Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

Múcio Leão


 

Expiação


Muitas vezes, a sós, na desventura,
Volvo a mim mesmo um longo olhar austero,
Um olhar que interroga... e considero
Os abismos de fogo da amargura.


Que deus poderá ser o deus severo,
Que fez cair sobre a minha alma impura
A noite do abandono e da tortura,
Em que desvairo e em que me desespero?


Que pecados trouxe eu das outras vidas?
De que faltas antigas cumpro agora
As penas tristes e descomedidas?


Que alma infeliz dentro em minha alma implora?
Em que velhas estrelas escondidas
Fui réu de crimes sem lembrança, outrora?


Poesias, 1949
 

 

 

William Blake (British, 1757-1827), The Ancient of Days

Início desta página

Ledo Ivo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Thomas Colle,  The Return, 1837

 

 

 

 

 

Múcio Leão


 

Os países inexistentes


- Queres partir comigo para países muito distantes,
Para países que dormem,
Embalados por oceanos que ninguém conhece?


Oh! Vamos juntos! Vamos partir para esses meus
mundos misteriosos!
Levar-te-ei a planícies brancas, cobertas de neve
como as do Alaska.
Verás que há na altura um sol gelado, envolto na poeira
nívea da neve.
E verás que um vento - um vento que uiva nos montes alvos -
Vem beijar teus cabelos cheirosos.


Levar-te-ei a montanhas encantadas, onde habitam
dragões de olhos de fogo.
Verás que no céu as estrelas se desfazem,
Mandando raios doirados coroarem tua fronte serena.
Levar-te-ei às ilhas paradisíacas,
Que estão dormindo no ritmo das ondas mansas.
Lá as árvores dormindo no ritmo das ondas mansas.
Lá as árvores cheias de sombras são feitas de humanas ternuras
E os pássaros que cantam têm uma voz límpida como violinos.


Levar-te-ei a esses mundos estranhos,
A esses mundos formosos que nunca ninguém viu.


E tu hás de repousar a cabeça no meu peito,
Deslumbrada pelos meus países inexistentes.


Poesias, 1949
 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Admiration Maternelle

Início desta página

Thiago de Mello

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Morte de César, detalhe

 

 

 

 

 

Múcio Leão


 

Redenção


Quando eu morrer, a minha íntima essência
Não se há de desfazer, como um clarão:
Há de ficar - beleza, amor, consciência -
Resistindo à final dissolução.


Nessa alta e metafísica existência,
Hei de sentir, na eterna solidão,
Os milagres da vasta efervescência
De um cosmos novo em nova floração.


Sei que a minha alma há de ficar no espaço,
Nos encantos do amor em que vibrei,
Nos estos longos de um divino abraço,


Na glória enganadora a que aspirei,
Na amargura dos verãos que hoje faço,
Nos sonhos vãos em que me dispersei.


Poesias, 1949
 

 

 

Michelangelo, Pietá

Início desta página

Mauro Mendes

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

 

 

 

 

 

Múcio Leão


 

Reencarnação


Quando, no eterno, fúnebre quadrante,
Meu momento final soar, cair;
Quando tu vieres, lacrimosa amante,
Todo de roxos lírios me cobrir;


Nesse supremo, nesse infindo instante,
A que constelações irei subir?
Em que estrela fantástica e radiante
Irei de novo ser e amar e rir?...


Que formas outras, nessas outras vidas,
Florindo sob estranhos firmamentos,
Irá o meu espírito sofrer?


Cansado das angústias doloridas
Da existência de agora - que tormentos
Irei de novo em outros mundos ter?


Poesias, 1949
 

 

 

Rafael, Escola de Atenas, detalhes

Início desta página

Miguel Sanches Neto, 2002

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Three Ages

 

 

 

 

 

Múcio Leão


 

Viver como os pássaros
 

 

Não cuides desta vida, unicamente.
 


Que importa o que amanhã ireis vestir?
 


A vida é um bem apenas aparente
E o corpo humano um simples manto triste,
Que se desfaz em poeira lentamente...


Tesouro recôndito, 1926
 

 

 

Michelangelo, 1475-1564, David, detalhe

Início desta página

Neide Archanjo