O
diabo não é, mas passa a existir
como um sentido, um efeito ou um
resto, quando dizemos o seu nome ou
falamos dele: "Falou do diabo,
aparece o rabo". No imaginário
social, ele corresponde à força do
desejo que, fazendo o homem querer
ser querido do Outro, joga com as
coisas, deslocando-as da ordem
considerada normal e natural. A
força é evidenciada já no seu nome,
diábolon, do grego diá (através de)
+ ballein (lançar; jogar). No
imaginário, sua figura monstruosa e
suas artes malvadas materializam a
negação e as ações "do contra" desse
"através" que joga com as regras,
subvertendo-as para deixar o
proibido vir à tona. Quando vem, o
diabo pode assumir todas as formas
porque não é substancial. A
multiplicidade das suas formas
corresponde à multiplicidade dos
efeitos da sua ação como jogo,
fingimento, duplicidade, alteridade,
separação, divisão, dispersão,
dissolução e, principalmente,
negação.
Como
se sabe, as instituições sociais
produzem as perversões com que
confirmam a legitimidade de suas
regras. Há ladrões de bancos para
justificar a existência da polícia
que garante a existência de
banqueiros. Por isso mesmo, o diabo
é sempre ambíguo, pois nunca se sabe
realmente em que time joga quando
aparece para os que desejam o
proibido, propondo-lhes sutilmente:
"por que não?". Sabemos que, se
fazem o que desejam, erram e pecam,
tornando-se casos exemplares do que
a regra interdita. Os jesuítas do
século XVI, por exemplo, usam os
nomes de chefes tamoios que
recusaram a dominação portuguesa e
foram mortos por Mem de Sá para
batizar o diabo como personagem de
autos onde fala tupi. Na Bahia do
século XVII, como lemos na poesia
atribuída a Gregório de Matos e
Guerra, o diabo vinha à noite,
principalmente no São João, na forma
de mulato com pés de bode e capa.
Ele era invocado pelos que desejavam
ser outros, caindo fora do que as
instituições determinavam. O diabo
era o "Cabra" e o "Cabrão", termos
ainda usados como insultos racistas
em que a incontinência sexual
associada ao bode se mistura com
outras marcas de animalidade pondo o
tipo insultado para fora da cultura.
Fazendo jus à sua falta de Bem, o
diabo baiano do século XVII fazia
frio, como o de Dante. Seu órgão
gelado, em forma de saca-rolhas, era
eroticamente manipulado nos cultos
heréticos dos calundus. Suas amantes
tornavam-se bruxas que não o
beijavam na boca, mas numa parte
outra, invertendo sacrilegamente os
signos do amor cristão, enquanto o
Cujo exalava gases que parodiavam o
incenso das missas. Obviamente, o
Santo Ofício da Inquisição queimava
esses hereges para manter a pureza
da fé.
Cristãmente, o diabo foi o anjo mais
belo de todos, Lúcifer, o portador
da luz, expulso do Céu porque se
opôs a Deus. Desde a queda, compete
com Ele, mas não é outra divindade,
como se fosse um princípio do mal.
Foi criado por Deus e sua relação
com Ele tem tudo a ver com a
dialética do escravo e seu senhor ou
a do empregado e seu patrão. Sua
definição cristã é negativa: falta
de Bem. O mal não é essencial, ainda
que a livre escolha dele conduza
diretamente ao Inferno, como lemos
em Dante Alighieri, que na Divina
Comédia torna a metafísica
poeticamente sensível. Pondo Lúcifer
no último canto do Inferno, no fundo
do abismo cavado por sua queda,
Dante fala dos três ventos frios
produzidos por seus três pares de
asas de morcego que congelam um dos
rios do Inferno, o Cocito. Deus é
Luz, fogo do Amor; o Inferno é treva
e gelo. Lúcifer tem três caras que
sofrem horrivelmente numa única
cabeça. O vermelho do ódio da cara
do meio, o branco amarelado da
impotância da cara da direita, o
negro da ignorância da cara da
esquerda negam o Amor, a Potência e
a Sabedoria das Três Pessoas da
Trindade, enquanto seus seis olhos
choram sem parar, molhando as trás
barbichas, por onde escorre a baba
sanguinolenta das três bocas que
trituram almas de traidores, Judas,
Bruto e Cássio (Inf. XXXIV).
