Manuel Soares Bulcão Neto
O
ANTI-HUMANISMO
E SEUS BODES AMOROSOS
“Idéias, símbolos, espíritos e deuses dispõem não só de uma
realidade subjetiva, mas também de uma certa autonomia objetiva.
Produzidos pelos cérebros, tornam-se vivos de um tipo novo, e os
cérebros, sendo sistemas fracamente controlados, são como aprendizes
de feiticeiros em relação àqueles seres”. Edgar Morin
O ovo: razão de ser da galinha
Depois que Richard Dawkins esboçou a
teoria dos memes – a hipótese de que as idéias são seres autônomos
auto-replicadores cujo hábitat é o cérebro humano – tem gente
falando por aí que um erudito não passa de um artifício que uma
biblioteca usa para produzir outras bibliotecas. Trata-se de uma
versão original daquela frase disparatada de Samuel Butler, “uma
galinha é um meio que um ovo usa para produzir outros ovos”,
assertiva que tem servido como metáfora para o darwinismo atomista
atualmente em voga. Segundo esta escola da teoria sintética da
evolução (também conhecida como “ultradarwinismo”), é a preservação
dos genes a razão última da nossa existência, isto é, todos nós –
animais, plantas, fungos e micróbios – nada mais somos que
“veículos-robôs cegamente programados para preservar as moléculas
egoístas conhecidas pelo nome de genes”.
Essa hipótese científica de que não
somos senhores do nosso próprio destino não é assim tão nova. No
final do século XIX, o alemão August Weismann já a teria formulado
em outros termos. De acordo com esse biólogo, o corpo do indivíduo,
por ele denominado “somatoplasma”, é tão-somente o veículo dos seus
próprios gametas ou plasma germinativo. Como aquele soldado de
Maratona, somos mensageiros programados para sermos mais rápidos que
o princípio universal da degradação da energia, dispostos a tudo
para proteger e transmitir a informação que trazemos conosco e que,
depois de cumprida a missão, nada mais nos resta a não ser ficar à
toa e, conforme a canção de Raul Seixas, “com a boca escancarada
esperando a morte chegar”.
A produção e o progresso material
como um fim em si mesmo
Mesmo antes de Weismann, outro alemão,
desta vez um economista e filósofo, dissera algo semelhante. Em sua
análise da economia capitalista, Karl Marx demonstrou que o “Homo
oeconomicus” não é outra coisa que um instrumento de que uma fábrica
se vale para produzir outras fábricas. Com efeito, no capitalismo
verifica-se algo muito estranho: o grosso da demanda agregada – sem
o qual não haveria, neste mercado centrado no lucro, um equilíbrio
oferta-procura de longo prazo – não é constituído pelo conjunto das
demandas individuais por bens de consumo, mas pela demanda
intercapitalista, ou seja, a demanda dos capitalistas por bens de
capital produzidos por outros capitalistas: máquinas-ferramentas e
matérias-primas para a fabricação de máquinas-ferramentas.
Uma enorme fábrica de fabricar
fábricas de fabricar mais fábricas ad aeternum. É nisso que consiste
o sistema capitalista. E as pessoas, os trabalhadores
principalmente, o que representamos nisso tudo? Somos as reses de um
gado humano não muito diferente do bovino, do caprino, do ovino e do
suíno; somos o apêndice orgânico de uma estrutura mecânica. A
propósito, há quem sustente que o mal que hoje acomete a economia
globalizada é apendicite aguda.
O capitalismo é um animismo
Durante toda a história, os homens têm
sido meios a serviço de um fim que os transcende: correia de
transmissão da Tradição, vassalos dos ancestrais mortos, escravos de
Deus, instrumentos de uma razão-de-Estado ou ferramentas para a
construção de um glorioso projeto coletivo.
Ora, e o que é a ética capitalista,
essa herança calvinista, a não ser uma moral da velha cepa
(religiosa no sentido estrito do termo) que pressupõe a total
submissão do homem a um Absoluto, in casu, devoção absoluta ao
totem-dinheiro, sujeição à acumulação pela acumulação de riqueza ad
aeternum ou, segundo Geoffrey Kay, rendição à “busca irracional da
quantidade pura”?
Pela óptica do capitalismo, todas as
coisas têm um valor monetário (o dinheiro é o equivalente universal,
algo a qual tudo é redutível) e é esse valor que as consagra, que as
sacraliza. Tudo mais é profano.
