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Um esboço de Leonardo da Vinci, página do editor

 

 

Luiz Frazon

 

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Culpa

 

William Blake, Death on a Pale Horse

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Allan R. Banks (USA) - Hanna

 

 

 

 

 

 

Manuel Soares Bulcão Neto

Observatório da Imprensa

9.1.2007


 

"Uma sociedade cearense de letras cujo aspecto irreverente, revolucionário e iconoclasta só se encontra símile no movimento que sairia, trinta anos depois, da Semana de Arte Moderna". Pedro Nava, Baú de Ossos

 

Em Os Boas-Vidas (I Vitelloni, 1953), Federico Fellini retrata, por meio das aventuras e desventuras de uma turma de rapazes de uma pequena cidade italiana, a insatisfação da juventude provinciana com sua respectiva província. Com efeito, todos ali, por motivos diversos, anseiam por fugir da vidinha morna, sem oportunidades e perspectivas. Fausto, um arremedo de Dom Juan, após engravidar Sandrinha, e cheio de grandes projetos, prepara as malas pensando em fugir pra Milão; Leopoldo, o intelectual do grupo, sentindo-se isolado e incompreendido, sonha com Roma; Alberto, após tomar todas numa festa, esculacha amigos e inimigos e promete vir para o Brasil, de navio. No fim, entretanto, o único que consegue romper os grilhões – econômicos, sentimentais, pavlovianos… – que o mantêm preso no arraial é Moraldo, certamente o alter ego de Fellini e, se a história encerra mesmo algo da biografia do grande cineasta, o único que terá sucesso na vida. Cena memorável: ao tomar o trem, Moraldo visualiza todos os seus companheiros e familiares dormindo – como se, ao sair daquele lugarejo, ele estivesse acordando.

Depois, porém, de assistir ao média-metragem (documentário; 24 minutos) de Felipe Barroso A Padaria Espiritual, sobre o movimento cultural que aconteceu na pequena e remota Fortaleza da última década do século XIX (1892-1898), constata-se que a vida que se passa na província não se resume a modorra e pasmaceira, mesmo que às vezes mitigada por felliniano lirismo; que, graças à determinação – amiúde reforçada pelo bom-humor – de alguns espíritos fortes, intelectuais com firme auto-estima, muito do que se produziu e se produz, culturalmente, "em plagas distantes" – alguns diriam, grotões – não consiste em meros ecos tardios da metrópole, em versões, se não caricatas, com forte teor tragicômico.

 

Irreverência e deboche

 

O documentário, com depoimentos de Batista de Lima, Regina Pamplona Fiúza, Sânzio de Azevedo e Gilmar de Carvalho, resgata a memória desse importante movimento da história da literatura brasileira, hoje quase esquecido. Dele surgiram grandes nomes das escolas realista, naturalista e simbolista, como, respectivamente, Antônio Sales (Aves de Arribação), Adolfo Caminha (A Normalista e Bom Crioulo) e Lívio Barreto (Dolentes).

Os amassadores, como eram conhecidos os membros da Sociedade de Rapazes de Letras e Artes Padaria Espiritual – as sessões eram chamadas de "fornadas" e o presidente de "padeiro-mor" – reuniam-se no número 105 da Rua Formosa (atualmente, Barão do Rio Branco) e, eventualmente, no Café Java. Nessa oficina e bar, do mesmo modo informal como, mais de setenta anos depois, seria editado o Pasquim no Rio de Janeiro, o grêmio publicava o jornal O Pão, que teve 36 edições.

A referência ao Pasquim não se justifica apenas pela informalidade, mas também pelo humor, a irreverência e o deboche, a começar pelos 48 itens do Programa de Instalação do Grêmio, escrito por Antônio Sales – programa este que, ao ser publicado em um jornal do Rio de Janeiro, conferiu notoriedade ao Movimento. À guisa de ilustração, o documentário de Felipe Barroso cita alguns itens, como o de número 39 do Estatuto:

"As mulheres, como entes frágeis que são, merecerão todo o nosso apoio excetuadas: as fumistas, as freiras e as professoras ignorantes."

