que certamente estariam acima dos recursos intelectuais da heroína, como é ainda o crítico dos nossos dias que lhe atribui a atitude “feminista” e reivindicativa inteiramente estranha ao seu quadro de valores, tal como está implícito na “declaração de princípios”, por exemplo, quando, referindo-se à sua juventude, ela observa: “hoje percebo como éramos prisioneiras das convenções e da coerção social”, ou quando se diz transformada em “mulher-objeto”, expressão polêmica e, aliás, meio tola que só se tornou popular em nossos dias. É a mesma Capitu que critica o famoso soneto de Camões por não revelar “qualquer preocupação com o que Raquel pensava ou sentia”, tudo culminando na declaração programática: “eu devia o meu texto a mim mesma e às mulheres de todos os tempos”. Ei-la sagrada e consagrada como feminista militante, situação cujo anacronismo os leitores poderão avaliar.

Escritor “problemático”, como também foi moda repetir quando os brasileiros descobriram G. Lukács, não faltando, tampouco, quem o configure como “intelectual orgânico” (na evidente intenção de amesquinhá-lo), Machado de Assis teve o indesejado destino de se tornar o desafio permanente e incontornável que a literatura brasileira propõe a si mesma.

 

 

 

 

 

 

 

 

Caravagio, Tentação de São Tomé, detalhe

 

 

 

 

 

 

Revista VEJA, Brasil


Edição 1.944

Machado não merecia.

Os muitos erros na biografia do escritor.

 

 

Lançado no fim do ano passado pela Imprensa Oficial de São Paulo, Machado de Assis – Um Gênio Brasileiro, do jornalista paulista Daniel Piza, deveria ser uma novidade auspiciosa nas livrarias. Afinal, a obra de Machado de Assis (1839-1908), o maior dos escritores brasileiros, tem sido objeto de muitos estudos críticos recentes, mas a última biografia do autor foi publicada em 1981 por Raimundo Magalhães Júnior. A leitura dos especialistas, contudo, demonstra que o livro está repleto de erros. Ele falha no requisito primordial de uma obra de referência: a informação confiável.

"Tudo o que há de bom na biografia de Piza já se encontrava em Magalhães Júnior. O resto são erros factuais e ilações indevidas", disse o crítico Wilson Martins a VEJA. Em sua coluna no Jornal do Brasil, Martins fez um breve inventário de equívocos do livro, que inclui aberrações históricas (por exemplo, a informação de que o brasileiro José Bonifácio era português, ou de que o padre Feijó foi tutor de dom Pedro II) e análises delirantes dos nomes próprios de personagens machadianos (Piza diz, por exemplo, que o Palha, de Quincas Borba, é "quase Pulha"). Antes do artigo de Martins, o escritor e professor de literatura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Luís Augusto Fischer já havia apontado problemas semelhantes no jornal Zero Hora. O entrudo é transformado em festa de salão, e não de rua, enredos como o do conto O Alienista são resumidos de maneira equivocada e um personagem de Dom Casmurro, José Dias, o agregado que adora usar superlativos, é rebatizado como João.

Piza parece ter acreditado sobretudo nos próprios dotes críticos para compor Um Gênio Brasileiro – a narrativa da vida do escritor é entremeada com análises de suas principais obras. Um livro como esse, porém, não é somente um veículo para o biógrafo ventilar opiniões sobre o biografado. Ele deve ser uma fonte de dados confiáveis. O desprezo pela precisão – ou pela simples revisão de nomes, conceitos e datas – torna o livro imprestável. Como poderia dizer José (e jamais João) Dias, é um pecado gravíssimo.


 

 

Na seção de cartas de VEJA

Edição 1.945

 

MACHADO MALTRATADO

 

Daniel Piza, o autor da biografia Machado de Assis – Um Gênio Brasileiro, escreveu para comentar a matéria "Machado não merecia" (22 de fevereiro): "Os sete erros de revisão apontados entre as 400 páginas de meu livro já foram corrigidos na segunda edição, que está chegando às livrarias. Observo também que eles não tornam o livro 'imprestável', como diz o autor da matéria. Tanto é que mereceu belo comentário de Roberto Pompeu de Toledo nessa mesma revista".

Um autor como Piza só tem a ganhar se ao talento unir o rigor na apuração de dados. Seu renome como crítico cultural foi estabelecido num texto de 1994, no qual dizia que Jesus Cristo morreu enforcado – o mesmo texto desinformava ainda que a frase "No princípio era o Verbo", do Evangelho de São João, pertencia ao Antigo Testamento. Ao tratar de John Falstaff, personagem fictício de peças de William Shakespeare, Piza demonstra o mesmo descaso com a causa mortis e relatou seu enforcamento. No drama shakespeariano Henrique V, o bardo finalmente mata Falstaff. Mas ele morre na cama. Tais erros, que não são apenas de revisão, denotam falta de intimidade com as obras que o autor se propõe a comentar – e desprezo para com os documentos e os fatos históricos.

Enquanto Piza não unir seu talento ao rigor, suas obras continuarão a exigir reparos. A segunda edição de seu livro, já livre dos sete erros apontados, virá tisnada por outro. Ele está na página 116. O autor diz que o Rio de Janeiro de 1865 era a "capital federal". Em 1865 o Brasil era um império, e não uma federação.