Está claro que não existe diferença
substancial entre o onipresente “valor monetário” e o sobrenatural
maná dos melanésios, o prana dos hindus, o chi dos chineses, o axé
dos cultos nagôs, o Ele dos antigos hebreus, o manitou dos nativos
da América do Norte, o arung-quitta dos aborígines australianos, o
Espírito Santo das seitas pentecostais e muitos outros animus.
O imaterial valor monetário é algo que
se transmite ora por meio do ouro, ora através de moeda escritural
ou então mediante papel-moeda, o qual pode ser dólar, libra, real,
euro, iene etc. No processo de troca capitalista, o valor monetário
global não só se mantém como se reproduz ampliadamente:
Dinheiro ® Mercadoria ® Dinheiro +
dinheiro ® Mercadoria + mercadoria’ > Dinheiro + dinheiro’ +
dinheiro’’ ® …
Parece até algo vivo, auto-replicante
– feito um vírus – e cujo caldo nutritivo é esse mercado universal
onde os próprios homens figuram como uma mercadoria entre
mercadorias, como um meio entre outros de reprodução da riqueza
abstrata. [1]
Aliás, não raro o valor monetário se
comporta como uma entidade mística ou mágica que, mediante
manipulação alquímica de bruxos especuladores, infla, cresce ou some
miraculosamente.
A magia de contágio do dinheiro também
se manifesta em sua capacidade de converter contrários uns nos
outros, de transformar determinada qualidade humana naquela que lhe
é oposta; ou seja, subvertendo a lógica, o dinheiro identifica A com
não-A. Sobre esse poder mágico, Shakespeare escreveu: “Que é isso?
Ouro? Ouro amarelo, brilhante, precioso? (…) Um pouco disso tornaria
o preto, branco; o feio, belo; o injusto, justo; o vil, nobre; o
velho, novo; o covarde, valente.” (Shakespeare; Timon de Atenas).
Mais espaço entre as grades
Talvez eu esteja exagerando,
considerando um “tipo ideal” e não o capitalismo tal como se
manifesta concretamente, mas uma coisa é certa: se não fosse a
democracia, o Estado de Direito Democrático que condiciona a busca
do lucro e progressivamente estende a todos os benefícios da
civilização, a realidade seria esta que acabei de descrever. Isto
não quer dizer que a democracia um dia irá destruir a jaula. Não. A
democracia apenas abre mais espaço entre as grades, o que já é um
grande progresso. É, se não se pode escapar do inferno, então que se
busque uma sombra, um abrigo para a soalheira, onde o calor infernal
é menos causticante.
E não pensem que será o amor à
Humanidade – esse ídolo do paganismo cosmopolita – que um dia nos
resgatará desse servilismo, que nos fará superar essa alienação. A
Humanidade (escrita assim, com “H” maiúsculo) não passa de uma
abstração, um meme a mais. E em nome desta abstração, isto é, pelo
bem do Homem-em-geral, dezenas de milhões de homens concretos,
singulares e de carne e osso já foram sacrificados, aviltados,
assassinados, sobretudo no decorrer do século XX.
Bodes expiatórios e bodes amorosos
É regra que as pessoas, para
permanecerem urbanas e gentis com os seus vizinhos e em paz consigo
mesmas, concentrem todo o ódio que resulta de suas frustrações num
bode expiatório: os negros, os judeus, os estrangeiros, os fumantes,
os gays ou qualquer outra categoria humana que sirva para simbolizar
o “Outro”. Por outro lado, há muitos indivíduos pérfidos que, para
calar a voz da consciência e justificar suas vilanias, elegem um
“bode amoroso” em cujo altar tudo é sacrificável. O bode amoroso
(expressão inventada pelo escritor Robert Musil) tem que ser algo
grande, do tamanho do narcisismo de quem o cultua, para que, diante
dele, tudo pareça insignificante e desprezível. Como, por exemplo, a
Liberdade, álibi preferido dos mais concupiscentes, entre os quais
esses que almejam transar com todo mundo inclusive, e, sobretudo,
com a mulher do amigo, apenas por ser a mulher do amigo. Esses são
de longe, porém, os menos perigosos, pois, se seu comportamento é
absolutamente ditado pelo id, o instinto que domina o seu id é a
sexualidade, a pulsão da vida (se bem que, entre os primatas, sexo e
poder amiúde se combinam). Muito piores são aqueles dominados pela
paixão que tudo nega – e que, segundo Mefistófeles, “nega com razão,
pois tudo que existe ruma devagar para a destruição, melhor que
jamais tivesse existido” – ou seja, esses que têm o comportamento
regido pelo anelo da morte, Tanatos. Destes, os bodes amorosos
preferidos são três: a Pátria, Deus (ou sua versão laica, a Razão) e
a Humanidade.
