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Gil Cleber

 

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Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova, detail
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poesia:


 

 

Crítica, ensaio e comentário:

 


Fortuna:

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Uma notícia do poeta: 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ana Cristina Souto

 

Maria Georgina Albuquerque

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Allan R. Banks (USA) - Hanna

 

 

 

 

 

 

Gil Cleber

 

 


 

Vento e folhas

 

Vento,

Vento em folhas que se

           desfolham,

       galho contra a vidraça,

       cristal partido...

 

Vento,

Vento em flor,

Em pétalas,

                       pássaro de pedra e

                  asas metálicas,

                  acéfala rosa

                        despetalada.

 

Vento e folhas,

             lápide caída,

                        rumor...

         pétalas falíveis,

         metálicas flores impossíveis,

                   despetaladas rosas

                        sem cor.

 

(1988 [?] Modificado várias vezes.)

 

 

 

 

Monólogo nº 43

 

 

Os sonhos partem de mim como navios,

         antigos veleiros cujas velas abertas ao vento

         não são velas

                   mas adeuses acenados ao longe;

         provectas galeras,

                   tardas e melancólicas,

         que partem para seus naufrágios,

                   para seus portos impossíveis,

         que não voltam ao cais

                   porque partiu-se o leme,

                   e desfizeram-se os rumos…

 

Devera talvez ter partido também;

         mas de onde?

         E para onde?

Perguntar para onde tolheu minha ida,

         e fiquei.

E quando quis saber onde havia ficado

         não encontrei resposta.

Vi que não teria porto de chegada, se fosse,

         mas onde quer que estivesse

         estaria partindo sempre;

         mas também ficando sempre

         e não teria porto de partida

         se ficasse.

E aprendi que ir ou ficar eram a mesma coisa.

A consciência disto sói incomodar-me por dentro

Como incomoda-me,

         por fora,

         esta liberdade de não ter aonde ir.

Ah, o que não daria para partir com essas velas vadias sobre as águas

         até sentir no rosto o bafejar de outra terra tropical que existisse além do meu puro desejo,

         real como é real querê-la!

Ah, ou então ficar,

         ficar numa terra tropical

         que eu diria minha

         e onde eu seria o que sou

         menos essa tristeza.

Entanto fico ou parto,

         e é só o que posso dizer.

Meu peito é um cais deserto

         e o coração pulsa como a ondulação das águas de encontro ao atracadouro.

E todo o meu ser é essa tarde de sol na solidão do cais,

Na quietude de não haver mais sonhos…

Eu era apenas menino quando ouvi sobre o mar pela primeira vez,

E não sabia o que era o mar.

Um dia

         – e eu nunca soube desse dia –

Quis ser um menino vendo partirem os navios,

         e não fui.

Quis procurar o cais,

         e não havia cais,

         não havia nada.

Quis, pelo menos, em minha terra ter palmeiras onde cantasse o sabiá,

Mas não tive terra nem palmeiras,

         e o meu sabiá canta numa gaiola.

Também não tive navios,

         mas tive sonhos…

(Set.91)

 

 

 

Monólogo nº 1

 

Estou imóvel:

Este é o meu momento presente

em que não há hora para rir

                               nem para chorar

                               nem para ter medo ou sentir dor.

Meu instante é fixo e não vai além,

Se me movo não mudo

e se penso, continuo o mesmo.

Estar aqui ou em qualquer outro lugar não importa.

A ponte que cruza o rio cruza simplesmente o rio,

                                                 mas não meu abismo,

E esta estrada leva a muito longe,

                                        mas a muito aquém de mim, porque ruas e estradas não me alcançam.

 

A água corre sob os meus pés

                                        e a ponte não é mais imóvel do que eu.

O rio corre em direção oposta à minha imobilidade,

E em algum lugar há outra ponte e nela

também eu estou.

Quem sou eu nessa outra ponte?

                                        Não sei.

