Eduardo Vasconcelos Lima
O Movimento Armorial
e o
Romanceiro Popular Nordestino
Criado por Ariano Suassuna em 1970, o
Movimento Armorial é um “escudo blindado” contra o processo
de descaracterização e vulgarização da cultura brasileira,
processo que, infelizmente, ainda continua com grande força.
Só um país rico em tradições populares pode suportar o
bombardeio do chamado e conhecido “lixo cultural”, ligado
diretamente à “cultura de massa”, bombardeio esse liderado
principalmente pelos Estados Unidos.
A cultura é como uma majestosa
sinfonia, cada nação tem que dar sua nota própria para que o
conjunto dos sons se torne rico e harmonioso, mas o produto
massificado está destruindo esta nobre e rica diversidade,
uniformizando todos os povos. Em países colonizados como o
Brasil, isto é um grande problema.
Infelizmente a falta de
auto-estima do nosso povo é histórica: nos séculos XV, XVI e
XVII, tínhamos vergonha do elemento indígena e africano e
nos orgulhávamos do elemento português; no século XIX,
queríamos ser tipicamente franceses, e passamos a nos
envergonhar do que tínhamos de português; e agora, nos
séculos XX e XXI, queremos, caricaturalmente, ser
norte-americanos.
A cultura brasileira, que
representa verdadeiramente o sentimento do nosso povo, está
infelizmente sendo cada dia destruída, e poucos “Quixotes”,
como o próprio Suassuna, defendem com veemência a nossa
cultura popular, e lutam contra essa grande ameaça para a
cultura no nosso País.
O Brasil é um país “dividido e
dilacerado” culturalmente, e isso é resultante das condições
históricas de sua formação. No século XVI, nascemos para a
cultura ibérica e mediterrânea, herdamos o patrimônio
cultural que nos veio com a língua e os costumes
portugueses. Herdamos, também, elementos da cultura africana
(negra) e da cultura indígena (vermelha), cujos mestiços
descendentes começaram a se apropriar dos elementos
culturais ibéricos enriquecendo essas formas herdadas
através da recriação e da reinterpretação.
Depois, essa divisão aumentou,
com a chegada de novos elementos culturais (europeus e
não-europeus), que vieram através das modernas formas de
transportes e comunicação, colocando o Brasil em sintonia
com o resto do mundo. Ariano Suassuna explica:
Por tudo isso, o Povo brasileiro ainda é dividido e
dilacerado, bastando lembrar que vivemos aqui, no espaço
geográfico de um mesmo País, tempos reais os mais diversos:
São Paulo vivendo um século XX desenvolvido; o Sertão
nordestino ainda vivendo os últimos restos feudais da
‘civilização do couro’; e os indígenas do Planalto Central
vivendo no estágio de civilização florestal, esquecidos, ao
que parece, de outras culturas que viveram em outros tempos.
(2007, p.249).
Apenas alguns intelectuais têm
a capacidade de “captar” os fatos que machucam seu povo,
como é o caso do próprio Ariano, contribuindo, assim, de
forma substancial para o processo de resistência e de
fortalecimento da cultura brasileira. Somente agora os
artistas brasileiros começaram a se tornar intérpretes,
reluzindo os anseios, os gritos e as aspirações de seu lugar
e de seu verdadeiro povo.
Uma literatura erudita começou
a nascer paralela ao espírito e às características
populares, graças à grande lição do Romanceiro Popular
Nordestino, mas esse tipo de literatura acabou se tornando
mais presente no Nordeste.
O melhor, porém, é que essa literatura erudita de raízes
populares não vai sendo imposta por teorias, programas ou
ideologias: surge naturalmente, por amor e identificação. Os
artistas e escritores nordestinos tiveram a surpresa de
descobrir, de repente, que a solução de seus problemas e
dilacerações já tinha sido achada, há muito tempo, pelo
Romanceiro Popular, uma literatura de grande força, baseada
em histórias coletivas, ligadas ao que existe de mais
elementar, poderoso e primordial no sangue do Povo, dotadas
de grande poder de penetração e comunicação, por
corresponderem aos anseios coletivos mais profundos do Povo
brasileiro. (SUASSUNA, 2007, p. 250).
