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Márcio Almeida

marcioal@vertentes.com.br

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ensaio, crítica, resenha & comentário: 


Alguma notícia do autor:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Conceição Paranhos

 

Vera Queiroz

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Alessandro Allori, 1535-1607, Vênus e Cupido

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ingres, 1780-1867, La Grande Odalisque

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Thomas Colle,  The Return, 1837

 

 

 

 

 

 

 

 

Márcio Almeida


 

 

Estilhaços no lago de púrpura

Uma leitura teriomórfica

 

Feliz posfácio de Ronald Polito para o poema de um só fôlego de Wilmar Silva intitulado Estilhaços no lago de púrpura. Além de motivar a recepção pelo leitor mediante focos eivados de surrealismo, contra-cultura beatnik, hiper-realismo ou laivos hodiernos de um neo-barroco, o crítico detém-se na vertente que aponta para uma “tentativa de organização de uma para-realidade”, a qual, por sua vez, “pressupõe uma organicidade primeira, anterior ao “eu” e seus “objetos”, que talvez a poesia possa reencontrar reencantando o mundo e a si mesma.”

A leitura crítica é também esclarecedora ao assinalar, no livro, um posicionamento “para além da natureza porque um “eu” precisa devorar mitologias, reproduzi-las ou fundar outras, investindo com faunos e curupiras ao sair para a guerra que é a vida.”

É esse foco que sobremaneira interessa-me esclarecer, consciente de haver em Estilhaços no lago de púrpura umas tantas outras incursões igualmente merecedoras de olhares verticais. Essa visão abrangente agrega desde a purgação telúrica a uma sertanização da experiência subjetiva de um poeta devoto às raízes dos cerrados de Rio Paranaíba, região agreste compósita de uma mineiridade incomum na poesia.

Como incorpora uma estética da repetição que trabalha palavras-situações freqüentes em um memorialismo da terra de origem e, ainda, uma aventura narcísico-erótica que torna a alteridade procurada o êxtase de si mesma.

Ao eleger “afetividades seletivas”, Wilmar Silva está inteirado de que pós-moderno é o que tem raiz e de que essa é a conditio da fragmentação epistêmico-poética a exigir do autor, hoje, a neuedichte – nova densidade na produção do estranhamento. É aí que o poeta esperneia para (se) dizer, donde justificar-se, na produção contemporânea, a pluralidade de diretrizes norteadoras de escolhas também múltiplas.

Os desdobramentos neo-barrocos de Wilmar Silva expõem descrições fraturadas oriundas de muitas tradições, desde cânones que inclusive evocam para si cantares medievais, a rupturas imprescindíveis com as vanguardas históricas, em função da sobrevivência da própria poesia.

O autor se coloca, como indica Perloff, como “o falante isolado numa paisagem específica [diante/dentro/a favor/contra] a qual medita ou rumina sobre algum aspecto de sua relação exterior, chegando por fim a alguma sorte de epifania, um momento de percepção em que o poema se encerra.”

Nesse sentido, Estilhaços no lago de púrpura inclui-se entre as publicações recentes que intentam (e conseguem) trabalhar uma linguagem revitalizada de sentido. E cabe a ela, para justificar sua raridade, apud Rodrigo Garcia Lopes, “ser crítica, exploratória, surpreendente, revelatória, celebratória.”

           

O homem bicho do homem

 O reencantamento do mundo almejado por Wilmar Silva pressupõe assumir o poeta os riscos de elaborar um imaginário complexo.

 Observe-se os fragmentos seguintes: “sou este cavalo com escamas nas crinas” (1) – “coiote eu/eu hiena” (2) – “sonho caçar as mulas que habitam pântanos nas orelhas” – “um lobo eu faminto” – “sou este que brame no desespero de cigarra – um grilo com aquele cricri” (3) – “eu gambá” (4) – “eu murmuro salmos para suspender as jias” (5) – “sou eu as barbatanas que cingem minhas pálpebras de algas e arcos” (7) – “eu disse serpentes com a voz contida” (10) – “sou esta tarântula aninhada nas axilas” – “sou esta mula que debate bestas nos olhos” – “sou este mulo que apenas você há de desvendar” (11) – “eu/uma semente que tem cabeça e faz dormir uma onça com um leão e uma jandaia em meu ventre” (14) – “sou esta novilha com êxtase de égua no curral” (17) – “sou este corcel/eu um corço entre avestruz e seriemas – sou esta ema com onze penas de pavão – (...) – eu e minha fazenda de poemas” (19) – “um animal com rimas que dizem líricas” (24) – “sou esta represa onde peixes nascem da terra” – “eu este wilmar silva que vira cavala” (28).