A Padaria Espiritual, como muitos reconhecem, foi precursora da Semana da Arte Moderna (1922) não apenas pela irreverência e iconoclastia, mas também, como escreveu o memorialista Pedro Nava (Baú de Ossos), por certo aspecto revolucionário de inspiração nacionalista, pela aversão ao excesso de estrangeirismos, exacerbada não pelo ódio à diferença – até porque, de acordo com o Estatuto da agremiação, tirava-se o chapéu para Homero, Shakespeare, Dante, Hugo e Camões –, mas, novamente pelo bom-humor e, segundo Gilmar de Carvalho, pela convicção de que nossa língua, costumes, fauna e flora poderiam figurar como referencial para a produção cultural brasileira. Esse nacionalismo deliberadamente risível transparece no item 21 do mencionado Programa:

"Será julgada indigna de publicidade qualquer peça literária em que se falar de animais ou plantas estranhos à fauna e à flora brasileiras, como: cotovia, olmeiro, rouxinol, carvalho etc."

A província se antecipa ao centro

Claro que o Movimento não podia sobreviver apenas da contribuição financeira de seus membros e da venda do jornal O Pão. Logo, os padeiros – ou amassadores – tiveram que apelar aos comerciantes locais, a maioria pharmacêuticos, com seus xaropes, elixires e panacéias. Felipe Barroso teve a feliz idéia de convocar o comediante e compositor (não necessariamente nesta ordem) Falcão para interpretar, à sua maneira, esses anúncios publicitários. O resultado, obviamente, é hilariante: Falcão, pelo telefone celular, encomenda nas farmácias alguns preparos medicinaes do pharmacêutico José Eloy da Costa (devidamente aprovados pela inspectoria de Hygiene), entre os quais uma pílula contra vermes. Em outra ocasião, solicita um miraculoso xarope de bromureto de potássio em cascas amargas de laranja e, ainda, uma pílula estomacal capaz de curar dores de estômago, dispepsia, gastrite, falta de apetite, náusea, dores de cabeça, indigestão etc. (principalmente o etcétera).

No média-metragem de Felipe Barroso ainda figuram grandes nomes da literatura e da arte nacional, todos a recitar trovas da seção "O Cancioneiro Popular" do semanário O Pão: Ariano Suassuna, Thiago de Mello, Fausto Nilo, Virgílio Maia e os jovens poetas Rodrigo Magalhães e Tércia Montenegro. É de se mencionar, ainda, a bela trilha sonora original montada por Dihelson Mendonça, bem como a leitura de textos do jornal O Pão por populares escolhidos ao acaso entre os transeuntes da Praça do Ferreira – alguns, semi-analfabetos e nitidamente alcoolizados; outros, porém, demonstrando, "estranhamente", absoluto domínio da linguagem e da retórica, o que me lembra uma asserção de Trotsky, escrita algures, sobre a enorme quantidade de talentos que se perdem nas favelas, arrabaldes e grotões por pura falta de oportunidade.

O Movimento Cultural Padaria Espiritual findou em dezembro de 1898, dois anos depois da fundação, em 15 de agosto de 1896, na Academia Cearense de Letras – a primeira do país, sendo a segunda a Academia Brasileira de Letras, criada em 20 de julho de 1897.

Às vezes, a província se antecipa ao centro – Êta, vidinha mais ou menos… Menina, arma a minha rede!


 

 

 

 

Elizabeth Marinheiro

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904) - Phryne before the Areopagus

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Winterhalter Franz Xavier, Alemanha, Florinda

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Riviere Briton, 1840-1920, UK, Una e o leão

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Blake, Death on a Pale Horse

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Victor Mikhailovich Vasnetsov, Rússia, 1848-1926, The Knight at the Crossroads

Manuel Soares Bulcão Neto

 

O ANTI-HUMANISMO

E SEUS BODES AMOROSOS


 

 

 

“Idéias, símbolos, espíritos e deuses dispõem não só de uma realidade subjetiva, mas também de uma certa autonomia objetiva. Produzidos pelos cérebros, tornam-se vivos de um tipo novo, e os cérebros, sendo sistemas fracamente controlados, são como aprendizes de feiticeiros em relação àqueles seres”. Edgar Morin

