Estilhaços no lago de púrpura
Uma leitura teriomórfica
Feliz posfácio de Ronald Polito para o poema de um só
fôlego de Wilmar Silva intitulado Estilhaços no lago de
púrpura. Além de motivar a recepção pelo leitor mediante
focos eivados de surrealismo, contra-cultura beatnik,
hiper-realismo ou laivos hodiernos de um neo-barroco, o
crítico detém-se na vertente que aponta para uma
“tentativa de organização de uma para-realidade”, a
qual, por sua vez, “pressupõe uma organicidade primeira,
anterior ao “eu” e seus “objetos”, que talvez a poesia
possa reencontrar reencantando o mundo e a si mesma.”
A leitura crítica é também esclarecedora ao assinalar,
no livro, um posicionamento “para além da natureza
porque um “eu” precisa devorar mitologias, reproduzi-las
ou fundar outras, investindo com faunos e curupiras ao
sair para a guerra que é a vida.”
É esse foco que sobremaneira interessa-me esclarecer,
consciente de haver em Estilhaços no lago de púrpura
umas tantas outras incursões igualmente merecedoras de
olhares verticais. Essa visão abrangente agrega desde a
purgação telúrica a uma sertanização da experiência
subjetiva de um poeta devoto às raízes dos cerrados de
Rio Paranaíba, região agreste compósita de uma
mineiridade incomum na poesia.
Como incorpora uma estética da repetição que trabalha
palavras-situações freqüentes em um memorialismo da
terra de origem e, ainda, uma aventura narcísico-erótica
que torna a alteridade procurada o êxtase de si mesma.
Ao eleger “afetividades seletivas”, Wilmar Silva está
inteirado de que pós-moderno é o que tem raiz e de que
essa é a conditio da fragmentação epistêmico-poética a
exigir do autor, hoje, a neuedichte – nova densidade na
produção do estranhamento. É aí que o poeta esperneia
para (se) dizer, donde justificar-se, na produção
contemporânea, a pluralidade de diretrizes norteadoras
de escolhas também múltiplas.
Os desdobramentos neo-barrocos de Wilmar Silva expõem
descrições fraturadas oriundas de muitas tradições,
desde cânones que inclusive evocam para si cantares
medievais, a rupturas imprescindíveis com as vanguardas
históricas, em função da sobrevivência da própria
poesia.
O autor se coloca, como indica Perloff, como “o falante
isolado numa paisagem específica [diante/dentro/a
favor/contra] a qual medita ou rumina sobre algum
aspecto de sua relação exterior, chegando por fim a
alguma sorte de epifania, um momento de percepção em que
o poema se encerra.”
Nesse sentido, Estilhaços no lago de púrpura inclui-se
entre as publicações recentes que intentam (e conseguem)
trabalhar uma linguagem revitalizada de sentido. E cabe
a ela, para justificar sua raridade, apud Rodrigo Garcia
Lopes, “ser crítica, exploratória, surpreendente,
revelatória, celebratória.”
O homem bicho do homem
O reencantamento do mundo almejado por Wilmar Silva
pressupõe assumir o poeta os riscos de elaborar um
imaginário complexo.
Observe-se os fragmentos seguintes: “sou este cavalo
com escamas nas crinas” (1) – “coiote eu/eu hiena” (2) –
“sonho caçar as mulas que habitam pântanos nas orelhas”
– “um lobo eu faminto” – “sou este que brame no
desespero de cigarra – um grilo com aquele cricri” (3) –
“eu gambá” (4) – “eu murmuro salmos para suspender as
jias” (5) – “sou eu as barbatanas que cingem minhas
pálpebras de algas e arcos” (7) – “eu disse serpentes
com a voz contida” (10) – “sou esta tarântula aninhada
nas axilas” – “sou esta mula que debate bestas nos
olhos” – “sou este mulo que apenas você há de desvendar”
(11) – “eu/uma semente que tem cabeça e faz dormir uma
onça com um leão e uma jandaia em meu ventre” (14) –
“sou esta novilha com êxtase de égua no curral” (17) –
“sou este corcel/eu um corço entre avestruz e seriemas –
sou esta ema com onze penas de pavão – (...) – eu e
minha fazenda de poemas” (19) – “um animal com rimas que
dizem líricas” (24) – “sou esta represa onde peixes
nascem da terra” – “eu este wilmar silva que vira
cavala” (28).
O bestiário constitui sobremaneira a intentio auctoris
de Wilmar Silva e da poesia de Estilhaços. Trata-se de
procedimento usual na literatura do mundo, cujo primeiro
livro em verso de caráter religioso é o de título
homônimo, de Philippe de Thaon (século XII); em nível
profano é apontado também o homônimo de Richard de
Fournival. Há considerável bibliografia referente ao
tema, caso de Manoel de Barros, o Borges de “O livro dos
seres imaginários”; Júlio Cortazar em “Bestiário”; do
poeta paraguaio radicado no México, Victor Sosa, autor,
entre outros, de “Los animales furiosos”; do mexicano
Juan José Arreola, autor de “Bestiário”; do carioca
Marco Luchesi de “Meridiano celeste & bestiário”, do
Augusto de Campos também de “Bestiário em poesia é
risco”; de Astrud Cabral em “Jaula”, a prosa do mineiro
Abelardo de Carvalho, também em “Bestiário”; na tradição
surrealista “O bestiário ou cortejo de Orfeu”, de
Apollinaire; de algumas parábolas de Kafka.
