Antonio Aílton
A POLIFONIA SERTÃ
E A IMAGO-MUNDI DA POESIA DE SOARES FEITOSA
Quase aos 50 anos, jamais havia escrito qualquer coisa. E
foi chegar na rodoviária [do Recife] e, num jato, passar para o papel aquele
delírio, Siarah.
(Francisco José Soares Feitosa
no prólogo do Psi – a Penúltima)
Há alguns dias recebi em minha casa algo
inusitado: um livro com pequeno envelope colado dentro, gravado com poema
explicativo da oferta e contendo irresistível rapé de sementes torradas de
imburana-de-cheiro. Presente do poeta cearense Soares Feitosa, com quem eu já
vinha de mirabolantes e profícuas conversas, e sabedor desse mimo que ele
costuma enviar aos amigos. O poeta é daqueles cuja conversa deixa uma sensação
de falta, por não o termos conhecido há mais tempo, para maior desfastio e ânimo
da vida.
O livro, com edição esgotada, e que ele
recomprara de um sebo, chama-se Psi – a penúltima,
publicado em Salvador, em 1997.
À sua oferta, dei a resposta que transcrevo
abaixo, a qual revela não apenas minha gratidão por tão gentil cuidado, mas
também a minha identificação com os territórios evocativos do poeta. E, mais
ainda, uma aproximação não disfarçada de um imaginário de vivências,
espacialidades evocativas e temporalidades entranhadas, presentes no seu
caldeirão poético:
BREVE DECLARAÇÃO DE
RECEBIMENTO DO SEU LIVRO COM MESCLA DE RAPÉ-DE-IMBURANA
Trago as alvíssaras de
recebimento do seu livro com aquele pequeno envelope contendo
poema-endereçamento pelo lado de fora e, pelo lado de dentro, sementes de
imburana-de-cheiro torradas. É uma mescla de cheiros da infância, cheiro de avós
e bisavós, roupas antigas, baús guardados, minha avó cheirando rapé e espirrando
na varanda da casa, numa antiga cadeira de balanço. As estrelas do sertão, das
brenhas, os festejos e as mulheres com vestidos de chita; meu pai levando um
vidrinho aromático para a roça, e, como você poetiza, os berros da criação.
Ainda estou estonteado até agora, porque é a experiência (para mim), de um
retorno abrupto ao espaço da casa e do aconchego esgarçado. É isso, poeta, você
achou um meio de proporcionar uma experiência nova, inusitada e inefável,
através da literatura e do livro. Quero dizer-lhe obrigado, de todo coração –
que já nem sei onde está – e agradecer por seu contato, sua poesia e sua
existência. Você acrescenta à vida.
***
Não é, no entanto, dessa
confluência de vivências e cacimbas que quero tratar aqui, sob o risco de dar
mais atenção ao sujeito falante que ao sujeito anunciado. Eu a coloco sobretudo
com o propósito de ambientar-nos nesse tão simples e, ao mesmo tempo, tão
incomum livro. Por outro lado, também para sugerir que não posso partir de outro
lugar, senão o dessa afetiva identificação exposta.
É um ganho incomensurável que o
mestre Feitosa decida republicar o Psi, a penúltima. Em primeiro lugar, pela
relevância desse livro para as letras brasileiras, o que podemos constatar pelo
panteão de autores que saudaram a sua aparição, quando o autor, completamente
alheio à escrita literária por quase 50 anos, danou-se a escrever poesia e foi
recebido, reconhecido por nomes da estatura literária de Gerardo Mello Mourão,
Thiago de Mello (poetas com quem o autor dialoga), Dora Ferreira da Silva, Nauro
Machado, Sebastião Uchoa Leite, Leila Micolis, César Leal, Roberto Pompeu de
Toledo, Jorge Amado, o crítico Wilson Martins e o reverenciável professor
canadense Sébastian Joachin, entre outros. A lista é longa.
Em segundo lugar, essa nova
publicação é imprescindível pelo que esse livro representa como reabertura de
mundos, perspectivas, voz, lugar. Não apenas para reacender as tochas do que o
autor tem produzido, mesmo do que sequer veio a lume (a exemplo de um monumental
e inédito Salomão, do já sabemos espantosas notícias), mas também pela
reivindicação do seu lugar nos possíveis que compõem a multitude atual da poesia
brasileira. Porque aqui abre-se a clareira de uma fala diferenciada, de uma voz
telúrica, entranhada na raiz da nossa cultura mais profunda, muitas vezes
estranha, quando já não desdenhada pelo olhares standards da mundialização
urbanoide. Psi não se nega como uma voz do sertão, mas diz respeito a uma
coletividade, a uma epicidade e a um corpo narrado crítico-emotivo, híbrido, que
nos pertence e irmana universalmente. Eis porque, também, Feitosa o nomeou como
uma obra “Heroica, telúrica & lírica”.