 

 

O ovo: razão de ser da galinha

Depois que Richard Dawkins esboçou a teoria dos memes – a hipótese de que as idéias são seres autônomos auto-replicadores cujo hábitat é o cérebro humano – tem gente falando por aí que um erudito não passa de um artifício que uma biblioteca usa para produzir outras bibliotecas. Trata-se de uma versão original daquela frase disparatada de Samuel Butler, “uma galinha é um meio que um ovo usa para produzir outros ovos”, assertiva que tem servido como metáfora para o darwinismo atomista atualmente em voga. Segundo esta escola da teoria sintética da evolução (também conhecida como “ultradarwinismo”), é a preservação dos genes a razão última da nossa existência, isto é, todos nós – animais, plantas, fungos e micróbios – nada mais somos que “veículos-robôs cegamente programados para preservar as moléculas egoístas conhecidas pelo nome de genes”.

Essa hipótese científica de que não somos senhores do nosso próprio destino não é assim tão nova. No final do século XIX, o alemão August Weismann já a teria formulado em outros termos. De acordo com esse biólogo, o corpo do indivíduo, por ele denominado “somatoplasma”, é tão-somente o veículo dos seus próprios gametas ou plasma germinativo. Como aquele soldado de Maratona, somos mensageiros programados para sermos mais rápidos que o princípio universal da degradação da energia, dispostos a tudo para proteger e transmitir a informação que trazemos conosco e que, depois de cumprida a missão, nada mais nos resta a não ser ficar à toa e, conforme a canção de Raul Seixas, “com a boca escancarada esperando a morte chegar”.

 

A produção e o progresso material como um fim em si mesmo  

Mesmo antes de Weismann, outro alemão, desta vez um economista e filósofo, dissera algo semelhante. Em sua análise da economia capitalista, Karl Marx demonstrou que o “Homo oeconomicus” não é outra coisa que um instrumento de que uma fábrica se vale para produzir outras fábricas. Com efeito, no capitalismo verifica-se algo muito estranho: o grosso da demanda agregada – sem o qual não haveria, neste mercado centrado no lucro, um equilíbrio oferta-procura de longo prazo – não é constituído pelo conjunto das demandas individuais por bens de consumo, mas pela demanda intercapitalista, ou seja, a demanda dos capitalistas por bens de capital produzidos por outros capitalistas: máquinas-ferramentas e matérias-primas para a fabricação de máquinas-ferramentas.

Uma enorme fábrica de fabricar fábricas de fabricar mais fábricas ad aeternum. É nisso que consiste o sistema capitalista. E as pessoas, os trabalhadores principalmente, o que representamos nisso tudo? Somos as reses de um gado humano não muito diferente do bovino, do caprino, do ovino e do suíno; somos o apêndice orgânico de uma estrutura mecânica. A propósito, há quem sustente que o mal que hoje acomete a economia globalizada é apendicite aguda.

 

O capitalismo é um animismo

Durante toda a história, os homens têm sido meios a serviço de um fim que os transcende: correia de transmissão da Tradição, vassalos dos ancestrais mortos, escravos de Deus, instrumentos de uma razão-de-Estado ou ferramentas para a construção de um glorioso projeto coletivo.

Ora, e o que é a ética capitalista, essa herança calvinista, a não ser uma moral da velha cepa (religiosa no sentido estrito do termo) que pressupõe a total submissão do homem a um Absoluto, in casu, devoção absoluta ao totem-dinheiro, sujeição à acumulação pela acumulação de riqueza ad aeternum ou, segundo Geoffrey Kay, rendição à “busca irracional da quantidade pura”?

Pela óptica do capitalismo, todas as coisas têm um valor monetário (o dinheiro é o equivalente universal, algo a qual tudo é redutível) e é esse valor que as consagra, que as sacraliza. Tudo mais é profano.

Está claro que não existe diferença substancial entre o onipresente “valor monetário” e o sobrenatural maná dos melanésios, o prana dos hindus, o chi dos chineses, o axé dos cultos nagôs, o Ele dos antigos hebreus, o manitou dos nativos da América do Norte, o arung-quitta dos aborígines australianos, o Espírito Santo das seitas pentecostais e muitos outros animus.