 O bestiário constitui sobremaneira a intentio auctoris de Wilmar Silva e da poesia de Estilhaços. Trata-se de procedimento usual na literatura do mundo, cujo primeiro livro em verso de caráter religioso é o de título homônimo, de Philippe de Thaon (século XII); em nível profano é apontado também o homônimo de Richard de Fournival. Há considerável bibliografia referente ao tema, caso de Manoel de Barros, o Borges de “O livro dos seres imaginários”; Júlio Cortazar em “Bestiário”; do poeta paraguaio radicado no México, Victor Sosa, autor, entre outros, de “Los animales furiosos”; do mexicano Juan José Arreola, autor de “Bestiário”; do carioca Marco Luchesi de “Meridiano celeste & bestiário”, do Augusto de Campos também de “Bestiário em poesia é risco”; de Astrud Cabral em “Jaula”, a prosa do mineiro  Abelardo de Carvalho, também em “Bestiário”; na tradição surrealista “O bestiário ou cortejo de Orfeu”, de Apollinaire; de algumas parábolas de Kafka.

O poema de um só fôlego de Wilmar Silva inscreve-se entre os que têm “algo em sua imagem que se harmoniza com a imaginação dos homens”, como afirma Borges.

Esse bestiário reflete a (convivência do poeta com a dura vida rural, que é, em contrapartida, encantatória e esterco do imaginário. Parece ele querer “resgatar o pertencimento humano à natureza”, como opor-se ao “recalcamento progressivo do sentido das metáforas.” Por sua linguagem surrealírica, o livro é um libelo crítico à razão aristotélica, questiona a si mesma e propõe uma nomeação que se não é inusitada em nível semântico-lingüístico, surpreende pela contingência do pensar.

Poder-se-ia até admitir Estilhaços como de tendência a um darwinismo cultural, no stricto sensu de traduzir a evolução da vida poética através de nomes e conceitos genéticos da linguagem, ou da luta pela vida, como em Euclides da Cunha.

Animais são componentes do imaginário real transposto à poética por uma dinâmica organizadora de mitologemas, que cria um plano locutório o qual, diz Durand, “assegura uma certa universalidade nas intenções da linguagem e coloca a estruturação simbólica na raiz de qualquer pensamento.”

Nesse sentido, o que a priori resultaria apenas surrealismo (e não seria pouco) em ser “esta lontra com pele de cigarra” (5), “este corpo que segrega mil canários de pedra no azul” (10), “um cavalo indomável” (16) – “este pomar de relevos (...) que alimentem um fauno, uma fauna, um camaleão” (22) etc, evoca a “potência fundamental dos símbolos que é a de ligarem, para lá das contradições naturais, os elementos inconciliáveis, as compartimentações sociais e as segregações dos períodos da história (...), categorias motivantes dos símbolos nos comportamentos elementares do psiquismo humano” (Durand:1977:38). Donde a imaginação ser, no imaginário poético, originária de libertação (défoulement).

A assertiva ressoa em Bachelard quando o mestre fenomenológico assevera serem os eixos das intensões (com S) fundamentais da imaginação os trajetos dos gestos principais do animal humano em direção ao seu meio natural, prolongado pelas instituições primitivas tecnológicas e sociais do homo faber.

Estilhaços seria um longopoema de mitologia pessoal? Exercício de isomorfismo com polarização de imagens? Uma leitura pertinente do livro de Wilmar Silva está em tomar suas metáforas como símbolos teriomórficos. “São as imagens animais as mais freqüentes e comuns”, diz Durand, que acrescenta: “Podemos dizer que nada nos é mais familiar, desde a infância, que as representações animais. O bestiário parece, portanto, solidamente instalado na língua, na mentalidade coletiva e na fantasia individual.”

Por sua vez, Krappe reconhece que “o homem tem assim tendência para a animalização do seu pensamento e uma troca constante faz-se por essa assimilação entre os sentimentos humanos e a animação do animal.”

Pela análise antropológica das estruturas imaginárias de Gilbert Durand, esses símbolos teriomórficos remetem a mitos emblemáticos. E uma razão para isso existir está no fato de que “a imaginação mascara tudo que não a serve.” “O animal, diz Durand, apresenta-se, portanto, como um abstrato espontâneo, o objeto de uma assimilação simbólica, como mostra a universalidade e a pluralidade da sua presença tanto numa consciência civilizada como na mentalidade primitiva. (...) O bestiário parece, portanto, solidamente instalado na língua, na mentalidade coletiva e na fantasia individual.”

Texto ferótico, Estilhaços elenca animais que, pela ótica junguiana, são antigos símbolos fálicos, caso do pássaro, peixe, serpente, burro, touro e cavalo. E Durand adverte: “É por isso necessário ligar a imaginação teriomórfica a uma camada ontogenética mais primitiva que o Édipo, e sobretudo a uma motivação mais universalizável.”

O livro de Wilmar Silva tem uma capacidade envolvente do leitor, que se torna o “eu”-bicho do narrador-poeta e que faz na alteridade o seu igual em todo ser humano que pensa, poeticamente, no zoológico das palavras.


Márcio Almeida é mestre em Literatura, jornalista, poeta, criador do Movimento de Resgate do Autor Inédito e Anônimo de Oliveira. marcioal@vertentes.com.br


 

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