A
inteligência angélica do diabo
cristão faz dele um dos maiores
especialistas na alma humana. Como
um macaco de Deus, cria
fantasmagorias com que manipula o
desejo de honrarias, riquezas,
prazeres, poder e conhecimento para
perder o homem. Deve ser evidente
que toda crença pressupõe e produz a
obediência com que as coisas são
mantidas sob controle. Desde o
início do Cristianismo, o motivo
diabólico associa-se intimamente ao
motivo do conhecimento. O
conhecimento nunca é natural, pois
sempre nasce de um ato de violência
que, por descrer da ordem natural
das coisas, não obedece às verdades
sobre elas que são impostas e
controladas pelas instituições
sociais. O motivo antigo de Fausto,
o homem que, por desejar o
conhecimento total, descrê e não
obedece à regra da sua religião, é
figurado no grande texto do
elizabetano Christopher Marlowe, The
Tragical History of Dr. Faustus
(1588/89). A peça transforma
histórias medievais sobre um erudito
alemão desesperado com o pouco saber
e a falta de amor, Fausto, que
assina um contrato com o Outro,
comprometendo-se a entregar-lhe a
alma em troca do que mais deseja.
Após vinte anos, depois de ter
gozado o poder que adquiriu, chega a
hora da cobrança. Fausto pede perdão
a Deus, mas assinou o pacto
livremente e o diabo leva o que
merece. Em outros textos de grande
arte, o diabo muitas vezes assume a
grandeza negativa do tipo que afirma
a liberdade: "Non serviam", "Não
servirei". É o caso de Satã, no
Paraíso Perdido, de Milton. Quando é
diabo espanhol e católico, aguarda o
pecador com coisas terríveis, como o
convidado de pedra que, na peça de
Tirso de Molina, O Burlador de
Sevilha, arrasta D. Juan Tenório
para as profundas.
Nos
séculos XVIII e XIX, grandes
artistas românticos representaram o
diabo como encarnação da ironia que
inverte e nega a normalidade e a
naturalidade das coisas.
Mefistófeles, o diabo do Doutor
Fausto, de Goethe, é um intelectual
irônico e cético, representando o
princípio romântico da insatisfação
e negação das coisas finitas. O
diabo também comparece em Dom
Casmurro e num conto de Machado de
Assis, A Igreja do Diabo, no qual os
homens que abandonam Deus e entram
para a igreja do diabo continuam os
mesmos, pois, continuando a crer,
demonstram que não sabem ser livres.
O tema do conhecimento fáustico
tratado por Marlowe e Goethe é
retomado por Thomas Mann, no romance
Doutor Fausto, em que a música de
vanguarda do personagem Adrien
Leverkühn tem como fundo o pacto
demoníaco do povo alemão com o
nazismo.
Podia-se perguntar o que vem a ser
"vender a alma". Uma resposta é dada
no extraordinário Grande Sertão:
Veredas, de João Guimarães Rosa, que
retoma o tema de Fausto. No romance,
Deus e o diabo são interpretações
culturais do sertão feitas da
perspectiva do narrador, o sertanejo
Riobaldo: Deus é a Regra ou o
princípio da ordem e do sentido das
relações sociais sertanejas
dominadas pela violência dos
coronéis latifundiários. Quanto ao
diabo, corresponde ao imaginário da
força do poder. Riobaldo lembra que,
no passado, prestou serviços aos
coronéis como "raso jagunço
atirador, cachorrando pelo sertão".
Um dia quis ser outro e, levado pelo
amor de um amigo e pelo desejo de
poder, invocou o diabo. Ele não
apareceu existente, mas Riobaldo
entendeu a ausência justamente como
presença e fez o pacto com ele. No
sertão - que é o mundo - invocar o
diabo significa desejar o imaginário
da força. E, fazer o pacto com ele,
apropriar-se da força do imaginário
para virar outro com o Outro. É o
que acontece com Riobaldo, que passa
a ter ideias, fica falante e
torna-se chefe do bando de jagunços,
dominando o sertão. Mas o poder o
deixa cego para o que é mais
evidente e ele paga um preço alto
por ter acreditado no diabo.
Os
textos literários demonstram que
pactos com o diabo preenchem uma
falta de ser. Quem os faz passa,
aparentemente, para o outro lado da
regra. Mas continua efetivamente a
seguir regras, entre elas a da
economia que determina o preço, a
mercadoria e a data da entrega. Em
todos os casos, talvez fosse
possível supor que, no teatro da
vida humana, o diabo é só mais uma
convenção dramática de Deus. Ele
permite que o diabo faça das suas no
palco até certo ponto, quando
intervém, ou com a demissão sumária
ou com a contratação definitiva dos
atores, para novamente
demonstrar-lhes sua lição sempre
exemplarmente didática como diretor
da peça: ninguém sai da instituição.
Para o homem, não há vida fora da
regra e, no simbólico, tudo é pacto.
João Adolfo Hansen é professor do
Departamento de Letras da
Universidade de São Paulo - USP e
estudioso do Diabo em Grande Sertão:
Veredas, de Guimarães Rosa