Trazendo título homônimo a um dos
poemas do livro, eleito dentro de uma simbólica significativa ao poeta,
deparamo-nos de entrada, na grafia do título, com uma profunda e inesperada
analogia – e, que depois de sabida, no entanto, achamos tão natural! – feita
entre dois universos: o da letra grega psi (),
referente à cultura grega, ou bem como a uma ancestralidade da linguagem, e o do
cacto (), cujos braços, em sua abertura
mística, são transfigurados como signos, o espírito do sertão. Porém, essa
analogia que mobiliza o nosso olhar como linguagem desses dois mundos conduz
nossa alma ainda mais adiante: ao candelabro aceso e ao fogo luciferino no
lendário rabo das malsinadas raposas sertanejas, que têm lugar garantido no
fabulário arcaico que o livro também nos traz, e que perfazem os múltiplos lados
de um mesmo mundo arquetipal, ancestral.
Quem entra no Psi, entra num
conhecimento arcaísta e raposista.
Como quem entra e se depara, de
repente, com um mundo que, sem fugir das demandas, inclemências e afetos do
real, compartilha de uma doação da natureza, da possibilidade viva da água e seu
cheiro sempre recomeçado. Compartilha do mundo primordial dos bichos e dos
homens, numa matéria poética configuradora de dimensões mundanais, fabulísticas,
bíblicas e simbólicas, mas dentro de um lastro humanitário, mesmo filosófico.
Poética de um humanitário e evocativo Francisco.
Não obstante as indicações já
manifestas do autor, de obra épica, telúrica e lírica, comentadores são unânimes
em encontrarem no Psi, talvez mesmo na poética geral de Feitosa, uma intersecção
ou ultrapassagem de gêneros e categorias textuais. O professor Sébastian Joachin
anuncia-lhe uma propensão à Cantata-Poema, ou Poema-Cantata, pela regulação de
ritmos, digressões e pequenos enovelamentos narrativos. No clarão dessa obra,
respaldado por tais falas, foi inevitável pensar num conceito que nasceu na voz
do teórico russo Mikhail Bakhtin (1895-1975) sobre o romance; conceito rejeitado
ou considerado herege quando aplicado à poesia - isso talvez porque Bakhtin não
pudesse ter conhecido a poesia de Soares Feitosa. Falo do conceito de polifonia.
A polifonia diz respeito à
condição de um não fechamento da obra numa visão cerrada de mundo, a uma
organicidade aberta, a contrapropostas de realidades, discursos e sentidos em
uma configuração não totalitária. Feitosa trabalha exatamente com o conceito de
“penúltimo/penúltima”, Psi – a penúltima, sobre o que é inacabado, o que não
chega ao fim. Textualmente, para além da poesia, é uma escritura poética, uma “poiescritura”,
por assim dizer, em que inclui intertextualidades, interdiscursividades,
alusões, invocações, fotografias, recorte de jornal, citações, notas de rodapé
(mostra do inacabamento do próprio sentido, na explicação inesgotável, que não
pode alcançar tudo, nem pode estar presente a todo momento), diálogo com outros
poetas – trechos de poemas, recorrências até aos salmistas e narradores
bíblicos.
Um dos poemas mais emblemáticos
do livro é justamente o “Thiago”, um embate ao modo de atualização da
tradicional do desafio, no qual Soares Feitosa convoca a presença poética de
Thiago de Mello e seu poema Filho da Floresta, Água e Madeira para esse embate
com um filho do sertão e da poeira, do chão do Ceará. Neste poema, é o rol de
questões colocadas e o tecido argumentativo, demonstrativo de lugares, que
convocam a presença do outro, das questões prévias: “aponte-me, por favor, o
nortista verdadeiro/ que poderá dizer que escapou/ do contaminado fogaréu/
destas terras de pedra e pó?! [...] Somos dois, / somos o mesmo! – o homem? // É
o mesmo Thiago, o mesmo homem, / idêntico bicho-de-dois-pés/ e por favor não te
pabules dos teus rios contra mim/ que eu jogo para cima de ti o meu mar/ com
todas as minhas jangadas de sete-paus/ levíssimas, flutuam, e voltam! [...]” (p.
74). É um livro, afinal, de muitas vozes e presenças, humanas ou animadas pelo
sopro poético e imaginativo – sol e lua, vento, pessoas que lhe são caras,
amigos... – que habitam um espaço mobilizado, efervescente e vivo.
O polifônico vem ao encontro
desse dialogismo, à multitude de vozes dialéticas e dialógicas presentes e
representadas que reivindicam seu lugar de fala.