E por que me pergunto se não sei a resposta? Se não

sou capaz de ver meu outro rosto

                                ou, vendo-o, de reconhecê-lo?

 

Entre mim e mim

                                      fica esse rosto que não conheço,

                                            essa face estranha que seria de outro

                                                   se não fosse minha.

Debruço-me no beiral

                                      e não há mais ninguém comigo.

O tempo não existe,

                                      quem existe sou eu

                                                                  e apenas eu passo,

                ainda que continue parado, porque passar não altera meu estado mais profundo,

E mesmo quando estiver morto um dia

                                 na outra ponte morrerei também

                                 mas continuarei lá, e os que passarem

                                 me verão, e os que não passarem

                                 poderão ouvir sobre mim.

Mas isto não é consolo.

Não distingo entre a vida e o permanecer quieto,

Mas não quero perdê-la

                                         por enquanto.

        

Não sou covarde nem forte,

                                não me atrevo, mas não fujo,

                              prefiro ouvir sem responder

como a ponte, pela qual passa o rio murmurando sem que dela obtenha qualquer sinal – a não ser estar ali e uma sombra que o sol acaso lance sobre as águas.

Assim permaneço

E recolho-me a mim mesmo,

                                                desconhecido deserto

                                                em que pés não trilham meu rastro

                                                e olhos não encontram direção,

Porque estou imóvel

                                     e em mim não há caminhos possíveis.

 

(Rio, 11 de julho de 89)

 

 

Dia de caboclo 

 

– De manhã,

              cedinho,

               levantar-se.

               Lenha

no fogão,

               atear o fogo:

                           logo

                           um café quentinho

                           para quem tem

 sono.

Penteia os meninos, cabocla.

                           Caboclo

                           pra roça,

                           carro

                 de boi na estrada,

                                   lá vai.

 

– À hora

                   do almoço,

                   o caboclo no banco

                   cisma,

                   pasma,

cotovelos na mesa.

                   Boa a

                   cabocla – penca de filhos –

conta vê-los

                   crescidos e

enquanto

                   pensa

                   serve a comida.

Que depois

é comprida a tarde,

até que cumprido o dia no roçado

volta para casa o caboclo cansado.

 

– Enfim é noite,

                    é hora da janta.

                    Já não tanto

                    faminto

mas exausto,

        eis que é vasto o sonho, caboclo,

        eis que é alto,

                            mas te sobra somente

                                   tua cabocla,

                                    tua semente,

                                       tua vida sem dono,

                                a cama

                            e o abraço

                             baraço

                                do sono.


(1989-1994)[i]

 


[i] O   manuscrito deste poema permaneceu por cinco anos em cima de minha mesa, enquanto eu não dava uma forma final ao poema, que foi concluído em 1994. O poema sofreu, no entanto, pequenas modificações após essa data.

 

 

 

Monólogo no 37

  

(Poema premiado em 3o lugar no Concurso

dos Servidores do Estado, 1994.)

 

 

(A morte é um gesto imóvel

         estático

         congelado na textura da tarde.)

Cada gesto meu

Reflete a erosão do meu peito antigo,

         do meu coração sem crenças,

         do que prefere adormecer sobre as pedras,

         um sono rupestre

         em soalheira de outono.

(Hoje

         meu pensamento é como a encosta de um barranco pela qual as águas da chuva correram abrindo sulcos tortuosos e profundos.

É assim um pensamento lavado e gasto,

         rasgado e nu

         a mostrar que por dentro é tão estéril quanto na superfície.

Que pensamento é esse

         na imobilidade em que me detenho?

         [Será essa a imagem da tarde que antecede a Noite, a Grande Noite])

Homens e mulheres,

Nesta tarde fervente,

Dormem o sono das sestas.

Minha inquietude pesa,

         mas os adormecidos ressonam pesadamente na digestão de seus almoços fartos.

