O velho
escrevinhador e sua última adolescência
Cada idade possui sua
adolescência. Em qualquer momento da vida tem-se a
chance de quebrar o osso das convenções, de ferir os
dogmas e os paradigmas que nos foram impostos. Mas o
momento mais inusitado para essa puxada do tapete é
na chamada melhor idade. Nesse momento de acomodação
o que mais incomoda os outros é a busca dos atalhos,
a fuga da estrada principal
Um exemplo é fugir de
casa aos setenta anos. E foi exatamente isso que ele
fez no dia do septuagésimo aniversário. Quem conta a
história é Felipe Barroso em O velho que ainda
escrevia cartas de amor. Publicado pela Editora 7
Letras, do Rio de Janeiro, esse autor cearense teve
seu livro selecionado para publicação no II Edital
de Incentivo às Artes, da Secretaria de Cultura do
Estado do Ceará. Trata-se de uma coletânea de contos
com alguns deles premiados anteriormente, outros
publicados na revista Literapia e um deles incluído
entre os escolhidos do 2º Prêmio Ideal Clube de
Literatura, em 1999. Vê-se assim que o escritor não
é neófito na arte da escritura nem na prática da
divulgação de seus escritos.
Ao longo do seu livro
Eros e Thânatos se dão as mãos e vão margeando o
destino dos personagens. É a tia que pede ao
sobrinho médico que a mate. É a ex-namorada do velho
setentão que morrera jovem, solteira e bela sendo
visitada no cemitério. É o doente de câncer que
passa a viver no campo santo. Como se vê, há em
todos os contos do livro a presença inarredável da
morte. O desfile de fantasmas dá a cada história uma
atmosfera fantástica sem apelar para o divino nem
para o maravilhoso.
O autor, Felipe
Barroso, nascido em 1963, em Fortaleza, logo que
ficou taludo de corpo e olhudo de curiosidades meteu
o pé na estrada e navegou por mares estranhos e
distâncias ignotas. Cumprindo o estatuto das almas
inquietas, captou as dores do mundo e
transfigurou-as em verbo. Esse seu verbo tem a
credencial de quem foi, viu e escreveu. É uma
verdadeira reportagem narrativa com a atmosfera do
conto, com todas as características da história
curta.
Advogado e professor
Universitário, ele deriva da lei à leitura, da
leitura à escritura. Conseqüência disso é a frase
enxuta, a pureza gramatical e a concisão no elaborar
textual. Essa pureza com que trata o vernáculo é
tamanha que não se encontra nenhuma achega
gramatical nos originais dos contos, e leva-nos à
conclusão de que sua escritura pode até se iniciar
com a inspiração, mas o tempo mais gasto na educação
textual fica por conta do burilamento da forma.
Nisso Felipe Barroso é perfeccionista.
Uma característica que
chama a atenção do leitor é seu pendor para derivar
sem receio do conto á crônica. Mesmo o livro sendo
de contos, há alguns momentos em que o leitor se
depara com bem urdida crônica de costumes. É algo
escrito tão despreocupadamente e tão no limite entre
os dois gêneros que fica difícil definir se se trata
de texto apenas comprometido com o tempo presente ou
se é a criação de uma narrativa curta via descrição
impressionista. É o caso de "Menino e trocador",
"Bancos de aluguel", "A noiva de Bristol" e
"Aniversário". Isso não é demérito nenhum e foi
praticado por escritores como Carlos Drummond de
Andrade e Clarice Lispector. O importante é que em
todos eles o tempo aparece como elemento
fundamental, dada a feição corrosiva de que é
imbuído.
O tempo é pois o liame
entre os componentes textuais como a lubrificar o
texto nos seus momentos de seca racionalidade de
quem se educou, se habilitou e milita no positivista
mundo das leis. O tempo da escritura perlonga por
vinte anos de cozinhamento antes de servir seus
leitores com esta edição de belo acabamento. Vinte
anos de tempero e adubo nos trazem agora um texto
tenro e salpicado de ternura para com os personagens
nascidos e robustecidos no seio do povão. Radagásio,
que podia ser Sebastião-Cara-de-Sabão, tocava
trombone na banda do Batalhão de Caçadores, e usava
bigode até virar "Ford Bigode" e ter que raspá-lo
com o barbeiro Chico Dadá. Antes de morrer de si
morria da morte dos outros através de "seus olhos
neblinados". Havia um carpidar permanente escanchado
no existir do personagem.
Também o autor vem a
carpir as dores daqui e dalhures. Depois de bater
perna por esse mundão que Deus nos deu, Felipe
Barroso voltou para sua loura desposada do sol com a
experiência das figuras picarescas. Filho pródigo,
concluiu: "Minha cidade é meu reino". E foi mais
além: "Minha cidade é igualzinha às outras do resto
do mundo". Para chegar a essa conclusão foi preciso
desdobrar o canivete, cortar os punhos da fianga e
proclamar para engraxates, jornaleiros e passarinhos
quem era o verdadeiro rei do mundo, imperador dos
caminhos. Era ele próprio. Convencido de que a
bateria para lhe energizar estava ligada no cordão
umbilical, voltou a Fortaleza de corpo, alma e
escritura neste seu livro de contos. Daí sua
propensa dupla função de narrador e personagem a
transparecer.
Contar histórias não é
para qualquer um. Não é para quem tem medo de
fantasmas, noite escura, encruzilhada e alma penada.
Por isso que ele enfrentou a bruxa Teresa, surgida
na noite alta da floresta de arranha-céus, e deu-lhe
voz nos seus escritos. Seu conto "Teresa, a bruxa" é
um prenúncio de que a velha noctívaga não é única na
esteira da devastação que a miséria espalha nos
grandes centros urbanos sobre aqueles predestinados
ao suplício do abandono. Miséria tão maior que a da
Duquesa que pede ao médico que a mate por não ter
suporte para gemer vagidos de dor. O mundo da dor é
um aprendizado que só os treinados superam.
Felipe Barroso é pois
um exímio contador de histórias. Isso acontece
porque ele observa, ouve e ausculta a pulsação da
urbe. Narrador urbano, ele dá voz aos que não têm
voz mesmo tendo muito o que dizer. Seus textos fazem
uma prospecção nesse mundo que as elites ignoram mas
que lateja e reverbera, grita e geme bem diante de
nosso nariz. Nós podemos até ignorar esse mundo,
Felipe Barroso não comete esse pecado. Ele carrega
consigo as dores do mundo, que de tão pesadas ele as
divide agora com seus leitores através desse velho
que ainda escrevia cartas de amor.