Entre as criações dos
poetas clássicos, que vieram a ser usadas pelos
nossos cantadores, estão a Quadra, a Décima, a
Sextilha em decassílabo com rimas cruzadas, e sua
variante.
A Sextilha com rimas cruzadas originou-se da
Oitava de Ariosto, estilo que Sá de Miranda (irmão de Mem
de Sá), introduziu em Portugal, no século XVI, e que possibilitou
a Camões realizar sua imortal obra "Os Lusíadas".
Contando-se com os gêneros mais usados,
com os de pouca utilização, ou com os que se encontram completamente
abandonados para o improviso, a "Poesia Popular" possui trinta e seis modalidades,
número verdadeiramente espantoso, que vem, através dos tempos,
demonstrar o grande poder criativo dos nossos bardos
matutos.
Até à época da famosa
peleja de Francisco Romano Caluete com Inácio da Catingueira, o
estilo preferido pelos cantadores era a Quadra. Após isso, apareceu
a Sextilha, pertencente à família dos setessílabos,
modalidade essa usada, não só nos grandes debates, mas, também,
na abertura de qualquer programa de viola. "É a Deusa inspiradora
dos poetas repentistas". Faremos, a seguir, um estudo dos principais gêneros
usados pelos nossos violeiros.
1. - Sextilha:
Talvez, por ser mais fácil, seja o gênero
preferido pelos nossos repentistas, principalmente no início das
apresentações. A Sextilha é uma estrofe com rimas
deslocadas, constituída de seis linhas, seis pés ou de seis
versos de sete sílabas, nomes que têm a mesma significação.
Na Sextilha, rimam as linhas pares entre si, conservando as demais em versos brancos. Leandro Gomes de Barros, grande
escritor da Literatura de Cordel, filho de Pombal, Estado da Paraíba,
escreveu:
Meus versos inda são do tempo
Que as coisas eram de graça:
Pano medido por vara,
Terra medida por braça,
E um cabelo da barba
Era uma letra na praça.
Outro exemplo que daremos é o do ceguinho
anônimo, que, após a morte de sua desventurada mãe
e guia, chorou, com os olhos d'alma, seu infortúnio:
Já tive muito prazer,
Hoje só tenho agonia!
Não sinto porque sou cego,
Eu sinto é falta do guia!
Quando mamãe era viva,
Eu era um cego que via!
Ou, ainda, a de Francisco Pequeno, repentista
paraibano, nesta inteligente análise:
Uma morrinha no gado
É derrota em fazendeiro,
E um cavalo ruim
derrota dum vaqueiro!
A derrota do país
É dever no estrangeiro!
2. - Sete Linhas ou Sete Pés
No início do século atual, o
Cantador alagoano Manoel Leopoldino de Mendonça Serrador fez uma
adaptação à Sextilha, criando o estilo de sete versos,
também chamado de sete linhas ou de sete pés, rimando os
versos pares até o quarto, como na Sextilha; o quinto rima com o
sexto, e o sétimo com o segundo e o quarto. Exemplifiquemos com
o próprio criador do gênero:
Amigo José Gonçalves,
Amanhã cedinho, vá
A Coatis, onde reside
Compadre João Pirauá;
Diga a ele dessa vez,
Que amanhã das seis a seis,
Deus querendo, eu chego lá!
José Duda do Zumbi (Manoel Galdino da
Silva Duda), no ocaso da vida, com a experiência da idade, disse
para José Miguel, jovem companheiro, com quem duelava:
Fui moço, hoje estou velho!
Pois o tempo tudo muda!
Já fui um dos cantadores
Chamado Deus nos acuda ...
Este que estão vendo aqui
Foi Zé Duda do Zumbi!
Hoje Zumbi do Zé Duda!
3. - Moirões:
Dentro da contextura da Poesia Popular, o
Moirão tem sido o gênero a sofrer grandes variações
ao longo do tempo. "É uma modalidade, onde os cantadores se revezam
dentro da mesma estrofe. No século passado, o Moirão em quintilha
substituiu o Moirão de seis versos, ambos em desuso. No Moirão
de seis linhas, um Cantador fazia dois versos, o outro intercalava com
dois, e o iniciante fechava a estrofe. Vejamos um Moirão de seis
linhas, cantado por Romano e Inácio:
I Seu Romano, estão dizendo
Que nós não cantamos bem!
