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Manolo Florentino

Jornal do Conto
 

 

Ensaio, crítica, resenha & comentário: 


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Micheliny Verunschk

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Astrid Cabral

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Manolo Florentino

Folha de São Paulo

14.12.2009


 

 

Nos cabarés do México

 

 

Em viagem ao país nos anos 80, historiador destaca a superposição de dois mercados no espaço da prostituição: o do sexo e o da ternura  

 

 

O mundo era outro em 1984. Truísmo? Pode ser. Mas, se o Maio de 68 já varrera o Ocidente, o Muro de Berlim desmoronaria apenas cinco anos depois. Na América Latina, os cartéis do pó ainda ensaiavam entrar na política.

Nicarágua e El Salvador estavam em guerra civil, a guerrilha era forte na Guatemala e o general cubano Arnaldo Ochoa desfrutava das glórias de ser um veterano das guerras em Angola e na Etiópia. Cabeça erguida, seria fuzilado em 1989, acusado de envolvimento com Pablo Escobar, chefão do Cartel de Medellín [na Colômbia].

Vagávamos pelo México um antropólogo, um escritor beberrão -ambos legítimas minhocas da terra- e eu, diletante nos mistérios de Clio.

Éramos jovens e, como tal, sempre a buscar acelerar o tempo, indagando-nos sobre temas que os anos certamente se encarregariam de responder -mal sabíamos que, para entender certas coisas, bastava envelhecer.

Alfredo, Leon e eu andávamos atrás de um bom combate. Por ofício ou teimosia, desconfiávamos de tudo o que fizesse questão de se apresentar politicamente correto.
 

Direita e esquerda

Nos demos conta de que direita e esquerda marchavam unidas quando se tratava de pensar a relação entre os clientes e as prostitutas, reduzida a mera transação mercantil -sexo por dinheiro-, não raro imersa em divagações sobre a pobreza e a luxúria ou em pura misericórdia. Não tínhamos propriamente uma hipótese alternativa a essa.

Mesmo assim, partimos para a pesquisa de campo -refiro-me ao meretrício de cabaré, não às prostitutas de rua ou de luxo, bem entendido.

As primeiras questões a enfrentar diziam respeito ao método. Como entrar nos prostíbulos sem perder tempo, sem assustar nossos interlocutores e, sobretudo, sem colocar em risco as nossas próprias integridades físicas?

Pensamos em explorar os famosos bordéis das regiões petrolíferas, perigosos postos que eram dominados pelas máfias ligadas aos sindicatos de petroleiros. Conhecíamos bem os motivos que levariam o peruano Mario Vargas Llosa a escrever que o Partido Revolucionário Institucional criara uma ditadura perfeita, amalgamando Estado, repressão e pelegos.

Era muito arriscado. Talvez porque tivesse seus momentos de sobriedade, Leon sugeriu o atalho dos prostíbulos de província. Ao escolher uma cidadezinha, nosso beberrão matou dois coelhos de uma só vez, pois também encontrou o cafetão.

Sim, nas províncias, para exercer a profissão, as "meninas" eram obrigadas a fazer exames periódicos para comprovar não serem transmissoras de doenças, algo que fazia com que muitos médicos trocassem o "nada consta" por sexo e dinheiro.

Uma vez que, sem o aval do cafetão, a pesquisa seria inviável, de repente lá estávamos em Tula [nos arredores da Cidade do México], espremidos na sala claustrofóbica de um hospital público, diante de um médico baixinho, gordo, suando em bicas. No lado esquerdo de sua mesa, uma garrafa de uísque, já pela metade.
Na outra ponta, a pistola 45 cromada, repousando placidamente sobre uma flanela. O cafetão um dia fizera o juramento de Hipócrates.

 

Conhecedor do meio.

Óbvio, não se apresentara como rufião, coisa de garçons e policiais, dizia. Mas como alguém cujo ofício o tornara conhecedor do meio.

Soubemos então que havia quatro cabarés em Tula, com cerca de 40 prostitutas em cada, trabalhando das 21h às 5h -quatro programas por jornada. Às sextas e sábados, um antro recebia, em média, 200 homens. A prostituta típica era uma jovem de outra cidade, mãe solteira rechaçada pela família, a quem paradoxalmente mantinha com seu labor.

