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José Godoy Garcia



Ainda estarei no fruto de um amanhecer...


Ainda estarei no fruto de um amanhecer
que trás estrela, aquela pura sozinha estrela.
Para me acariciar e também a todos os viventes
(os que dormem, os que estão nas ruas, os
sentenciados nos cárceres, os das estradas,
os inocentes no trabalho de servos)

do novo dia que transparece numa simples alvura
de carne na face da aurora,
que vem para amar a vida. Que vem para ser.
A estrela matutina que beija o mundo qual mãe.



 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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José Godoy Garcia



Zé Garcia Arco-Íris


Eu sou uma nuvem.
Se eu sou – a nuvem se chama José Garcia.
Se eu sou – José Garcia anda vagando o céu pela tarde.
José Garcia vagando o céu pela tarde indiferente à sorte do mundo,
como se independente do mundo e da vida do homem.
José Garcia surgindo no amanhecer de um novo dia
enfeitado de cores vermelhas e amarelas.
José Garcia como um porco. José Garcia como um caminhão carregado.
José Garcia como um elefante. José Garcia como uma vaca amojando.

Se sou uma nuvem, então
eu chovo sobre a terra, como um Gulliver no país dos anões
soltando perdigotos,
eu chovo na cabeça dos homens e das mulheres,
eu sou Zé Garcia chuva, Zé Garcia
beleza de mundo chovendo, Zé Garcia
caindo na cabeça das mulheres
e molhando os cabelos e os ombros e molhando o rosto e os seios,
beleza de pedra e humildade de animal onde Zé Garcia
cai, verde carninha da terra onde Zé Garcia
demora dias e noites,
Zé Garcia destruindo pontes e canaviais,
Zé Garcia bancando Portinari
com Sol no lombo, Zé Garcia Arco-Íris.
Se eu sou uma chuva, então
eu sou a águas dos rios,
e se sou as águas eu sou o rio mesmo.
Zé Garcia rio, Zé Garcia
saudando o povo que vive às suas bordas,
Zé Garcia como um murmúrio e como um aconchego
quando à noite ou de madrugada
leva o embornal cheio de peixes.
Zé Garcia enrodilhando de auroras e peixes e estrelas.
Zé Garcia peixe.
Zé Garcia seixos enrolados.
Zé Garcia remorso de mortos afogados.
Zé Garcia saúde da terra.

 

 

 

 

Herbert Draper (British, 1864-1920), A water baby

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Lilian Mail

 

 

 

 

 

 

 

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José Godoy Garcia



Um Homem na Estrada


Ponho uma estrada neste papel.
Uma estrada como qualquer outra
que entra pela linha do horizonte
e liga o mundo na sua inocência.
Nela, ponho um homem.
Como é exemplar o trabalho do poeta
que faz uma estrada e faz caminhar nela
um pobre ser humano!

Eu o vejo de todos os ângulos.
Olho-o pelas costas e o reconheço digno,
cada vez mais pequeno
sumindo ao longe.
De frente, vejo-o, aproxima-se de mim,
vem alegre e predisposto
à fraternidade.

Pelas margens direita ou esquerda
estou atento; se noto o ridículo
escondo de mim mesmo
e dele.
Não levo rancor
e nem misericórdia.
Estou pronto ao abraço.

O papel é como
a terra. Para que
explicar mais?
Vem o poeta
pega o vento
aterra-o no
papel e a água
solidária escorre
no veio branco
e explode em amor.
Caminho que leva
até o horizonte.
É o que faz belo
o poema, o círculo
do horizonte.
É um vale que
é nossa vida,
circunavegação
de paisagens,
cavalinhos, aeroplanos,
navios,
um homem sozinho
indo pela estrada.

Homem sozinho na estrada.
De longe vem vindo, de longe apagadamente
seu vulto como um estrela sem brilho
e à sua aproximação a estrada
se dilata e trepida
como uma nave em vôo
e ainda tudo é grotesco
como uma máquina: a terra e os seus sapatos,
a roupa e o seu suor, a poeira e a sua fadiga
e nada aconteceu – nem crime ou heroísmo
ou tudo se ignora,
– era apenas um homem
numa estrada.

A estrada estava cansada e viajou.
Os ventos sumiram.
Só a laranja trabalhava,
dia e noite,
só a laranja viajava na sua fina vida de laranja
no galho cheio de manhã.
 

 
 

 

 

Sophie Anderson, Portrait Of Young Girl

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Aníbal Beça

 

 

 

 

 

 

 

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José Godoy Garcia



A Poesia, o Chão, as Palavras


A poesia é ser – não vou
falar mais nada, porque a palavra
estraga tudo o que tem o horizonte
e a palavra estraga a pedra e tudo
o que cai sobre a pedra, a palavra
estraga a chuva que espeta
agulhas verdes vindas das nuvens,
no chão; a palavra estraga o chão
que é um palhaço bonito e sem pala-
vras.

Um chão é um delírio que as palavras
não expressaram
para o homem pisar que as palavras
não expressaram
para ele amar que as palavras nada
expressaram
para o trem de ferro andar que as
palavras nada expressaram
para o caminhão levar frutas de
uma região a outra
que as palavras nada expressaram
para nascer o verde onde o sol
bate de mansinho,
e o chão é o homem e sua mulher
nos dias e nas noites
que as palavras nada expressaram.

 

 

 

 

John William Waterhouse , 1849-1917 -The Lady of Shalott

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Erorci Santana

 

 

 

 

 

 

 

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José Godoy Garcia



Ser o Corpo de uma Nuvem


Ser o corpo de uma nuvem
é o mesmo que mulher andar na tarde
é estrada estar para ser usada
é mulher como uma vaca vista pelo
grande touro vingador
– nuvem imóvel andando semovente
na crista do azul da tarde.

Uma nuvem é a aparente indiferença
das coisas do mundo pela sua dor
e quando ela passa nem a mãe e nem
o negro
a viram – andavam em si mesmos levando
andavam com suas vidas levando
a dor e as alegrias;
a moça olha a estrada tinha ferido o seu ventre
fazia quatro noites;
o velho Miquéias
costurou sua língua para não falar que sabia diante dos abutres que o ouviam.


Uma nuvem é o comodismo dos animais.
É a pedra que aparentemente não clama nem ajuda.
É a montanha que presa à sua solidão
nada vê do homem
é cheia de solidariedade,
mudamente.
Uma nuvem é a solidão de cada um;
um trecho da infância de cada um.

 

 

 

 

Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

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Helena Armond

 

 

 

 

 

 

 

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José Godoy Garcia


 

Estrelas Acorrentadas


As estrelas acorrentadas
nas águas dos rios
comeram os dentes de Deus
As estrelas acorrentadas
nas águas dos rios
– mas se é em agosto, em Goiás
as águas dos rios estão vermelhas
– águas dependuradas
no gancho das estrelas no céu
– mas se é em agosto em Goiás
as águas dos rios estão vermelhas
– no chão balouçante
– céu, chapéu de Deus.


 

 

 

Mary Wollstonecraft, by John Opie, 1797

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Natércia Campos

 

 

20/06/2005