R Pra cantar igual a nós,
Aqui, não vejo ninguém!
I E o diabo que disse isto
É o pior que aqui tem!
No Moirão de cinco versos, que veio
depois do de seis, havia um revezamento dos cantadores, nas duas linhas
iniciais da estrofe, cabendo ao primeiro os três últimos versos
para o fechamento da estância. Do encontro entre os paraibanos Romano
Elias da Paz e Francisco Pequeno, colheu-se:
F.P. No Mourão não deixo nó!
R.E. O meu eu lavro de enxó!
F.P. Colega, estou pesaroso ...
No recinto primoroso,
Sei que fico a cantar só!
4. Moirão de sete pés:
O Moirão de sete pés é
o mais usado atualmente. Formado por uma estrofe de sete linhas, cabendo,
ao iniciante, a formação de cinco versos, isto é,
os dois primeiros e os três finais; enquanto a cargo do segundo cantador
ficam os versos de ordem três e quatro. Os pernambucanos Agostinho
Lopes dos Santos e José
Bernardino de Oliveira assim iniciam um duelo:
A.L. Não vã você achar ruim
Este Mourão a doer!
J.B. Eu acredito, Agostinho
Naquilo que posso ver!
A.L. Companheiro, não se gabe,
Que a pessoa que não sabe,
Agrava a Deus sem querer!
Esse gênero pode ser cantado por três
violeiros. Pedra Azul inicia:
Vou dar começo à questão
Pra ver quem ganha no fim!
Canhotinho, referindo-se a Severino Pinto,
que tomava parte da porfia, foi mais agressivo:
Eu morro e não tenho medo
Dum Pinto pelado assim!
Pinto, que não perdoa, finalizou violento:
Sou pelado, sem canhão,
Por causa de um beliscão
Que tua mãe deu em mim!
5 - Moirão trocado:
A diferença deste gênero para
o anterior está exclusivamente no aparecimento de palavras que se
alternam nas quatro primeiras linhas da estância. Lourival Batista
e Severino Pinto dão uma demonstração deste estilo:
L. Eu, da graça, faço o riso,
E, do riso, faço a graça!
P. E da massa, faço o pão,
E do pão, eu faço a massa!
L. Você desgraçou a peça:
Que u'a misturada dessa
Não há padeiro que faça!
6 - Moirão que você cai:
É um gênero muito apreciado,
com versos de sete sílabas, como nos demais, onde as estrofes aparecem
com doze linhas, havendo quatro versos comuns a elas: terceiro, sexto,
nono e décimo segundo. O iniciante é responsável pela
formação dos versos: primeiro, segundo, terceiro, sétimo,
oitavo, décimo, décimo primeiro e
décimo segundo. Ficando os demais a cargo do parceiro intercalante.
Apreciemos, com Lourival e Otacílio, um Moirão que você
cai:
L. Meu irmão, a hora é esta,
De travar-se um desafio!
Lá vai uma, duas e três ...
O. Mas, em luta eu não confio
Porque desanima a festa!
Lá vai quatro, cinco e seis ...
L. Meus versos ninguém detesta
Porque desafio distrai!
O. Cuidado que você cai...
L. Caio tomando sorvete,
Você levando cacete,
Se for por dez pés lá vai!
7 - Moirão voltado:
Gênero relativamente novo, com estrofe de treze
versos de sete sílabas, em que os preliantes vão se alternando
até a oitava linha, para, em seguida, unirem suas vozes, como em
coro, neste estribilho:
Isso é que é Mourão voltado,
Isso é que é voltar Mourão!
Em seguida, repetem a oitava linha com o estribilho
acima. Para melhor compreensão, imaginemos os cantadores A e B:
A. Tudo, neste mundo, volta.
B. Com você, combino eu!
A. Volta o rico e o plebeu;
B. Volta quem prende e quem solta ...
A. Volta a paz e a revolta;
B. Volta o sim e volta o não!
A. Volta até Napoleão
B. Que há tempo está sepultado...
A/B Isso é que é Mourão voltado,
Isso é que é voltar Mourão!
Que há tempo está sepultado...