Razão para viver ou motivo para
morrer?
Sobre a macacada patriótica e seu
rugido oligofrênico “ein Volk, ein Reich, ein Führer!”, nem é
preciso comentar. Quanto a Deus, obviamente que não se trata do Deus
de Abraão, de Jesus Cristo e Maomé, de Santo Agostinho e Spinoza. É
ao Deus de Torquemada, do saboiano Joseph De Maistre e dos
mujahedins de Osama Bin Laden que agora me reporto; ou seja,
refiro-me ao Supremo Juiz que delega a assassinos a Sua Onipotência
e Onisciência; reporto-me a essa Infinita “Bondade” que não é razão
para viver, mas motivo para matar e morrer – o escopo da ação dos
fundamentalistas camicases (do japonês: kami, ‘deus’; kaze, ‘vento’)
e de todos aqueles que se aprazem como carcereiro ou carrasco a
serviço do Senhor.
Humanismo realista versus humanismo
nominalista[2]
E a hipóstase Humanidade? Uma
historinha ilustra bem as intenções secretas de um determinado tipo
de “humanista”, do que é capaz a firme resolução de fazer a
Humanidade ascender ao Reino da Liberdade. E quem nos conta é o
historiador marxista Eric Hobsbawm em seu livro “A Era dos
Extremos”. Relata ele que o líder do Partido Comunista da Itália,
Palmiro Togliatti, andava muito preocupado com “a jovial disposição
de Mao de aceitar a inevitabilidade de uma guerra nuclear e sua
possível utilidade como um meio de provocar a derrota final do
capitalismo”. Para dissuadi-lo, foi ter com ele pessoalmente.
Lembrou-lhe que um armagedon atômico faria desaparecer muitos
países, entre eles a Itália. Mao Tse-Tung respondeu com as
seguintes palavras: “Quem lhe disse que a Itália deve sobreviver?
Restarão três milhões de chineses e isso será o bastante para a raça
humana continuar” (EE; Cia. das Letras; 2ª edição; p. 227).
O amor de Mao Tse-Tung pela humanidade
é muito diferente daquele apregoado por um outro marxista: o próprio
Marx (que, aliás, em certa ocasião, disse não ser marxista, o que é
compreensível). O filósofo alemão manifestou o seu humanismo durante
um desentendimento entre ele e sua esposa Jenny – por causa da sua
total concentração nos trabalhos teóricos, em prejuízo dos deveres
de pai e marido – que por pouco não levou o casal à separação. Numa
carta chorosa à mulher, enviada de Manchester em 1856, Marx afirmou
que o móbil de todo o seu esforço não era o amor a um “universal”,
mas o amor a algo bem mais concreto e que somente este pode ser
considerado genuíno amor ao homem. “O amor” – escreveu Marx – “não é
o amor de Feuerbach pela humanidade, nem o amor de Moleschott pelo
metabolismo, nem sequer o amor ao proletariado, mas o amor pela bem
amada, o amor por ti, permite ao homem tornar-se novamente homem.”
Creio que Marx quis dizer que amar a humanidade não é amar uma
essência descarnada, ao contrário, trata-se de um amor “carnal”,
amor ao “particular”, que é a síntese do singular com o universal.
Amor aos “homens” e não ao “Homem”, enfim. Aliás, se é através dos
fenômenos que se chega à essência, então “é por meio do meu amor por
cada um de vocês – minha companheira, meus filhos, meus amigos, etc.
– que amo toda a humanidade”.
[3]
A revolta dos homens contra os
replicadores egoístas
Um humanismo coerente tem que levar em
conta a revolta do homem contra a ditadura dos genes e dos memes que
o próprio Richard Dawkins, o criador da memética, faz questão de
salientar: “Só nós, na Terra, temos o poder de nos rebelar contra a
tirania dos replicadores egoístas.” (O Gene Egoísta; Gradiva; p.