Logo hão de despertar,

         espreguiçar-se,

         e sair,

         cada qual para seu destino, na intrincada trama da cidade.

Eu,

         eu hei de permanecer aqui,

         presa da minha inquietude,

         dissolvendo-me nesta erosão interminável

         que me transforma em pó,

         aqui mesmo,

         no silêncio e nas sombras deste recanto,

         de onde olho a vida que passa.

Sento-me, pois, no silêncio,

         na placidez da hora outonal de

         uma varanda sobre um jardim

         que tem à frente uma rua

         que passa como a vida.

Então medito.

O tempo é uma imensa flecha que voa num único sentido,

mas como a flecha de Zeno

         na verdade não voa

         nem se move:

         somente aponta.

Dentro do tempo existo como mero acidente,

e essa tarde soalheira tem uns ares de desolação doente

onde

         minha voz

         meu pensamento

         meus gestos

         existem independentes do meu corpo.

Sinto-me fragmentado,

E nada há que reúna e dê sentido aos fragmentos

desconexos, como se fora um mapa de terra desconhecida,

         rasgado em inúmeros pedaços que,

         de qualquer forma que se juntem,

         adotarão sempre a

         mesma conformação

         incompreensível,

         descreverão sempre

         uma terra desconhecida.

Em volta,

         o jardim,

         árvores,

         pássaros que buscam repouso na aproximação da noite.

A noite chega aos poucos,

         leve mas densa,

E o crepúsculo é tão só uma confusão de manchas

no extremo oeste.

(Eu também sou uma confusão de manchas no mais profundo

extremo de eu ser uma confusão de manchas.)

Tudo mais,

         apenas meu eterno pensar,

         e essa abacial serenidade

         dentro do víscido silêncio.

Estou imóvel,

         logo,

         estou só

         a ouvir a música das sombras.

 

(Mar.91)

 

 

 

Lajedo

  

A noite caiu sobre a cidade

E adormeceu a memória.

A neblina adormeceu as luzes,

E além dos muros

As pessoas seguem seu destino comum.

 

As cabeças se perdem na névoa.

 

Soam um passos profundos no lajedo.

 

(1984[?]

Reescrito em Nov/00)

 

 

 

Crime

 

“Outras histórias Adso relembra (…), e depois acontece-lhe ter um encontro com uma moça bela e terrível como um exército a postos para a batalha.”

Umberto Eco O Nome da Rosa

 

 

O pássaro da noite canta

Num prenúncio de tua chegada.

Tu vens

Com teus navios de guerra,

Teus cavalos aparelhados para o combate,

Tuas armaduras.

Vens com teu sorriso tímido

E os pequenos seios em formação.

É madrugada dentro e fora de mim.

Se numa cidade onde os habitantes enlouqueceram

Um cão uiva para a janela acesa do suicida,

É certo que bruxas e demônios

Voarão em círculos à roda da lua,

Mas tua mão e meu devaneio

Poderão compor um aceno

E um bordado.

Abro os olhos e me levanto.

A vela apagou-se no aparador

E o relógio de parede finge um tempo que não passa.

Mas quando outra vez eu abrir os olhos e levantar-me

Ter-se-ão passado muitos anos,

A batalha estará perdida

E a guerreira, envelhecida ou morta.

Em que furnas mergulhará o cão furioso,

Velho de tantas lutas,

         com suas pisaduras

         e seus dentes partidos,

         seus olhos de assombração

         e suas garras de aço?

 

Em que manicômio esconderei minha lucidez?

Sobre o altar da manhã

Hei de queimar minhas vísceras em  holocausto,

Sobre a pedra mais alta

Acender a fogueira da condenação.

Mas o beijo em teu sexo impúbere que sonhei…

Que lábios terei para esse crime?

 

(15/06/06, 01:15 h da madrugada)

 

 

 

Monólogo no 7

 

 

A mão desprendeu-se da luva,

O que sobrou foi essa aspereza a confranger-me os ossos.