Isso é que é Mourão voltado,
Isso é que é voltar Mourão!
8 - Décima:
Embora de origem clássica, é
a Décima um estilo muito apreciado, desde os primórdios da
Poesia Popular, principalmente por ser o gênero escolhido para os
motes, onde os cantadores fecham cada estrofe com os versos da sentença
dada, passando a estância a receber a denominação de
glosa. Como o próprio nome diz, Décima é uma estrofe
ou estância de dez versos de sete sílabas, assim distribuídos:
o primeiro, rima com o quarto e o quinto; o segundo, com o terceiro; o
sexto, com o sétimo e o décimo, e o oitavo, com o nono. De
Antônio Ugolino Nunes da Costa (Ugolino do Sabugi), primeiro grande Cantador brasileiro, extraímos
duas estrofes, em Décima, de seu famoso poema "As obras da Natureza":
As obras da Natureza
São de tanta perfeição,
Que a nossa imaginação
Não pinta tanta grandeza!
Para imitar a beleza
Das nuvens com suas cores,
Se desmanchando em louvores
De um manto adamascado,
O artista, com cuidado,
Da arte, aplica os primores.
Brilham, nos prados, verdumes
De um tapete aveludado;
Brilha o rochedo escarlado,
Das penhas seus altos cumes;
Os montes formam tais gumes,
Que a gente, os observando,
Vê como que se alongando,
Sumir-se na imensidade...
Nossa visibilidade
os perde se está olhando.
O mote é uma sentença ou pensamento,
formado de um ou dois versos, com que se finalizam as estrofes. Os primeiros
motes eram dados em Quadra, ficando o poeta obrigado a improvisar quatro
Décimas, contendo cada uma, pela ordem, um verso ou linha da Quadra.
Com a evolução, o mote passou de quatro versos para dois,
e, mais raramente, usa-se o de um verso. O mote de duas linhas pode-se
apresentar de duas maneiras. Na primeira, já em desuso, a quarta
linha da estrofe é formada pelo primeiro verso do mote e a décima
pelo segundo. Exemplifiquemos com o mote dado pelo Dr. Raimundo Asfora,
descendente de árabe, ao companheiro Otacílio Batista:
Tenho n'alma as tatuagens
Da minha origem cigana.
Apreciemos a técnica do valoroso artista,
na formação das estrofes:
Fui criado entre as miragens,
Na solidão do deserto,
De um povo que andava incerto,
Tenho n'alma as tatuagens:
São abstratas imagens
De Alá, que não se profana;
Dos chefes de caravana,
Me orgulho em ser porta-voz:
Os primitivos heróis
Da minha origem cigana!
Os antigos personagens,
Defensores dos escravos;
De uma legião de bravos,
Tenho n'alma as tatuagens!
Fugindo às velhas linhagens
Da imposição duridana,
Por vontade
soberana,
Ismael foi peregrino,
O primeiro beduíno
Da minha origem cigana!
Na segunda, os versos do mote ficam conjugados,
isto é, formam as linhas nove e dez da estrofe. Vejamos a Décima
com este final comovente:
Ao pé do monte Calvário,
Jesus chorava e gemia!
Junto de dois malfeitores,
Via-se um pobre moribundo:
Era o Salvador do mundo,
Senhor de todos senhores!
Refúgio dos pecadores,
De quem sofre nostalgia!
Se quisesse, sairia
Daquele estado precário:
Ao pé do monte Calvário,
Jesus chorava e gemia!
O mote de uma linha é raramente usado.
Seu único verso fecha a estrofe.
9 - Martelo agalopado:
O Martelo atual, criação do genial violeiro
paraibano Silvino Pirauá Lima, é uma estrofe de dez versos,
em decassílabos, obedecendo à mesma ordem de rima dos versos
da Décima. Todavia, sua denominação não vem
do fato de ser empregado como meio de os contadores se martelarem durante
suas pugnas. Sua significação está ligada ao nome
do diplomata francês Jaime de Martelo, nascido na segunda metade
do século XVII, que foi professor de literatura na Universidade
de Bolonha, portanto, o criador do primeiro estilo. Jaime de Martelo suprimiu
duas linhas finais da Oitava de Ariosto, ou Oitava camoniana, formando
o que se denominou de Martelo cruzado, isto é, no Martelo antigo a primeira linha rima com
a terceira e a quinta; a segunda, com a quarta e a sexta. O exemplo deste
gênero está na estrofe do paraibano José Camelo de
Meio Rezende:
O orgulho nasceu em noite escura,
E é filho da triste ignorância,
Ao descer o seu corpo à sepultura,
Cai-lhe verme por cima, em abundância,
E seu todo se torna uma figura,
Que nos causa a maior repugnância.