O poema de um só fôlego de Wilmar Silva inscreve-se
entre os que têm “algo em sua imagem que se harmoniza
com a imaginação dos homens”, como afirma Borges.
Esse bestiário reflete a (convivência do poeta com a
dura vida rural, que é, em contrapartida, encantatória e
esterco do imaginário. Parece ele querer “resgatar o
pertencimento humano à natureza”, como opor-se ao
“recalcamento progressivo do sentido das metáforas.” Por
sua linguagem surrealírica, o livro é um libelo crítico
à razão aristotélica, questiona a si mesma e propõe uma
nomeação que se não é inusitada em nível
semântico-lingüístico, surpreende pela contingência do
pensar.
Poder-se-ia até admitir Estilhaços como de tendência a
um darwinismo cultural, no stricto sensu de traduzir a
evolução da vida poética através de nomes e conceitos
genéticos da linguagem, ou da luta pela vida, como em
Euclides da Cunha.
Animais são componentes do imaginário real transposto à
poética por uma dinâmica organizadora de mitologemas,
que cria um plano locutório o qual, diz Durand,
“assegura uma certa universalidade nas intenções da
linguagem e coloca a estruturação simbólica na raiz de
qualquer pensamento.”
Nesse sentido, o que a priori resultaria apenas
surrealismo (e não seria pouco) em ser “esta lontra com
pele de cigarra” (5), “este corpo que segrega mil
canários de pedra no azul” (10), “um cavalo indomável”
(16) – “este pomar de relevos (...) que alimentem um
fauno, uma fauna, um camaleão” (22) etc, evoca a
“potência fundamental dos símbolos que é a de ligarem,
para lá das contradições naturais, os elementos
inconciliáveis, as compartimentações sociais e as
segregações dos períodos da história (...), categorias
motivantes dos símbolos nos comportamentos elementares
do psiquismo humano” (Durand:1977:38). Donde a
imaginação ser, no imaginário poético, originária de
libertação (défoulement).
A assertiva ressoa em Bachelard quando o mestre
fenomenológico assevera serem os eixos das intensões
(com S) fundamentais da imaginação os trajetos dos
gestos principais do animal humano em direção ao seu
meio natural, prolongado pelas instituições primitivas
tecnológicas e sociais do homo faber.
Estilhaços seria um longopoema de mitologia pessoal?
Exercício de isomorfismo com polarização de imagens? Uma
leitura pertinente do livro de Wilmar Silva está em
tomar suas metáforas como símbolos teriomórficos. “São
as imagens animais as mais freqüentes e comuns”, diz
Durand, que acrescenta: “Podemos dizer que nada nos é
mais familiar, desde a infância, que as representações
animais. O bestiário parece, portanto, solidamente
instalado na língua, na mentalidade coletiva e na
fantasia individual.”
Por sua vez, Krappe reconhece que “o homem tem assim
tendência para a animalização do seu pensamento e uma
troca constante faz-se por essa assimilação entre os
sentimentos humanos e a animação do animal.”
Pela análise antropológica das estruturas imaginárias de
Gilbert Durand, esses símbolos teriomórficos remetem a
mitos emblemáticos. E uma razão para isso existir está
no fato de que “a imaginação mascara tudo que não a
serve.” “O animal, diz Durand, apresenta-se, portanto,
como um abstrato espontâneo, o objeto de uma assimilação
simbólica, como mostra a universalidade e a pluralidade
da sua presença tanto numa consciência civilizada como
na mentalidade primitiva. (...) O bestiário parece,
portanto, solidamente instalado na língua, na
mentalidade coletiva e na fantasia individual.”
Texto ferótico, Estilhaços elenca animais que, pela
ótica junguiana, são antigos símbolos fálicos, caso do
pássaro, peixe, serpente, burro, touro e cavalo. E
Durand adverte: “É por isso necessário ligar a
imaginação teriomórfica a uma camada ontogenética mais
primitiva que o Édipo, e sobretudo a uma motivação mais
universalizável.”
O livro de Wilmar Silva tem uma capacidade envolvente do
leitor, que se torna o “eu”-bicho do narrador-poeta e
que faz na alteridade o seu igual em todo ser humano que
pensa, poeticamente, no zoológico das palavras.
Márcio Almeida é
mestre em Literatura, jornalista, poeta, criador do
Movimento de Resgate do Autor Inédito e Anônimo de
Oliveira.
marcioal@vertentes.com.br