Além disso, em Psi até a
natureza mantém sua fala, seu discurso. Especificamente no poema que dá nome ao
livro, um poema dividido em cantos que vão elencando, intensificando atitudes e
situações, o que se passa é um diálogo entre a raposa, ameaçada de extermínio no
Nordeste, e que, no poema, é representada como uma entidade autônoma, falante, e
o sujeito poético, o compadre Chico, mestre Francisco, a quem a raposa, depois
de este muito apelar, concede audiência. Ela entra em embate com o sujeito: “ -
Por que [Psi]‘a penúltima’, Compadre? / A última não seria mais rica?,/ o
(o ômega?)”, a
raposa pergunta. Ao que Compadre Chico responde: “a última não existe, Comadre,
nada é último” (p. 197).
O que está em jogo aí não o
total, completo, perfeito; mas o “ainda-não”, o “vamos chegar lá”, o “navegar é
preciso”. É a simbologia do livro: o aglomerável, em discurso, a caminho, o
inacabado.
Precisamos admitir, é claro, que
as categorias devem, por vezes, ser admitidas em termos de graus de presença, ou
de ocorrência. Mesmo o texto mais polifônico é organizado pela voz de um autor,
do lugar que este conjura as tantas outras vozes, e por vezes as simula. Nessa
poesia, o espaço intermediário entre o sujeito poético e o cidadão
empírico-político-pragmático Soares Feitosa é muito tênue, em decréscimo do
primeiro, operado por vezes em termos de forte alegoria, que recobre grande
parte dos poemas (Antífona, Lua de Março, o próprio Psi...). O que corrobora,
porém, com esse pêndulo polifônico, no livro, é também o caráter narrativo que
perpassa os poemas. Em geral, poemas longos, que permitem engendrar uma
narrativa, ambientar, convocar personagens, arquitetar diálogos e, com isso,
mobilizar perspectivas diferentes da realidade e do próprio imaginário.
Há ainda um procedimento neste
livro que chama quase que de imediato nossa atenção e nos conduz para um
pensamento dialógico, mesmo para a percepção de um espaço intermediário entre a
sensibilidade estética, a evocação imaginativa e a dimensão política das formas:
um uso diverso de todo um repertório de fontes gráficas, eletrônicas, que
estavam disponíveis no momento de sua feitura. A forma, na poesia, os elementos
gráficos, e sua organização na página, bem sabemos que não são apenas registros
fáticos, são também elementos de invocação de sentido. São espessuras do
sensível, tornando-se até mesmo signos patêmicos e afetivos. Soares Feitosa dá
lugar, na escolha de um misto repertório de corpos gráficos magros, bojudos,
serigrafados, timbres góticos e iluminuras de evocação mística antiga, à
demonstração de uma verdadeira dimensão poético-política (democrática) da
instância gráfica.
O eixo simbólico que direciona
como dominância para a construção da imago-mundi, a imagem do mundo ofertada
nesse universo poético de Feitosa, é um eixo solar, ou, como ele mesmo diz,
auroral. O solar implica a clareza, a racionalidade, os espaços iluminados, o
calor – até o sertão tórrido –, as forças vitais. Mas o auroral é um termo muito
feliz, porque é um movimento para a clareza, para o alvorecer, um amanhecimento,
caminho para o esplendor. Fiquemos também com o auroral. E é para esta aurora
que o poeta também chama seus rios, por vezes frágeis rios, suas cacimbas – que
se deixa até toldar pelos que nela vêm socorrer-se, em sua pressa de matar a
sede – por suas chuvas e pancadas de água, soltando o cheiro do barro. Há, no
livro, pelo menos uns 15 poemas que falam de sol e de água, duas imagens de
encaminhamento da aurora, para o que pode germinar entre chuviscos e orvalhos.
E entre todos os poemas
altissonantes que compõem o livro, encontramos também aqueles que estão ali como
quem não querem nada. Poemas mais simples, que guardam o pulsar de um coração
profundo que perpassa todo o livro, uma lira delicada, um salmodiar, muitas
vezes sob impacto das injustiças. Que belo poema, esse “O menino do balde”,
feito ainda em 1994, no qual o poeta traz à luz, em forma de denúncia de
genocídio, os meninos limpadores de para-brisa nas avenidas das grandes cidades.
Ao final desse poema, ele registra: “av. Agamenon Magalhães, manhã de sol
quente, 31.03.94”.
Psi – a penúltima é um livro
realmente diferente e, conforme dito acima, é um livro híbrido, cuja polimorfia,
polifonia e repertório simbólico nos transportam para os elementos basilares da
poesia e da cultura brasileira. Chega num momento crucial, em que o discurso das
diferenças precisa lidar também com o peso do esquecimento, do menosprezo, da
ignorância, da pressa obstinada e do acúmulo. Psi, através de sua voz poética,
ou de suas muitas vozes e corpos, traz uma moral da história. A sua moral
subliminar é a de que a fraternidade universal pressupõe a prática inarredável
da justiça.
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