Depois, como variante, apareceu o Martelo com
rimas destacadas, também denominado de Martelo solto ou de Sextilha
em decassílabo. O diplomata brasileiro Francisco Otaviano utilizou-se deste gênero para cantar suas "Ilusões da
Vida":
Quem passou pela vida em branca nuvem,
Num plácido repouso, adormeceu;
Quem não sentiu o trio da desgraça,
Passou pela vida e não sofreu:
Foi espectro de homem, não foi homem,
Só passou pela vida e não viveu.
Feitas essas considerações sobre
os Martelos de seis versos, mostraremos o estilo atual, variante da Décima,
criação do violeiro Silvino Pirauá Lima, conforme
estrofe do poeta lira Flores, citada pelo Dr. Ariano Suassuna, num trabalho
sobre os cantadores:
Quando as tripas da terra mal se agitam,
E os metais derretidos se confundem,
E os escuros diamantes que se fundem,
Da cratera ao ar se precipitam.
As vulcânicas ondas que vomitam
Grossas bagas de ferro incendiado,
Em redor, deixam tudo sepultado
Só com o som da viola que me ajuda,
Treme o sol, treme a terra, o tempo muda,
Eu cantando Martelo agalopado.
Esse gênero belo e difícil via
crucis dos fracos repentistas, é empregado não só
nos grandes debates, mas nos trabalhos escritos, em geral.
10 - Galope à beira-mar:
Gênero muito apreciado pelos apologistas da Poesia
Popular que, juntamente com o Martelo, recebeu a
denominação de Décima de versos compridos. O Galope
é assim chamado em virtude de ser empregado mais em
temas praieiros. È constituído de uma estrofe de dez
versos de onze sílabas, com o estribilho cuja
palavra final é mar.
Foi
criado pelo violeiro cearense José Pretinho (não o
da peleja do cego Aderaldo), filho de Morada Nova,
vaqueiro do "coronel" José Ambrósio, falecido em
Lavras da Mangabeira. Contam que José Pretinho, após
levar uma surra, em Martelo, de Manoel Vieira
Machado, cantador piauiense, veio a Fortaleza e, na
Praia de Iracema, observou o mar, cujo movimento das
ondas se parecia com o galope dos cavalos da fazenda
do "coronel" Ambrósio. Criado o estilo, procurou o
adversário para a desforra. Deixou-o aniquilado.
Mergulhão de Sousa divulgou o gênero por todo o
Nordeste. Dimas Batista, cantando no Teatro Santa
Isabel, em Recife, improvisou sob aplausos:
Eu
cantando a Galope ninguém me humilha,
Tudo que existe no mar eu aproveito,
Na ilha, no cabo, península, estreito,
Estreito, península, no cabo, na ilha,
Em navio, em proa, em bússola e milha!
Medindo a distância para viajar,
Não quero, da rota, jamais me afastar,
Porque me afastando o destino saí torto;
Confio em Deus avistar o meu porto,
Cantando Galope na beira do mar!
José
Limeira, Poeta do Absurdo, dá-nos exemplo de
tremendo disparate:
Conheço,
demais, o rio Paraíba,
Que nasce sozinho, lá dentro da praia!
Parece um cambito de pau de "cangaia",
As suas enchentes têm mel de tubiba;
Na frente, recebe o rio Furiba,
passa correndo pra Madagascar;
Alaga Recife, demora em Dacar,
No tempo de inverno é seco demais:
Foi quando "Oliveiro" enfrentou Ferrabrás,
Que luta pai-d'égua na beira do mar!
O violeiro cearense Simplício Pereira da Silva,
residente na vila de Barreiras, município de
Redenção, criou um estilo interessante de Galope,
que ele denominou de "Galope por dentro do mato".
