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Múcio Leão 

Titian, Venus with Organist and Cupid

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poesia :


 Alguma notícia do autor:

 

Múcio Leão

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Da Vinci, Madona Litta_detalhe.jpg

 

Ticiano, Flora

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Bathsheba,

Múcio Leão


 

A poesia que desce ao poeta


Poeta, ser estranho, ser enigmático entre os seres!
Vejo-o, isolado das cores, das formas e das idéias,
Isolado, nessa crepuscular solidão que o acompanha.


E é então que vejo descer sobre ele
Uma como sombra de celestiais eflúvios:
- A Poesia, a Poesia de inesperadas ressonâncias,
A grande Poesia, que é uma exalação indefinível,
Que é um som infinito, vindo de outras esferas,
Que é a comunicação miraculosa de outros seres
e de outras regiões.


Poesias, 1949
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Velazquez, A forja de Vulcano

Múcio Leão



As luas


Sobre a população desta amarga cidade
Pairam, longínquas, as sombras de duas grandes lusas.


Elas velam o sono de Deus.
Uma está posta sobre os olhos de Deus,
E é por seu intermédio que os divinos olhos
Penetram os pensamentos e as dores
Do coração aflitíssimo dos homens.


A outra lua está colocada sobre o cérebro de Deus;
- E é a música, e é o sonho, e é o maravilhamento
De novas artes puras e perfeitas,
Que os homens jamais hão de conhecer.


Poesias, 1949
 

   

 

Um esboço de Da Vinci

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Junot Silveira

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Tintoretto, Criação dos animais

Múcio Leão


 

Contrição


Eu não te mereci. Eras bela e eras pura.
Havia na tua alma um secreto esplendor,
Misto de suavidade, emoção e ternura.
E essa luz era o amor!


Um dia, meigamente, amada peregrina,
Vieste pousar, sorrindo, o teu olhar no meu.
E havia no teu ser uma graça divina,
Um encanto imortal, que logo me prendeu.


Eu pude acreditar, quando chegaste, linda,
Para mim descerrando a mais clara manhã,
Que em tua luz feliz, que em tua luz infinda
Se me abria Canaã.


Perdoa, seu eu, que sou imperfeito, um momento
Ousei volver o olhar à tua perfeição,
Implorando um sorriso ao teu recolhimento,
Implorando um carinho à tua solidão.


Poesias, 1949
 

   

 

Mary Wollstonecraft, by John Opie, 1797

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Francisco Brennand

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ingres, 1780-1867, La Grande Odalisque

Múcio Leão



Elegia


Um dia, amor, tudo o que existe agora,
Tudo o que forma o nosso grande orgulho,
A pureza e o esplendor de nossas almas,
Terá morrido, sem deixar lembrança,
Na velha terra indiferente aos homens.


Nada do que hoje nos parece eterno
Terá ficado do naufrágio imenso.


Esquecidas de nós, as novas almas
Levantarão para as estrelas mudas
O milagre feliz dos novos sonhos,
Sem talvez meditar que a terra outrora
Vira prodígios e deslumbramentos
Semelhantes aos seus, sob um céu puro.


Uma névoa de pó terá coberto
As cidades vaidosas, onde os homens
Hoje, lutando, desvairados, sofrem.
E apenas raros monumentos tristes.


Lembrarão, no candor da branca pedra,
A fronte sacratíssima de um sábio,
De um herói, de um guerreiro, de um poeta,
Que a glória cinja com a divina palma.


Novos deuses, em templos majestosos,
Receberão, no plácido silêncio,
O murmúrio das preces comovidas,
O perfumado fumo das oblatas
E o amor das multidões...
Ah! nesse tempo
Eu terei recebido dos destinos
O bem do esquecimento imperturbável...
Deste homem que hoje sou - das minhas crenças,
Dos meus sonhos de amor, dos meus desejos,
Das minhas ambições mais rutilantes -
Nada mais restará, nada, na terra!


Mas, quem sabe? Talvez, um dia, um homem,
Amigo das pesquisas minuciosas,
Visite longamente as bibliotecas,
Onde durmam os livros seculares,
Que as traças lentas vão destruindo a custo.
E esse homem, cheio de um amor antigo,
Curioso do viver das eras mortas,
Talvez encontre, entre outros livros velhos,
Estes versos que escrevo, e em que minha alma
Fala à tua alma em longas confidências.


E então, meu lindo amor, como evadidos
De um sepulcro, nós dois ressurgiremos
Aos olhos caridosos desse amigo,
Vindos das densas sombras do passado.


Talvez...
Seremos belos!
Nossa fronte,
Há de doirá-la a mesma juventude,
Que hoje nos cerca de um clarão sagrado!
Haverá nos teus lábios esse mesmo
Beijo vibrante que me trazes hoje!
E nos olhos terás o mesmo encanto
Que neles me seduz e prende agora!


Sim: no milagre desse instante ardente,
Nessa ressurreição maravilhosa,
Nós brilharemos juntos, aureolados
De um novo amor e de um carinho novo!


E então esse paciente amigo nosso
Volverá para nós, nos dias de hoje,
Toda a sua saudade religiosa,
E invejará, talvez, piedosamente,
Essa breve, ligeira hora de sonho,
Que hoje os destinos deixam que vivamos...


Poesias, 1949
 

   

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana

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Helena Armond