Onde estão os anéis

Que adornavam os dedos dos cadáveres?

Os dias são uma página em branco:

         por mais que escreva

         jamais chegarei à última linha.

(Morrer não é a frase final: é apenas a interrupção da escritura.)

(Quero tão só olhar para mim.

Critico-me. Estou nu e menosprezo-me por minha fraqueza. Mereço ser vilipendiado, porque sou pequeno e mesquinho.)

Depois percebo que procuro somente pelo que falta ser anotado,

e constato que muito do que já escrevi deixou de ter sentido,

muito se tornou ilegível,

outro tanto já esqueci

e concluo que sou uma página sem começo.

(Por que assim de repente tornar-me miserável diante de mim mesmo? …e todos esses que me olham, por que me olham?)

(Aquele que expõe sua maldição em praça pública pode ser desprezado,

mas sua degradação só se dará diante de si,

de sua imagem ridícula no espelho,

nu, com o sexo devorado pelas formigas.)

As coisas pequenas e silenciosas erram nas linhas que não foram escritas,

Mas bradam em sua mensagem

Tudo que se calou pela violência

E pela fúria se tornou sem nome.

Aquele que anda sonâmbulo na noite dos meus versos

É meu irmão gêmeo e louco que nunca tive

                                      fugindo para longe de onde estou.

 

 

(29 p/ 30.set.89, à meia-noite.

Esta versão é de 1999, modificada em 2005)

 

 

 

Escrava

 

Escrava,

         rolam de tuas mãos,

         de teus dedos de pianista

                                            rosas,

                                            frutas apodrecidas,

                                            círios apagados,

                                            – as horas fora do tempo –

Enquanto arrancas teu manto de cristal

E derramas na boca a taça do sangue meu que verti para tua embriaguez.

Louca,

         em teu delírio de crisântemos desnudos

                                      e vulcões extintos,

         em tuas lucubrações de filosofias contraditórias

                                      e religiões para a eterna danação

         no cais que percorres com teus pés descalços

                   à procura do marinheiro que irá te violar,

                   do estivador que há de deixar teu sexo em carne-viva,

                   do assassino que matará a pureza da tua insânia;

         na cidade que invades com teu odor de fêmea no cio à procura do Minotauro que mantém aprisionado o Teseu de teus desvarios…

Em que espaço estão ancorados teus navios de guerra,

Em que mapas disfarçados teus caminhos escusos?

Em que cavernas perdeste teus brinquedos,

                                           tuas adagas,

                                           a dor dos teus atavios?

De teu dorso marcado pelo granizo da manhã

                                         rolam espinhos,

                                                    pássaros silenciosos,

                                                    a púrpura da tua santidade

E entre tuas pernas cresce uma árvore ressequida por todos os invernos

E se erguem mortos como no dia da Grande Ira

À espera do Juízo.

Dama

     (de espadas?

     sim, mas sem coração),

                            carta do baralho sem reis nem valetes ao teu redor,

                            eu,

                            teu Curinga,

                            ponho-me aos teus pés e aspiro o pó da terra

                            à espera do golpe,

                                           da lâmina,

                                           das farpas de tua voz tranqüila,

À espera do dia,

                que a noite sói ser enganosa

                como essa outra noite

                que imensa se estende detrás de tuas pálpebras.

Escrava, louca, dama de espadas

                                                 ou mulher tão só,

                                                 dócil e frágil feito menina impúbere que descobre o gozo com seu irmão mais velho,

                                                 cadela que me trinca os dentes

                                                 e me faz conhecer o inferno,

Imponderável

Feito lírio

         cuja brancura se põe

                                     subitamente

                                                     rubra!

 

 

(22/02/07, entre duas e três da manhã)

 

 

 

Vera Queiroz

 

William Blake (British, 1757-1827), Christ in the Sepulchre, Guarded by Angels