Trata-se de um gênero que cuida, exclusivamente, de
temas sertanejos. As estrofes abaixo são de sua
autoria:
Companheiro, eu do mar não conheço nada,
Nunca fui à praia e menos ao banho,
Pois o mar é um lago pra mim tão estranho,
Que parece até um mistério de fada ...
Eu gosto bastante é de uma caçada,
Lá no meu sertão, muito embora que ingrato!
Pra você não pensar que estou com boato:
Uma meia hora vamos pelejar. .
Pegue lá seu peixe por dentro do mar,
Que vou caçar peba por dentro do mato.
No
sertão, à caçada, eu fui certo dia,
Num mato fechado, bem desconhecido,
Mas eu, na caçada, fui meio atrevido;
Chegando no mato, o sol já pendia ...
Tinha onça por praga, e eu não sabia;
Saí pisando devagar no sapato;
Senti um mau cheiro, pensei que era gato.
Quando vi a onça e a onça me viu:
E o corpo tremeu e meu rifle caiu...
Foi carreira feia por dentro do mato!
Nota do
editor do Jornal de Poesia:
Em
matéria de Galope na beira do mar, este, de Luciano
Maia, é simples esplendoroso. Clique na figura para
ver que perfeição.
11 - Parcela:
A
Parcela é uma Décima com versos de quatro ou de
cinco sílabas, conhecida também pela denominação de
Décima de versos curtos.
Há
cantadores que ainda usam a Parcela para a
"Despedida", que costumeiramente é feita no final
das apresentações. Coutinho Filho, em Violas e
Repentes, apresenta duas estrofes, com quatro
sílabas em cada verso, da peleja de Pedra Azul com
Manoel da Luz Ventania:
Eu sou
judeu
Para o duelo!
Cantar Martelo
Queria eu!
O pau bateu,
Subiu poeira!
Aqui na feira,
Não fica gente!
Queima a semente
Da bananeira!
Manoel da
Luz Ventania revidou-o pelo ataque a Bananeiras,
terra de seu nascimento:
Sou
bananeira ...
Do alagadiço!
Você diz isso
Por brincadeira!
Meto a madeira,
Quebro a viola!
Só me consola
Te ver, um dia,
De vara e guia,
Pedindo esmola!
Da
peleja de José Félix com o cego Benjamim Mangabeira,
recentemente falecido em Fortaleza, colhemos estas
Parcelas de cinco sílabas:
J.F.
Sou velho
na vida,
Sou feito na arte…
De parte a parte,
Conheço a batida!
Na trilha seguida,
Levanta poeira!
E, na cachoeira,
As águas descendo,
E o povo dizendo:
"Correu, Mangabeira!"
B.M.
Eu dou,
tu apanha(s)!
Eu vou e tu fica(s)!
Levando tabica
Por causa da manha!
Foi tua campanha,
Caído no porre…
Eu vivo, tu morre(s)!
É no K, é no L!
Conhece, Zé "Fele",
Mangaba não corre!
Da
imortal peleja de José Pretinho com o cego Aderaldo,
escrita pelo genial poeta piauiense, de Parnaíba,
Firmino Teixeira do Amaral, registramos estas
Parcelas de cinco sílabas:
Cego
Aderaldo:
Negro é
raiz
Que apodreceu!
Casco de judeu,
Moleque infeliz!
Vai pra teu país:
Senão eu te surro,
Dou-te até de murro!
Tiro-te o regalo,
Cara de cavalo,
Cabeça de burro!
Pretinho:
Fale
doutro jeito,
Com melhor agrado,
Seja delicado,
Cante mais perfeito:
Olhe, eu não aceito
Tanto desespero...
Cante mais maneiro,
Com verso capaz,
Façamos a paz:
Reparta o dinheiro.
12 - Quadrões:
Ao longo do tempo, o Quadrão tem sido o gênero a
receber o maior número de alterações, não só na sua
forma interna, mas, também, na estrutura das
estrofes, em geral. O Quadrão antigo é formado por
uma estância de oito linhas, pertencente à família
dos setessílabos, rimando o primeiro verso com o
segundo e o terceiro; o quarto com o oitavo, e o
quinto com o sexto e o sétimo, contando, no final, o
estribilho de sua denominação. Com Lourival Batista,
um Quadrão à antiga:
O
Cantador repentista,
Em todo ponto de vista,
Precisa ser um artista
De fina imaginação,
Para dar capricho à arte,
E ter nome em toda parte,
Honrando o grande estandarte
Dos oito pés de Quadrão!