Vez por outra, despia-se das vestes de médico, perdendo-se em devaneios, sobretudo quando falava do cáften -"padrote"-, figura essencial para o bom funcionamento do jogo.

Dizia que a prostituta era uma solitária por definição, carente da proteção e carinho de um homem. Que, de quebra, deveria ser geneticamente dotado de uma especial habilidade sexual, pois a cada uma de seu pequeno harém (cinco, em média) tinha de satisfazer de modo particular e pleno.

Do hospital fomos ao cabaré frequentado pelo doutor. Novos problemas se colocaram.

O primeiro: sem álcool ninguém se socializa no México. Como eu era o único abstêmio, decidi tomar uns tragos para fazer o social e, gravador em punho, coloquei-me à disposição para entrevistar as meninas. Se rolasse alguma coisa com elas, Alfredo era o mais safo.

O segundo problema: não conseguíamos perder o ar de intelectuais, de jornalistas ou cineastas, sei lá.

De repente, as meretrizes viraram celebridades loucas para serem entrevistadas. Lembro-me de Salomé, cujo marido sempre a chamara de puta. Quando um raio o matou, ela, sem alternativa, virou puta mesmo. Recordo ainda o desespero que tomou conta de mim e de Alfredo ao vermos Leon, mal-intencionado e para lá de Bagdá, tirando uma moça para bailar. Com mímicas e outros sinais, lutávamos para alertá-lo de que ela não possuía um dente sequer. Fracassamos.

 

Falar ou esquecer

Dias depois, fizemos o balanço da aventura.
Os solitários com quem topamos, olhando de modo sonhador para os pequenos copos de tequila, nos deram a certeza de que Octavio Paz (1914-98) se equivocara ao escrever que nos apartávamos dos anglo-saxões porque bebíamos para falar, e eles para esquecer.

Escapou-lhe que nós, latinos, também temos algo a olvidar: o trabalho repetitivo, as pequenas humilhações cotidianas e, sobretudo, a impossibilidade de juntar em uma única figura a mulher, a mãe dos filhos e a amante. No limite, esquecer de nós mesmos.

Igualmente, concluímos que uma prostituta profissional detinha um conhecimento tão profundo do homem que sua vagina era, na verdade, um pênis invertido.

Clientes e meretrizes realmente profissionais sabem que a frivolidade é uma conquista. Tampouco foi difícil capturar em cada cabaré a fluida superposição de dois mercados: o do sexo, óbvio, mas também o mercado da ternura, sempre impregnando o ar e cada gesto.

A Alfredo, revejo-o em anos ímpares. De Leon nunca mais soube.
 


MANOLO FLORENTINO é professor de história na Universidade Federal do Rio de Janeiro e organizador de "Tráfico, Cativeiro e Liberdade" (ed. Civilização Brasileira). Escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!
 

 

 

Soares Feitosa

 

 

Da Arte!

 

Todo muno sabe que este é um site de poesia. O que faz, pois, aqui um artigo de historiador, que bicho mais chato que historiador simplesmente não existe?

O encanto. Eis a resposta. Pode até ser que Manolo Florentino seja historiador; mas é, antes de qualquer coisa, um artista. A palavra. A palavra exata. Justa. A Arte!

Lia o artigo dele, assim por cima, na diagonal, quando me deparei:

 

Éramos jovens e, como tal, sempre a buscar acelerar o tempo, indagando-nos sobre temas que os anos certamente se encarregariam de responder - mal sabíamos que, para entender certas coisas, bastava envelhecer.

 

Reli. Reli tudo. Risquei, anotei, salvei.

Embevecido, meu caro leitor, trago-lho para compartilhar.

Poesia da melhor. A ironia, o mais fino humor - o humor contra si mesmo, o único realmente legítimo. E de Leon nunca mais soube. Saberia, dele, o Leon?

Em resumo, escrever bem, com elegância, nada a ver com o tema.

Parabéns, meu caro Manolo, Artista da Palavra!

 

 

  Riviere Briton, 1840-1920, UK, Una e o leão

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ana Guimarães

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Tércia Montenegro

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Maria Maia

 

 

 

 

 

 

 

 

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A menina afegã, de Steve McCurry