Para exemplificar a influência
do Romanceiro Popular Nordestino na nossa literatura
erudita, observa Carlos Newton Júnior (2002, p. 57).
No Brasil, os melhores espíritos nunca tiveram a menor
dificuldade em entender a importância do Romanceiro Popular
do Nordeste. É por isso que muitos dos nossos artistas
eruditos, dos mais variados campos da Arte, tomaram o
Romanceiro como ponto de partida para as suas criações,
contribuindo assim, uns mais, outros menos, para o
fortalecimento da Cultura brasileira, conseguindo obras que,
por serem ligadas às nossas raízes populares, são tão
nacionais quanto as realizações de nossa arte popular. No
caso específico da Literatura, lembro que dois dos maiores
romances brasileiros do século XX – Grande Sertão: Veredas,
de Guimarães Rosa, e A Pedra do Reino, de Ariano Suassuna –
são devedores do nosso Romanceiro. Esta dívida é mais
evidente em A Pedra do Reino – não é à toa que este é nosso
primeiro romance armorial. Mas ninguém, em sã consciência,
poderá subestimar a presença do romance ibérico La Doncella
Guerrera (ou Donzela que vai à Guerra, como é de conhecido
em Portugal) no romance de Guimarães Rosa; assim como em
outro romance brasileiro, bem mais recente – O Memorial de
Maria Moura, de Rachel de Queiroz.
A palavra Armorial, de início,
na língua portuguesa, era classificada apenas como um
substantivo, um nome ligado a Heráldica, livro onde os
brasões vêm registrados. Suassuna construiu um neologismo ao
empregar o substantivo armorial para dar nome ao movimento,
tornando-a um adjetivo de rara beleza. Após o lançamento do
movimento, Ariano Suassuna, em tom de brincadeira, explica o
porquê da escolha.
Primeiro porque é bonito. Segundo, porque sendo um nome
estranho, o pessoal pergunta como você – “o que é?” – e
ouvida a explicação, não esquece mais. Terceiro, porque
significa esta palavra a coleção de brasões, emblemas e
bandeiras de um povo. (SUASSUNA, apud NEWTON JÚNIOR, 1999,
p. 88).
O Movimento Armorial teve início oficialmente
no dia 18 de outubro de 1970, no Recife, através de um
concerto de Orquestra Armorial de Câmara designado “três
séculos de música nordestina: do Barroco ao Armorial”, e de
uma bela exposição de artes plásticas (gravura, pintura e
escultura). O próprio Ariano, no texto veiculado juntamente
com o programa do concerto inicial, explicou como começou a
utilizar o termo Armorial, fazendo uma ligação direta com as
manifestações do nosso Romanceiro:
Foi aí que, meio sério, meio brincando, comecei a dizer que
tal poema ou tal estandarte de Cavalhada era “armorial”,
isto é, brilhava em esmaltes puros, festivos, nítidos,
metálicos e coloridos, como uma bandeira, um brasão ou um
toque de clarim. Lembrei-me, aí, também das pedras armoriais
dos portões e frontadas do Barroco brasileiro, e passei a
estender o nome à escultura com qual sonhava o Nordeste.
Descobri que o nome “armorial” servia, ainda, para
qualificar os “cantares” do Romanceiro, os toques de viola e
rabeca dos Cantadores – toques ásperos, arcaicos, acerados
como gumes de faca-de-ponta, lembrando o clavicórdio e a
viola-de-arco da nossa Música barroca do século XVIII. (SUASSUNA,
apud NEWTON JÚNIOR, 1999, p. 87).
Mais de trinta anos depois, o Movimento
Armorial ainda está em grande evolução, atravessando algumas
fases bastante delineadas. Suassuna, em 1976, concedeu uma
entrevista ao Jornal do Comércio, do Recife, fazendo
referência a dois momentos distintos que, segundo ele,
caracterizam o Movimento a partir do seu lançamento até
então. Uma fase com características experimentais, que vai
de 1970 a 1975, e outra que era vivida naquele momento,
chamada de romançal, e iniciada no dia 18 de dezembro de
1975, no Teatro Santa Izabel, com a estréia da Orquestra
Romançal Brasileira.