Posteriormente, o Quadrão em oito apareceu com
ligeira modificação na sua forma interna, isto é, o
quarto verso que rimava somente com o oitavo passou
a rimar também com o quinto. Numa homenagem póstuma
ao ilustre mestre Lacerda Furtado, transcrevemos um
Quadrão no novo estilo, por ele escrito e oferecido
ao grande cordelista paraibano Joaquim Batista de
Sena:
Namorando
a Salomé,
Vi a barca de Noé,
Palestrei com Josué,
Com Jacó e Salomão;
Travei luta com Sansão,
Nadei no delta do Nilo,
Montado num crocodilo,
Cantando os oito em Quadrão!
13 - Quadrão trocado:
Com versos de doze sílabas, e conservando a
mesma ordem das rimas do estilo anterior, criou-se o
Quadrão trocado, gênero que exige muita segurança e
desembaraço do repentista; apresentando, a partir da
terceira linha, palavras que vão se alternando no
verso subseqüente. As duas últimas linhas da estrofe
formam o estribilho que se encerra com a palavra
Quadrão. O repentista Dimas Batista improvisou esta
difícil estrofe:
É no sangue, é no povo, é no tipo, é
na raça,
É no riso, é no gozo, é no gosto, é na
graça,
É no pão, é no doce, é no bolo, é na
massa:
É na massa, é no bolo, é no doce, é no
pão;
É cruzado, é vintém, é pataca, é
tostão,
É tostão, é pataca, é vintém, é
cruzado;
É Quadrão, é Quadrinha, é Quadrilha, é
Quadrado,
É Quadrado, é Quadrilha, é Quadrinha,
é Quadrão.
Não
só na forma, mas na estrutura, o Quadrão sofreu
alterações bem acentuadas. Daí, quatro tipos de
Quadrões incluídos na Décima; todos com o estribilho
na última linha da estrofe.
Coutinho Filho apresenta, de Antônio Batista Guedes,
sobrinho de Ugolino do Sabugi, dois tipos de
Quadrões. O primeiro diferença-se do segundo por ser
este dialogado:
Longe do mar de Netuno,
O cocheiro Faetonte
Percorria o horizonte
No seu coche de tribuno,
De Anfitrite e de Juno,
Tinha ele a proteção!
Apolo, tendo na mão
Um livro de poesia,
Me ensinou com galhardia
Cantar dez pés em Quadrão!
A. Júpiter onipotente,
B. Tendo o trono conquistado,
A. Por ter seu pai expulsado,
B. Do céu traiçoeiramente
A. Porque, de reinar somente,
B. Era a sua pretensão!
A. Da maior constelação,
B. Íris, num carro, desceu,
A. E a inspiração me deu
B. Nestes dez pés a Quadrão!
O Quadrão
dialogado apresenta-se agora, com uma pequena
modificação: o último verso deste novo tipo é
cantado pelos dialogantes, e não por um só, como no
caso anterior. A estrofe que se segue é de um
desafio dos cantadores cearenses Simplício Pereira
da Silva e Manoel Furtado, quando dialogavam,
fazendo referências a um sapo que penetrava no
salão, onde contavam:
S.P.
Colega, lá vem um sapo,
M.F. Ou por outra, um cururu!
S.P. Não vem vestido nem nu,
M.F. Porém vem batendo o papo!
S.P. Eu, nele, dou um sopapo!
M.F. Boto fora do salão ...
S.P. Pego, nele, com a mão;
M.F. Depois rebolo no mato ...
S.P. O guaxinim come o fato,
S.P. e M.F. Lá se vai dez a Quadrão!
Há pouco,
os irmãos Batista criaram este gênero de Quadrão em
dez, que se diferença do estilo anterior, apenas por
ser constituído de perguntas e respostas, o que vem
a exigir grande parcela de esforço e de dom poético:
cada pergunta deve ser respondida com inteligência e
segurança, para o bom êxito da estrofe. Imaginemos
dois cantadores (A e B), num duelo cerrado:
A. Para
que serve a ciência?
