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Majela Colares


 

Poema Anônimo


O poema que não fiz
(mas sempre canto)
está mais em mim
que muitos...
(pouco que escrevi)
é o mais inconstante
indefinido
dos poemas que vivi

o poema que não fiz
traduz meu mundo
está implícito...
único
em meu verso
já não sei quem sou
quem ele é
- fundiram-se todos os limites

O poema que não fiz
sorri comigo e sofre
e dorme e finge...
pensa a anônima forma
só para não ser,
enfim, subjuntivo

o poema que não fiz
surge do nada
e conspira a relatividade do tudo
(é a razão variável do verbo)
não há palavras
não há gestos
metáforas
tinta
que o descreva

o poema que não fiz
(mas sempre canto)
fecunda a própria poesia
que me seduz a vida inteira


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904)

 

 

 

 

 

Majela Colares


 

O Silêncio da Flor


Foi quando as flores não vingaram frutos:
(nos secos ramos, ressecaram tardes)
as folhas murchas despencaram pálidas
se dispersaram contornando rastros

pelos caminhos conspiravam fugas
levando marcas de uma morte lenta,
porque raízes omitiram seiva
para mante-las sempre ao caule, sempre...

mas foi da terra sim, que a morte veio
do chão que a planta ruminava nuvens,
o fio de água, transformado em lodo,
contido pela rigidez da argila.

Foi quando as folhas se acharam adubo:
(nas secas tardes, renasceram ramos)
antigas folhas inundando o caule,
imune seiva, frutos-flores, quando...


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904)

 

 

 

 

 

Majela Colares


 

Os Limites do Tempo


Meia face de sol - a tarde finda
nos limites do céu e da calçada.
Uma tarde partida, quando ainda
refletida entre cores, desbotada.

Aquarela dispersa - morte linda.
(Colorido de tez avermelhada)
mas o tempo ilusório fez infinda
meia face de sol desfigurada.

Murchas pétalas de horas finge o monte
rente a linha deserta do horizonte
feito rosa pendida... rosa-flores.

Nos limites da sombra projetada
nos contornos da noite aproximada
percebo o tempo farejando as cores.


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Triumph of Neptune

 

 

 

 

 

Majela Colares


 

O Mamulengo


Sentir o mundo - movimento e graça -
bordar sorrisos, encarnar em pano.
(Esta emoção ao morto-vivo abraça)
gesto ilusório. Sábio? Não. Profano?

Irreal vida exsurge, incerto plano
de ser boneco e homem, palco e praça
ao projetar-se voz, trejeito - engano...
confuso rito que no olhar disfarça.

O mamulengo finge o rosto e tinge
de rubra cor os lábios, flor-esfinge,
erguida, efêmera, na instável face

incontroversa (esta anônima peça)
que no teatro de boneco expressa
o homem louco sem nenhum disfarce.


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, Venus Presenting  Arms to Aeneas

 

 

 

 

 

Majela Colares


 

As Marcas do Tempo



O último impulso do segundo antes
ao projetar-se no após segundo

risca no tempo cicatrizes, fendas...
(o largo corte invariável, sempre)
que esculpe a forma virtual do instante

no confundível e abstrato mármore,
imagem sólida do momento único.


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, Rebecca at the Well

 

 

 

 

 

Majela Colares


 

O Pastor e Sua Aldeia
a Altino Caixeta de Castro

Eu creio que a eternidade nasceu na aldeia
Lucian Blaga



O ladrido infinito de um cão morto
nas vozes de outros cães é repetido

muito além, incessante ao nosso ouvido
mais além, muito além da voz de um cão

trago a lua no bolso e o sol na mão
e um rebanho de cabras e de estrelas

no desejo incomum de sempre tê-las
na distante lembrança de uma aldeia

pervagando a memória das areias
onde estrelas e cabras pastam sonhos

trago à sombra de alpendres breve sono
pressentindo o rangido da tramela

despertado ao contorno da janela
no silêncio imortal da noite fria

canta o galo, outra vez, e denuncia
(seu cantar tem a cor da lua cheia)

o prenúncio de um dia em outro dia
da eterna solidão - eterna aldeia.


 

 

 

 

 

01/11/2006