Fauno grisalho:
Paulo Garcez de
Sena
Nos últimos dias que
vivi em Salvador, antes de mudar-me para Ilhéus,
tive a honra e o prazer de receber a visita quase
diária do poeta Paulo Augusto Garcez de Sena
(1943-1998). Residíamos na Rua Archimedes Gonçalves,
no Jardim Baiano, no mesmo bairro de Nazaré onde
viveu a sua infância.
Paulo Garcez foi
poeta, jornalista que se dava ao luxo de dispensar a
carteirinha, produtor cultural amante das artes,
diretor de vídeo com algumas aparições em filmes de
curta-metragem, mas sobretudo poeta. Nem tanto pela
extensão da sua obra, que é pequena e dispersa, mas
porque, além de boa poesia, em que pese o talento
pouco explorado, tinha alma e aura de poeta.
Essencialmente
dionisíaco, aflorava o seu lado apolíneo quando o
assunto realmente o apaixonava. Infelizmente nem
todos souberam interpretar a manifestação da sua
lucidez. Não se trata de nenhuma inconfidência
quando digo que cultivou em vida dois grandes
inimigos: o álcool, cuja doença relutava em admitir,
e a obsessiva dispersão que o distanciou da criação
textual.
No único livro que
leva a sua assinatura, dentre alguns que ajudou a
compor e editar, A Escritura da Palavra e do Som,
com poemas e letras de músicas reunidos às pressas
por seus amigos do Ceará, podemos saborear desde a
sutileza lírica de A Pérola e a Concha, ao humor
irônico e inteligente de O Poeta Desiste de Sua
Glória Para Amar a Bela e Desleixada Ana Virgínia.
Paulo foi meu
co-editor numa dezena de poemas publicados no
Cultural de A TARDE, do qual também foi colaborador,
entrevistando várias personalidades do cenário
cultural. Escolhia os poemas e os separava ao seu
bel-prazer. A partir de 94, nas poucas vezes que
retornei a Salvador, fiz questão de visitá-lo na
modesta casa da Curva Grande do Garcia, onde vivia
com seu irmão gêmeo Pedro. Em fevereiro de 97, em
convívio inadiável que fizemos em Stella Maris, na
companhia de Cida, minha mulher, e dos amigos
Socorro Campos e Antônio Luiz Brasileiro Neto,
deixei com ele um maço de textos. Mais tarde, recebo
uma ligação com a voz inconfundível. Não tive
dúvidas, era Paulo Garcez, oito meses depois.
Conversa farta, nos despedimos como sempre, com boas
gargalhadas.
Em fevereiro de 98,
Cida e eu, numa das nossas viagens de automóvel,
retornamos por Salvador para rever os amigos e,
particularmente, levar Paulo Garcez para relaxar as
tensões na "terra de Gabriela". Quis o destino que
assim não fosse, caprichoso no seu redemoinho de
desencontros.
Paulo Garcez era um
sujeito atípico, de quem a gente aprendeu a gostar
até dos defeitos. Em Salvador, costumávamos sair
juntos para a "vagabundagem fraterna", na expressão
de um cronista jacobinense. A sua jovialidade
grisalha contrastava com a minha aparente sisudez
sertaneja e, apesar de ter idade para ser meu pai, o
tinha como a um irmão caçula.
Amante da boemia, apaixonava-se e desapaixonava-se
com igual eficiência e rapidez. Nos melhores dias
via uma musa em cada esquina e, com velocidade de
raciocínio, era capaz de criar uma declaração
singela e até mesmo um poema para cada uma. Por
conta do seu ímpeto donjuanesco, do seu romantismo
de resultados, viveu grandes emoções, com êxito
algumas vezes; em outras, punha em teste a
habilidade diplomática dos amigos para acalmar quem
se sentisse ofendido.
Tribuno intempestivo,
não fazia diferença entre o palco da Sala Walter da
Silveira, um palanque em via pública, ou um
tamborete de botequim, criativamente reunia num
mesmo discurso citações de Glauber a Gramsci, de
Lacan a Zé Limeira. Da antiga tradição baiana do
gogó canoro, sua verve era iconoclasta por natureza
e satírica por opção.
Filho de uma tradicional família do Recôncavo
baiano, cedo renegou os valores de origem. O seu
sentimento contra as injustiças sociais era
verdadeiro e, embora sem nenhuma apetência para o
poder, por duas vezes saiu candidato à vereança de
Salvador. Numa delas, surpreso e condescendente, fui
o último a saber que o meu endereço era o mesmo que
o do seu "comitê". Foi uma "campanha" vitoriosa para
quem subiu no palanque apenas uma vez, na Praça da
Piedade, retirando-se antes de terminar o comício.
No final, foram computados 103 votos a seu favor. "A
vitória foi inconteste", observou Pedro, seu irmão.
De fato, conseguira o que muitos políticos
tradicionais tentam e não conseguem: reunir em seu
favor 103 amigos sinceros.
A última do Paulo
Garcez foi sair de fininho sem se despedir de mim,
logo ele que se despedia, mas não ia, porque sempre
tínhamos o que conversar. Por motivos óbvios eu
ouvia atento mais do que falava. Em breves momentos
para amenidades, nos divertíamos com a inteligentzia
baiana e com as futilidades de pretensa high society
nos coquetéis de lançamentos e vernissages. Mas
também nos angustiávamos com o que chamávamos de
"cultura de condomínio", equivocadamente apelidada
de política cultural.
Por essas e outras é
que para mim não foi fácil acreditar que seu coração
parara. Prefiro pensar que, contra nossa vontade, o
nobre Garcez saiu dessa pra melhor. Mas é claro!
Porque na pior quem ficou mesmo fomos nós, que
perdemos a alegria e a irreverência dele. Para
enganar a tristeza pego a imaginar qual foi a sua
primeira providência no desconhecido. Quiçá
fanfarrão, tenha desafiado o Glauber para provar
quem dos dois é dotado de maior genialidade. Ou,
mais ameno, quem sabe tenha organizado um festival
de piadas "angelicais" com o "capeta" Carybé, para
divertir os amigos de boa companhia, como o poeta
Carlos Anísio Melhor e o cineasta Agnaldo Siri.
Se forem verdade as
coisas que dizem do céu e do inferno, me convenço de
que Paulo Garcez está no céu. Não está no purgatório
porque não era homem de meio termo. Se não chegou
ainda é porque parou num boteco para tomar uma e
errou o caminho. No inferno, jamais. Teria sido
expulso: por insubordinação. O clube do capiroto
sabe o que faz. Jamais iria admitir entrar lá um
sujeito decente como Paulo Garcez. Jamais iria
admitir alguém com tamanha integridade pessoal e
tamanho coração.
Heitor Brasileiro é
poeta e promotor cultural; baiano de Jacobina,
radicou-se em Ilhéus em 1994, onde coordenou o I
Prêmio Sosígenes Costa, de poesia.