B. Para evoluir o mundo.
A. Para que serve um segundo?
B. Para aumentar a existência.
A. Para que serve a seqüência?
B. Pra dar continuação.
A. Pra que serviu Lampião?
B. Pra dar trabalho a soldado,
A. Naquele tempo passado...
A e B. Lá se vai dez a Quadrão!
14 - Gabinete:
Gênero que foi muito apreciado pelo imortal cego
Aderaldo, porém de pouco uso atualmente. É cantado
em versos de sete sílabas, sem número de linhas
determinado, e com estribilhos nas linhas: sete,
oito, nove, dez e nas duas últimas. Otacílio Batista
exemplifica:
O povo
deseja ouvir
Um Gabinete bonito;
Poeta, só acredito
Se você não me mentir.
Trate de se prevenir
Para poder cantar bem
Eu comprei um cartão
Para viajar no trem:
Sem cartão ninguém vai,
Sem cartão ninguém vem!
Vai e vem, vem e vai,
Vem e vai, vai e vem.
Quem não tem o que eu tenho,
Morre danado e não tem!
Quem estiver com inveja,
Se esforce e faça também ...
Cavalo bom é ginete;
Quem não canta Gabinete,
Não é cantor pra ninguém!
O
violeiro cearense, Alberto Porfírio, criou um estilo
de Gabinete mais interessante e simplificado: o
Cantador faz uma Quadra, em seguida, seis versos de
onze sílabas, com rimas que se casam (rimas iguais),
desenvolvendo, nestes, o tema da Quadra. Para
finalizar, faz três versos de sete sílabas, rimando
o primeiro com a estribilho (Quem não canta
Gabinete), e o terceiro com os versos da Sextilha. O
exemplo abaixo é do próprio criador do estilo:
Quem é forte não se gaba,
Não se altera nem se agita,
Mas qualquer homem se acaba
Por uma mulher bonita!
Amei uma jovem que me queria bem,
Eu gostava dela mais do que ninguém;
Chegou lá um cabra mexendo xerém,
Mas eu tendo raiva, não temo a quem vem!
De faca e de bala, eu brigo com cem...
Quebramos cadeira, víramos um trem!
Resolvi foi no cacete;
Quem não canta Gabinete,
Não se diz que canta bem.
15 - Toada alagoana:
É um
gênero pouco usado, porém muito bonito, em virtude
das rimas encadeadas e da agradável toada. Sirvo-me
de uma estrofe de Otacílio Batista, companheiro de
trabalho, para mostrar este gênero:
Vai
Otacílio Batista,
Repentista,
Neste momento tão forte,
Num estilo diferente,
No repente,
Correndo em busca da sorte...
Em noite de lua cheia,
Sou a sereia
Dos oceanos do norte!
Ao lado
da toada alagoana, existe o Martelo alagoano, cuja
diferença do Martelo agalopado está na toada, que é
um pouco mais lenta, bem como no estribilho, que
apresenta no final das estrofes com a palavra de sua
denominação.
16 - Meia quadra:
Entre as modalidades mais difíceis da Poesia
popular, está a Meia Quadra, estilo que apresenta
estrofes com número de versos não determinados, e
com quatro linhas iguais na parte final:
Quando eu
disser vida e meia,
Você diga meia vida;
Quando eu disser ida e meia,
Você diga meia ida,
Quando eu disser lida e meia,
Você diga meia lida.
Diga coração e meio.
Se eu disser meio coração;
Se eu disser meia baleia,
Você diga meio cação,
Se eu disser meio cação,
Você diga meia baleia;
Quando eu disser Meia Quadra,
Você diz que é Quadra e Meia,
Quando eu disser Quadra e Meia,
Você diz que é Meio Quadrão!
17 - Dez pés
de queixo caído:
Este gênero, ainda em voga, está
incluído na Décima, apresentando, no final de cada
estrofe, este estribilho: "NOS DEZ DE QUEIXO
CAÍDO":
É tão
grande o meu valor,
Que o mundo todo o conhece;
A poesia se oferece...
Eu, dela, sou professor!
Eu não temo a Cantador
Por mais que seja sabido!