O imaterial valor monetário é algo que se transmite ora por meio do ouro, ora através de moeda escritural ou então mediante papel-moeda, o qual pode ser dólar, libra, real, euro, iene etc. No processo de troca capitalista, o valor monetário global não só se mantém como se reproduz ampliadamente:

Dinheiro ® Mercadoria ® Dinheiro + dinheiro ® Mercadoria + mercadoria’ > Dinheiro + dinheiro’ + dinheiro’’ ® …

Parece até algo vivo, auto-replicante – feito um vírus – e cujo caldo nutritivo é esse mercado universal onde os próprios homens figuram como uma mercadoria entre mercadorias, como um meio entre outros de reprodução da riqueza abstrata. [1]

Aliás, não raro o valor monetário se comporta como uma entidade mística ou mágica que, mediante manipulação alquímica de bruxos especuladores, infla, cresce ou some miraculosamente.

A magia de contágio do dinheiro também se manifesta em sua capacidade de converter contrários uns nos outros, de transformar determinada qualidade humana naquela que lhe é oposta; ou seja, subvertendo a lógica, o dinheiro identifica A com não-A. Sobre esse poder mágico, Shakespeare escreveu: “Que é isso? Ouro? Ouro amarelo, brilhante, precioso? (…) Um pouco disso tornaria o preto, branco; o feio, belo; o injusto, justo; o vil, nobre; o velho, novo; o covarde, valente.” (Shakespeare; Timon de Atenas).

 

Mais espaço entre as grades 

Talvez eu esteja exagerando, considerando um “tipo ideal” e não o capitalismo tal como se manifesta concretamente, mas uma coisa é certa: se não fosse a democracia, o Estado de Direito Democrático que condiciona a busca do lucro e progressivamente estende a todos os benefícios da civilização, a realidade seria esta que acabei de descrever. Isto não quer dizer que a democracia um dia irá destruir a jaula. Não. A democracia apenas abre mais espaço entre as grades, o que já é um grande progresso. É, se não se pode escapar do inferno, então que se busque uma sombra, um abrigo para a soalheira, onde o calor infernal é menos causticante.

E não pensem que será o amor à Humanidade – esse ídolo do paganismo cosmopolita – que um dia nos resgatará desse servilismo, que nos fará superar essa alienação. A Humanidade (escrita assim, com “H” maiúsculo) não passa de uma abstração, um meme a mais. E em nome desta abstração, isto é, pelo bem do Homem-em-geral, dezenas de milhões de homens concretos, singulares e de carne e osso já foram sacrificados, aviltados, assassinados, sobretudo no decorrer do século XX.

 

Bodes expiatórios e bodes amorosos 

É regra que as pessoas, para permanecerem urbanas e gentis com os seus vizinhos e em paz consigo mesmas, concentrem todo o ódio que resulta de suas frustrações num bode expiatório: os negros, os judeus, os estrangeiros, os fumantes, os gays ou qualquer outra categoria humana que sirva para simbolizar o “Outro”.  Por outro lado, há muitos indivíduos pérfidos que, para calar a voz da consciência e justificar suas vilanias, elegem um “bode amoroso” em cujo altar tudo é sacrificável. O bode amoroso (expressão inventada pelo escritor Robert Musil) tem que ser algo grande, do tamanho do narcisismo de quem o cultua, para que, diante dele, tudo pareça insignificante e desprezível. Como, por exemplo, a Liberdade, álibi preferido dos mais concupiscentes, entre os quais esses que almejam transar com todo mundo inclusive, e, sobretudo, com a mulher do amigo, apenas por ser a mulher do amigo. Esses são de longe, porém, os menos perigosos, pois, se seu comportamento é absolutamente ditado pelo id, o instinto que domina o seu id é a sexualidade, a pulsão da vida (se bem que, entre os primatas, sexo e poder amiúde se combinam). Muito piores são aqueles dominados pela paixão que tudo nega – e que, segundo Mefistófeles, “nega com razão, pois tudo que existe ruma devagar para a destruição, melhor que jamais tivesse existido” – ou seja, esses que têm o comportamento regido pelo anelo da morte, Tanatos. Destes, os bodes amorosos preferidos são três: a Pátria, Deus (ou sua versão laica, a Razão) e a Humanidade.

