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Maria J Fortuna


 

O tempo II


O tempo desata as rédeas da vida
Que cavalga veloz
Retira as presilhas do vento
E desmancha as tranças
Douradas e negras
De um rosto de mil faces
Em cujos olhos residem
O profundo
O mutável
Ó eterno

E que mãos sutis possui o tempo!
Com tal sutileza
Com tal singeleza
Toca
Cada coisa em cada um
E tudo se transforma
Como chamas em boca de forno
Alquimia do ser
Que tudo quer ter

Inútil aspiração!
O tempo cumpre
E tudo leva
Sem deixar vestígios
Nas pregas do seu vestido invisível
Não deixa pegada alguma
Dos dias, meses, anos vividos
Roupagem de contas
Que o homem inventou
Para cobrir sua nudez mortal


Belo Horizonte, 03.02.1993

 

 

 

Ticiano, O amor sagrafo e o profano, detalhe

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Luís Manoel Paes Siqueira

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Memories, detail

 

 

 

 

 

Maria J Fortuna


 

O vestido


Este vestido frio e transparente
Deixa-me exposta aos quatro ventos
E me faz cavalgar meus desejos
Encima de um unicórnio alado

Soltas as estribeiras
Um violino amordaçado
Reprime o som de suas cordas
A velha esmaga o fumo no canto da boca
E a sereia canta contemplando-se no espelho
Lá longe a garotinha chora ausência da mãe

E eu completamente nua
Refletindo sobre a dor no meu seio solitário
Fabrico asas de penas para me cobrir
E debulho milho em perolas noturnas
Cantando uma cantiga de ninar

Uma voz rabugenta fala
Com jeito de criança envergonhada
- Sou mulher e não vi o tempo passar
Tão nua estou eu neste vestido!...

 

 

 

Leonardo da Vinci,  Study of hands

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Anísio Lage Neto

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John Martin (British, 1789-1854), The Seventh Plague of Egypt

 

 

 

 

 

Maria J Fortuna


 

 

 

Poema vermelho


Vem,
Percorre o meu mundo vermelho
Rastreia minhas montanhas
Reconhece meus vales
O áspero e o macio
O morno e o aveludado
Despeja rubis como lágrimas
Celebra a cor do meu sangue
A vegetação do meu corpo
Sente a umidade dos meus lagos
Veias e artérias incandescentes
Reza no êxtase do momento
E despeja fagulhas de prazer
Aos quatro cantos do mundo

O que é santo lateja
O que profano explode
No vulcão dos nossos corpos
A um só tempo!

E a lanterna do amor
Nos conduz ao mistério
E os corpos se arrepiam
No segredo de um bruxo safado

Rastreamos nossos odores
Como feras famintas
Como o condor dos sonhos alados
Recordo o toque primordial
O doce embalo materno
Da respiração incontida
Até a evocação das magas
Com suas formas rubras
Extraídas do seio da terra
De amor fecundante
´
Movimento de quem sobe e desce
A montanha russa do prazer
Este amor em labaredas
Lambe as nossas almas
E se apaga de repente
Assim que a luz do farol azul retornar
Aí me dou conta de que...

Sou menina
Filha
Mãe
Mulher!


Rio de Janeiro, 22.10.2004

 

 

 

Ticiano, Magdalena

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Roberto Gobatto

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Michelangelo, 1475-1564, Teto da Capela Sistina, detalhe

 

 

 

 

 

Maria J Fortuna


 

 

 

Teus odores


Meu corpo
Rastreia teus odores
Como fera faminta
Percorre montanhas e vales
Vagabundeia nos deslizes
Onde o suor lambusa
Meus desejos manhosos
Eriça todos os pelos
Brinca de escorrega
De forma lúdica lânguida
Pulsa com o coração
Desperta a criança
Desperta a mãe
Desperta a mulher
E eu te respiro
Como se fosse morrer
A qualquer momento...


Rio de Janeiro, 24.10.2004

 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

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Culpa

 

 

 

29.04.2005