Faz tempo que não divido
O que tenho com ninguém:
Assim vou passando bem
Nos Dez de Queixo Caído!
18 - Gemedeira:
Pela
própria denominação do gênero, vemos que serve para
temas gracejantes. É a Gemedeira um estilo de
poesia, caracterizado pela interposição de verso de
quatro, ou, raramente, de duas sílabas, entre a
quinta e a sexta linhas da Sextilha, formado pelas
interjeições: "ai! e ui! ou ai! e hum!" Após cantar
outros estilos com José
Soares do Nascimento, Severino Pinto mudou para
Gemedeira:
Cantei
Mourão a Galope,
Versejando como entendo!
Vou passar pra Gemedeira,
Como me pedem, eu atendo!
Há pouco, cantei me rindo.
Ai! ai! ui! ui!
Agora canto gemendo!
Com a
supressão de "ui! ui!", teremos o sexto verso com
duas sílabas, conforme estrofe de José Soares do
Nascimento:
Sem
querer tirar nem pôr,
Você chora e eu também!
Como nos falta dinheiro,
Tira-se, aqui, de quem tem!
Choro de Cantador liso...
Ai! ai!
Não se oculta de ninguém!
Dissemos,
no início deste capítulo, que trinta e seis eram os
estilos da Poesia Popular. É bem verdade que não
descrevemos esse total, pois achamos melhor estudar
aqueles ainda em uso, com maior ou menor
intensidade. Todavia, considerando seus grandes
empregos no passado, faremos um ligeiro estudo sobre
a Quadra e sobre a Ligeira.
19 - Quadra:
Definitivamente retirada da área do improviso, a
Quadra é constituída de uma estrofe de quatro
versos, que podem ser de sete ou de dez sílabas.
Todavia, iremos apresentar mais a sete sílabas, por
ser a melhor a se enquadrar na temática deste livro.
Quadra simples: Na quadra simples, somente as
linhas pares são rimadas, permanecendo as demais em
versos brancos.
Doutor Manuelito Eduardo Campos, em sua desabusada
obra Cantador, Musa e Viola, traz esta quadra de
origem latina (Séc. XIII), mas que ele atribui a
José Matos, cearense do Cariri:
No seio da virgem pura
Entrou a Divina Graça
Como entrou, assim saiu
Qual o sol pela vidraça!
Quadra oposta: Tem a denominação acima, em
virtude de o primeiro verso rimar com o último. O
segundo e o terceiro foram a chamada rima paralela:
Quem ama moça solteira
De Deus, terá perdão:
Porque nosso pai Adão
Teve sua companheira!
Quadra cruzada: O jovem trovador cearense e
jornalista gabaritado, César Coelho é o autor destas
belíssimas Quadras, que nos escrevemos com
satisfação:
Coisa linda é madrugada,
Com luar pelo terreiro,
Viola em beira de estrada,
Cantiga de violeiro.
Quero a paz do teu carinho,
Mil cantigas de viola,
Quero ouvir um passarinho,
Que não seja na gaiola ...
Quadra persa: É assim denominada por ser de
criação dos poetas persas. Nela, riam-se as linhas
1ª, 2ª e 4ª. A 3ª constituída de um verso branco.
O brilhante a respeitável mestre, Rebouças
Macambira, dá-nos este exemplo ao traduzir o poema
Rubayat, do imortal Omar Khayan:
Desperta que a rabugenta madrugada
Do céu espanta a noite constelada
E sol envolve a torre da mesquita
Em feixe de luz avermelhada.
20 - Ligeira:
Como
a Quadra, a Ligeira está afastada totalmente do
terreno do improviso. Sua denominação vem do fato de
ser cantada com a maior rapidez possível. O Cantador
fazia versos de sete sílabas, com rimas obrigatórias
para os de ordem par, e sem número de linhas
determinado.
No
capítulo anterior, temos um exemplo de Ligeira, na
saudação do poeta Manoel Bandeira aos violeiros do
Nordeste. Finalizando o estudo sobre os gêneros
principais da Poesia Popular, confessamos que o
fizemos com o propósito de prestar, aos amantes da
nossa "Poesia Bárbara", certos esclarecimentos que
há tempos eram esperados.