Esta foi para o Armorial uma das mais
importantes e conhecidas fases. Para ilustrar, podemos
registrar um grupo de grande beleza, o Balé Armorial (origem
do Balé Popular do Recife), e o surgimento de um dos maiores
artistas ligado ao grupo; músico, bailarino, ator e
dramaturgo, Antônio Nóbrega e seu espetáculo “A bandeira do
Divino”.
Nos anos de 1980, precisamente entre 1981 e
1987, houve um profundo mergulho do Armorial. Iniciou-se uma
terceira fase, com os artistas Dantas Suassuna e Romero de
Andrade, nas artes plásticas; e no campo da música com o
Trio Romançal.
O seu criador procurou propor uma definição
geral para a arte armorial:
A arte Armorial Brasileira é aquela que tem como traço comum
principal a ligação com o espírito mágico dos “folhetos” do
Romanceiro Popular do Nordeste (Literatura de Cordel), com a
Música de viola, rebeca ou pífano que acompanha seus
“cantares”, e com a Xilogravura que ilustra suas capas,
assim com o espírito e a forma das Artes e espetáculos
populares com esse mesmo Romanceiro relacionados. (SUASSUNA,
apud NEWTON JÚNIOR, 1999, p. 97).
Utilizando a definição dada por
Suassuna, notamos que o folheto de cordel é usado como
estandarte, como uma coluna forte, direcionando os artistas
para os princípios de uma arte brasileira em várias
direções.
[...] um para a Literatura, o Cinema e o Teatro, através da
Poesia narrativa de seus versos; outro, para as Artes
Plásticas como a Gravura, a Pintura, a Escultura, a Talha, a
Cerâmica ou a Tapeçaria, através dos entalhes feitos em
casca-de-cajá para as xilogravuras que ilustram suas capas;
e finalmente um terceiro caminho para a Música, através das
“solfas” e “ponteados” que acompanham ou constituem seus
“cantares”, o canto de seus versos e estrofes. (SUASSUNA,
apud NEWTON JÚNIOR, 1999, p. 107-108).
A Arte Armorial procura
construir uma manifestação artística com o formato, cara e
cor de Brasil, lutando contra as manifestações que nos
descaracterizam e nos corrompem. De forma oportuna Jarbas
Maciel coloca o Armorial no seu merecido lugar, afirmou: “O
Armorial está para a Cultura Brasileira assim como a Epopeia
e a Mitologia estão para a Cultura Grega”. O Movimento
Armorial está cada dia mais atual.
REFERÊNCIAS
NEWTON JÚNIOR, Carlos. A Ilha Baratária e
a Ilha Brasil. Natal: Universidade Federal do Rio
Grande do Norte/Editora Universitária, 1996.
______. O Circo da Onça Malhada.
Iniciação à Obra de Ariano Suassuna. Recife: Artelivro,
2000.
______. O Pai, o Exílio e o Reino: A
Poesia Armorial de Ariano Suassuna. Recife: Editora
Universitária da UFPE, 1999.
______. O Quinto Naipe do Baralho.
Recife: Artelivro Editora, 2000.
NOGUEIRA, Maria Aparecida Lopes. O
Cabreiro Tresmalhado: Ariano Suassuna e a universalidade
da cultura. São Paulo: Palas Athena, 2002.
SUASSUNA, Ariano. Seleta em Prosa e Verso;
organização Silviano Santiago; ilustrações Zélia Suassuna. –
2 ed. – Rio de Janeiro: José Olympio, 2007.
______. Almanaque Armorial; seleção,
organização e prefácio Carlos Newton Júnior. – Rio de
Janeiro: José Olympio, 2008.
TAVARES, Braulio. ABC de Ariano Suassuna;
ilustrações Zélia Suassuna e Ariano Suassuna. – Rio de
Janeiro: José Olympio, 2007.
|