 

Razão para viver ou motivo para morrer? 

Sobre a macacada patriótica e seu rugido oligofrênico “ein Volk, ein Reich, ein Führer!”, nem é preciso comentar. Quanto a Deus, obviamente que não se trata do Deus de Abraão, de Jesus Cristo e Maomé, de Santo Agostinho e Spinoza. É ao Deus de Torquemada, do saboiano Joseph De Maistre e dos mujahedins de Osama Bin Laden que agora me reporto; ou seja, refiro-me ao Supremo Juiz que delega a assassinos a Sua Onipotência e Onisciência; reporto-me a essa Infinita “Bondade” que não é razão para viver, mas motivo para matar e morrer – o escopo da ação dos fundamentalistas camicases (do japonês: kami, ‘deus’; kaze, ‘vento’) e de todos aqueles que se aprazem como carcereiro ou carrasco a serviço do Senhor.

 

Humanismo realista versus humanismo nominalista[2]

E a hipóstase Humanidade? Uma historinha ilustra bem as intenções secretas de um determinado tipo de “humanista”, do que é capaz a firme resolução de fazer a Humanidade ascender ao Reino da Liberdade. E quem nos conta é o historiador marxista Eric Hobsbawm em seu livro “A Era dos Extremos”. Relata ele que o líder do Partido Comunista da Itália, Palmiro Togliatti, andava muito preocupado com “a jovial disposição de Mao de aceitar a inevitabilidade de uma guerra nuclear e sua possível utilidade como um meio de provocar a derrota final do capitalismo”. Para dissuadi-lo, foi ter com ele pessoalmente. Lembrou-lhe que um armagedon atômico faria desaparecer muitos países, entre eles a Itália.  Mao Tse-Tung respondeu com as seguintes palavras: “Quem lhe disse que a Itália deve sobreviver? Restarão três milhões de chineses e isso será o bastante para a raça humana continuar” (EE; Cia. das Letras; 2ª edição; p. 227).

O amor de Mao Tse-Tung pela humanidade é muito diferente daquele apregoado por um outro marxista: o próprio Marx (que, aliás, em certa ocasião, disse não ser marxista, o que é compreensível). O filósofo alemão manifestou o seu humanismo durante um desentendimento entre ele e sua esposa Jenny – por causa da sua total concentração nos trabalhos teóricos, em prejuízo dos deveres de pai e marido – que por pouco não levou o casal à separação. Numa carta chorosa à mulher, enviada de Manchester em 1856, Marx afirmou que o móbil de todo o seu esforço não era o amor a um “universal”, mas o amor a algo bem mais concreto e que somente este pode ser considerado genuíno amor ao homem. “O amor” – escreveu Marx – “não é o amor de Feuerbach pela humanidade, nem o amor de Moleschott pelo metabolismo, nem sequer o amor ao proletariado, mas o amor pela bem amada, o amor por ti, permite ao homem tornar-se novamente homem.” Creio que Marx quis dizer que amar a humanidade não é amar uma essência descarnada, ao contrário, trata-se de um amor “carnal”, amor ao “particular”, que é a síntese do singular com o universal. Amor aos “homens” e não ao “Homem”, enfim. Aliás, se é através dos fenômenos que se chega à essência, então “é por meio do meu amor por cada um de vocês – minha companheira, meus filhos, meus amigos, etc. – que amo toda a humanidade”. [3]

 

A revolta dos homens contra os replicadores egoístas

Um humanismo coerente tem que levar em conta a revolta do homem contra a ditadura dos genes e dos memes que o próprio Richard Dawkins, o criador da memética, faz questão de salientar: “Só nós, na Terra, temos o poder de nos rebelar contra a tirania dos replicadores egoístas.” (O Gene Egoísta; Gradiva; p. 283) Ele mesmo manifesta essa revolta quando afirma que, apesar de defender, como cientista acadêmico, o ultradarwinismo atomista, é ardentemente antidarwinista quando a questão é política ou a condução dos negócios humanos (A devil's chaplain).

