Jornal de Poesia, o nº 1 do www.google.com

 

 

 

Ildásio Tavares


 

Canto de azul e de verde


Canto
        de azul e de verde e de verde e de azul
abertos ao deslumbre
                  dos olhos,
        regaço
                 ao deslize do corpo.


Canto Leste,
                 mais forte,
Sudoeste,
         meiguice
                 em salpico de ilhas
         e clareza de sol
Canto Leste, no entanto, leva os ventos à fonte,
         da magia e mistério.
Sudoeste, cercado
                  de antigos tesouros,
                                   dorme paz de almadias
                  caravelas saveiros,
        e desperta em tumulto;
                                   motores e máquinas
                gargalhando ao passado —
Canto azul, verde azul, esteirado
                                  de branco,
                espumado em silêncio
                                            ao fermoso das quilhas.
 

 

 

Titian, Noli me tangere

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Ronaldo Bressane

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Goya, Maja Desnuda

 

 

 

 

 

Ildásio Tavares


 

Canto do homem cotidiano


Eu canto o homem vulgar, desconhecido
Da imprensa, do sucesso, da evidência
O herói da rotina,
O rei do pijama,
O magnata
Do décimo terceiro mês,
O play-boy das mariposas
O imperador da contabilidade.


Esse que passa por mim
Que nunca vi outro assim.


Esse que toma cerveja
E cheira mal quando beija.


Esse que nunca é elegante
E fede a desodorante.


Esse que compra fiado
E paga sempre atrasado.


Esse que joga no bicho
E atira a pule no lixo.


Esse que sai no jornal
Por atropelo fatal.


Esse que vai ao cinema
Para esquecer seu problema.


Esse que tem aventuras
Dentro do beco às escuras.


Esse que ensina na escola
E sempre sofre da bola.


Esse que joga pelada
E é craque da canelada.


Esse que luta e se humilha
Pra casar bem sua filha.


Esse que agüenta o rojão
Pro filho ter instrução.


Esse que só se aposenta
Quando tem mais de setenta.


Esse que vejo na rua
Falando da ida a lua.


Eu canto esse mesmo, exatamente
Esse que sonhou em, mas nunca vai
Ser:
Acrobata,
Magnata,
Psiquiatra,
Diplomata,
Astronauta,
Aristocrata.
(É simplesmente democrata)
Almirante,
Traficante,
Viajante,
Caçador de
Elefante
(Vive só como aspirante)
Pintor, compositor
Senador, sabotador
Escritor ou Diretor
(É apenas sonhador)
Pistoleiro,
Costureiro,
Terrorista,
Vigarista
Delegado,
Deputado,
Galã na tela
Ou mesmo em telenovela,
Marechal,
Industrial,
Presidente,
Onipotente,
(Ele é simplesmente gente)
E, inconsciente marcha pela vida
buscando no seu bairro
Na cidade lá do interior,
No escritório, consultório
No ginásio,
Na repartição,
Na rua, no mercado, em toda a parte
Somente uma razão
Para poder dormir com a esperança
E de manhã, na hora do encontro
Com o espelho, ao fazer a barba,
Ver o reflexo do campeão,


Mas que, na frustração cotidiana,
Vai encontrando aos poucos sua glória
Por isso eu canto a luta sem memória
Desse homem que perde, e não se ufana
De no rosário de derrotas várias
E de omissões, e condições precárias
Poder contar com uma só vitória
Que não se exprime nas mentiras tantas
Espirradas sem medo das gargantas
Mas sim no que ele vence sem saber
E não se orgulha, campeão na história
Da eterna luta de sobreviver.
 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Cleópatra ante César

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Marcelo Coelho

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jornal de Tributos

 

 

 

 

 

Ildásio Tavares


 

O tempo dos homens


O tempo dos homens é feito de pedra,
É feito de carne, de sangue, de dor,
O tempo dos homens é feito de tempo
Que é tempo sem tempo, sem luz, sem amor.


Trezentos e sessenta e cinco dias,
Seis horas,
Uns tantos minutos
E segundos,
Leva o mundo
Para girar girando em torno ao sol,
Em sucessão de
Primavera, Verão, Outono, Inverno,
Sol e Sombra,
Noite e Dia.
Eterna imperturbável harmonia.


Os homens não cansam, não param, não dobram,
Comendo, comendo, sem ver, sem olhar,
Os homens não pensam, não falam, não dormem,
No tempo sem tempo do tempo a passar,
 

 

 

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Alfredo Fressia

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Da Vinci, La Scapigliata, detail

 

 

 

 

 

Ildásio Tavares


 

O meu tempo


Não existe hora certa, existe o meu relógio,
Lembrando sempre com seu tic-tac
Que há vida
Para ser vivida,
Que houve a vida
Que não se viveu.
Não importa que o rádio renitente ruja
São tal hora e tal minuto,
Hora oficial,
Afinal,
Que há de oficial em minha vida?


Somente,


Quebrando a paz exata deste espaço,
Levando a mim à frente, sem retorno,
A tiquetaquear meu ser-serei,


Existe o meu relógio, —


pulso falso,


Sensato solilóquio, lento, certo,


Que canta
O canto
Do tempo


Que é meu,
 

 

 

Ruth, by Francesco Hayez

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Carlos Herculano Lopes

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova, detail

 

 

 

 

 

Ildásio Tavares


 

Água brusca


Eis que de dentro de mim
Jorrou uma água brusca,
Ladeira abaixo, sem sonho,
Morrendo sem ter vivido, —
E eu, no espelho crucente
Das hortas de sempre fuga,
Tentei por detrás da fuga
Remover o meu retrato,
O resolver sempre falho,
Enxergar o que não via;
Mas cansado, sem relíquias,
Deixei que escorresse plena,
Que fosse na doida arena
Da areia se dissolver.
 

 

 

Michelangelo, Pietá

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Batista de Lima

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Reflexion, detail

 

 

 

 

 

Ildásio Tavares


 

Meu poema de chuva


Meu poema não visita a antologia
Dos momentos que a chuva salpicou
Nem se curva ao tip-top na janela
Onde sem mais querer
A chuva semissente se instalou, —
Ele se esgueira, calmo e contemplado,
Até a intimidade sem recursos da gota mais minúscula,
E em uniliquescência permanece;
E assim, as palavras feitas chuva
Se escorrem lá pra baixo da ladeira e
São sorvidas sem serem pressentidas
Pela terra,
Pelo lago,
Ou pelas tradicionais bocas de lobo.
 

 

 

Bronzino, Vênus e Cupido

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Jorge Amado