283) Ele mesmo manifesta essa revolta quando afirma que, apesar de
defender, como cientista acadêmico, o ultradarwinismo atomista, é
ardentemente antidarwinista quando a questão é política ou a
condução dos negócios humanos (A devil's chaplain).
Sendo assim, o humanismo autêntico é
aquele que valoriza não o Homem genérico, mas os homens considerados
um a um. Acresce dizer, no entanto, que, como não sabemos se a
revolta humana contra a tirania dos plasmas germinativo e noológico
é em princípio trágica, convém mantermos uma postura crítica e mesmo
cética também com relação a esta outra “idéia” de humanismo.
Ceticismo filosófico: as idéias
postas no seu devido lugar
A propósito, o ceticismo filosófico
contemporâneo de Popper, Feynman e André Comte-Sponville (um
ceticismo que não nega a existência da verdade objetiva, mas
tão-somente a pretensão de todo conhecimento que julga a si mesmo
como indubitável), esse ceticismo constitui a principal arma de
combate à ditadura das idéias sobre o cérebro humano. Mediante o
questionamento da certeza absoluta, ele põe as idéias no seu devido
lugar, ou seja, numa posição subordinada aos seus criadores: os
homens reais, concretos, de carne, osso e nervos.
E se, consoante a memética, os memes,
as idéias, os entes noológicos[4]
são de fato seres vivos de um tipo novo que se nutrem da atividade
eletroquímica do cérebro e se propagam através da linguagem (segundo
Pierre Auger, “as idéias reproduzem-se nos meios constituídos pelos
cérebros humanos, que são seus ecossistemas nutritivos” – Auger,
1966, págs. 98/99), uma posição cética em relação ao conhecimento em
geral – cética, porém não niilista, frise-se – garante que a relação
das idéias com os homens seja sempre de simbiose: impede que
aquelas, munidas com a toxina da certeza, tornem-se parasitas
mortificantes ou mesmo letais, e nós, seus organismos hospedeiros de
triste sina.
Democracia: um jogo de soma zero
Concluindo: em nossa busca por uma
razão de ser, por um sentido para a vida, com freqüência e
involuntariamente nos vemos a professar um anti-humanismo que apenas
aparentemente não é. Depois de nos convencermos disso, passamos a
defender outra idéia, muito provavelmente outro anti-humanismo. Será
que vivemos num labirinto fechado, num complexo de becos sem saída?
Na dúvida, fico com a democracia, não porque a democracia seja uma
saída, mas porque estou convencido de que o jogo democrático é um
jogo de soma zero onde os anti-humanismos se anulam uns aos outros.
[1] É por esta e
por outras que estou convencido de que o capital – dinheiro
“vivo” que submete a produção e o consumo à sua função
auto-reprodutora – é um meme poderoso, ou melhor, uma
mutação do meme-deus; que o liberalismo econômico radical
não passa de uma teologia; que o “Estado mínimo” propugnado
pelos profetas, grão-sacerdotes, padres e beatos da igreja
de Milton Friedman & Cia., longe de ser um Estado laico, é
na verdade um Estado confessional que visa a impor um credo
religioso fundado numa santíssima trindade: Capital,
Eficiência, Progresso.
[2] Realismo:
nesta acepção, tese filosófica segundo a qual os universais
têm existência própria e independente. Sua antítese é o
“nominalismo”, que defende serem os universais, os conceitos
gerais, criações do espírito, ou seja, meros nomes que
servem para designar conjuntos de entes singulares que
apresentam propriedades comuns. Segundo o nominalismo,
somente as coisas singulares têm uma existência concreta.
[3] O amor ao
homem concreto é também amor “de homem concreto” e não amor
angelical, razão pela qual não raro se manifesta de forma
ambígua, ambivalente. Marx, como homem concreto que era –
uma quimera de anjo e demônio como, de resto, somos todos
nós – também cometeu vilanias, como o fato de não ter
reconhecido o filho que teve com a sua empregada doméstica.
[4] Noológico: do
grego noûs: pensamento; lógos: lei ou razão. Noologismo:
sistema criado pelo filósofo alemão Christoph Eucken
(1846-1926), que defende a autonomia absoluta da vida
espiritual.
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