Sendo assim, o humanismo autêntico é aquele que valoriza não o Homem genérico, mas os homens considerados um a um. Acresce dizer, no entanto, que, como não sabemos se a revolta humana contra a tirania dos plasmas germinativo e noológico é em princípio trágica, convém mantermos uma postura crítica e mesmo cética também com relação a esta outra “idéia” de humanismo.

 

Ceticismo filosófico: as idéias postas no seu devido lugar  

A propósito, o ceticismo filosófico contemporâneo de Popper, Feynman e André Comte-Sponville (um ceticismo que não nega a existência da verdade objetiva, mas tão-somente a pretensão de todo conhecimento que julga a si mesmo como indubitável), esse ceticismo constitui a principal arma de combate à ditadura das idéias sobre o cérebro humano. Mediante o questionamento da certeza absoluta, ele põe as idéias no seu devido lugar, ou seja, numa posição subordinada aos seus criadores: os homens reais, concretos, de carne, osso e nervos.

E se, consoante a memética, os memes, as idéias, os entes noológicos[4] são de fato seres vivos de um tipo novo que se nutrem da atividade eletroquímica do cérebro e se propagam através da linguagem (segundo Pierre Auger, “as idéias reproduzem-se nos meios constituídos pelos cérebros humanos, que são seus ecossistemas nutritivos” – Auger, 1966, págs. 98/99), uma posição cética em relação ao conhecimento em geral – cética, porém não niilista, frise-se – garante que a relação das idéias com os homens seja sempre de simbiose: impede que aquelas, munidas com a toxina da certeza, tornem-se parasitas mortificantes ou mesmo letais, e nós, seus organismos hospedeiros de triste sina.

 

Democracia: um jogo de soma zero

Concluindo: em nossa busca por uma razão de ser, por um sentido para a vida, com freqüência e involuntariamente nos vemos a professar um anti-humanismo que apenas aparentemente não é. Depois de nos convencermos disso, passamos a defender outra idéia, muito provavelmente outro anti-humanismo. Será que vivemos num labirinto fechado, num complexo de becos sem saída? Na dúvida, fico com a democracia, não porque a democracia seja uma saída, mas porque estou convencido de que o jogo democrático é um jogo de soma zero onde os anti-humanismos se anulam uns aos outros.

 


[1] É por esta e por outras que estou convencido de que o capital – dinheiro “vivo” que submete a produção e o consumo à sua função auto-reprodutora – é um meme poderoso, ou melhor, uma mutação do meme-deus; que o liberalismo econômico radical não passa de uma teologia; que o “Estado mínimo” propugnado pelos profetas, grão-sacerdotes, padres e beatos da igreja de Milton Friedman & Cia., longe de ser um Estado laico, é na verdade um Estado confessional que visa a impor um credo religioso fundado numa santíssima trindade: Capital, Eficiência, Progresso.

 

[2] Realismo: nesta acepção, tese filosófica segundo a qual os universais têm existência própria e independente. Sua antítese é o “nominalismo”, que defende serem os universais, os conceitos gerais, criações do espírito, ou seja, meros nomes que servem para designar conjuntos de entes singulares que apresentam propriedades comuns. Segundo o nominalismo, somente as coisas singulares têm uma existência concreta.

[3] O amor ao homem concreto é também amor “de homem concreto” e não amor angelical, razão pela qual não raro se manifesta de forma ambígua, ambivalente. Marx, como homem concreto que era – uma quimera de anjo e demônio como, de resto, somos todos nós – também cometeu vilanias, como o fato de não ter reconhecido o filho que teve com a sua empregada doméstica.

[4] Noológico: do grego noûs: pensamento; lógos: lei ou razão. Noologismo: sistema criado pelo filósofo alemão Christoph Eucken (1846-1926), que defende a autonomia absoluta da vida espiritual.

Caravagio, Êxtase de São Francisco

 

 

 

 

     
 
Conceição Paranhos

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Edna Menezes
 

 

 

 

 

 

 

 

2.11.2007