Fui eu,

um quadro de Valdir Rocha

Fui eu

Minha versão

Soares Feitosa

Ah, madeiras!

Pó, pólens, o ouro dos jatobás.

Mas a madeira precisa vir de antes. Um pau-marfim seria quase suficiente, mas não tem a dureza nem o travo da justa-cor. O mulungu, sim, cairia na cor. Contudo, madeira arrepiada, não caberia nas raias do contrato. Pereiro, dito piquiá, de amarelo e duro: no tanto!

Porque era assim mesmo: disponível, pau fosse, ideias não lhe faltariam.

Mulungu? Às gaiolas!, de fácil de furar, de bom de enfiar; que pau-marfim nem daqui é; donde, melhor que se fique.

E caçarola.

Fui eu

Mas tem que ter polimento! Nisto, das asas das borboletas, amarelas, é claro. Mais a maciez do jatobá.

E, com um cavaco da própria madeira, madeira contra madeira, arte contra arte, vapt!

Faça-se-lhe um olho, primeiro o esquerdo, papaia, uma semente fértil de papaia, seca, no ponto de planta. Disseste que fértil – como sabes do fértil? Claro que sim! Vê, acima do centro do globo, um micro salto-e-sulco, porque ali, o germe. E luz. Muita Luz.

Fui eu

Claro que sei de gérmens. Escrevo de ouvido e tacto. O navegador Vasco da Gama, bem dentro da cavilha do olho, e seu turbante, tudo na mesma escala, a semente de papaia e o navegador feroz, mas não faz mal, que isto de escalas é coisa de desenhistas. O problema é que o navegador está lá no alto, bem no fundo da panela-de-tampa. Peixes, depois eu mostro.

Fui eu

Vê, é bem no meio, apontando o arcabuz para a esquerda, mas há centenas de outros em sub. Que mais queres ver? Debruça-te sob um tecto. Tanto faz que de céus. [De telhas, de palha, ou de olhos fechados]. Miríades de luzes te escorrerão de dentro dos olhos, ainda que cegos. Apalpa! É lá. Um céu insuportavelmente estrelado, vide Thiago. Destes, eu e Thiago de Mello

Fui eu

As bordas em 45 graus, um pouco menos, entre testa e olho, e as de entre face e venta, hão de ser polidas. Magnificamente polidas! Nisto, a Arte! Repara no lusco-luz do Artista!

Agora sobe, sobe um pouco, volta-te à imagem de lá da cozinha, na parede, fixa num prego. Mas era preta. Ou então, tisnada, que, lá, não era... [Repara ligeiro, bem no canto, a barba de Vasco.]. Não seria a fácies de Da Vinci? Ou de um cantor de rock.

O utensílio estava ali, lavado. Depois, era só ensaboar as mãos de cinza, úmidas, uma pasta de cor...? Cinza, cor cinza, é claro!

Fui eu

Aspergir, colando, pintando, como se, por fora, porque isto de cozinhar a gás, agora tão natural, era a lenha. Fuligem e tisna a evitar nas peças da bateria, penduradas, de puro brilho.

A cada manhã, consultava os oráculos, os dedos da madrinha desenhados em cinza-cal: a que apontariam os arabescos?

Eis a cruel atração pelo divino: ora, uma sombra-luz; ora, o rastejo de uma formiga, à esquerda ou à direita; essas coisas nunca dantes – mas estavam lá! – e me diziam de como encontrá-La numa noite despojada de roupas. A quem não dizem?

Um dia, houve shampoo. De marca Elizabeth e ovo. Que eram duas: a Arden e a outra, a dos olhos, La Burton. Para cabelos oleosos. Tão brilhos e:

As iluminações. Neon, sol-dia, essas luzes de picolé – sob cada qual, mais outra luz, qualquer luz, não sei bem qual, nem como, sequer lhes sei os nomes, leds – leituras.

Melhor que as entranhas das aves. Debruça-te sobre o teu horizonte e ouve! Entre sons apenas trêmulos, tácteis e superfícies – viagens e iluminuras neste yellow.

Fui eu

quem já abriu um jatobá,
bem amarelinho por dentro,
sabe,
é puro ouro,
das asas,
borboletas —
pó, amarelas elas também.”
(1)

Fui eu

Um polimento, pois, aos dedos, tactilmente tácteis. Então, Ela me pegou a cabeça, e, com alguma força, nunca bruta, escangotou-a para trás. A água me escorreu pela nuca. Os cheiros do shampoo e pele. Enxergarias sem o tacto?

Esta, a minha visão.

Soares Feitosa

1) Antífona, “Jornal de Poesia”

 

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Este, o 31º capítulo de Poética, um livro vivo, aberto, gratuito, participado e participativo, cheio de comentários que, a rigor — esta, a proposta —, os comentários, mais importantes que o texto comentado: abrir o debate, uma multivisão.

— Livro vivo, como assim?

— Porque em permanente movimento, espaço aberto a quem chegar, tão amplo como o espaço àqueles que aqui estão desde os séculos, todos em absoluta ordem alfabética. Seja bem-vindo!

POÉTICA: Capa, prefácio e índice poemas e poetas comentaristas

 

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Comentários:

ANDRÉ SEFRIN: Feitosa, meu caro, você é um verdadeiro Jatobá: “Escrevo de ouvido e tacto”. Está dito. É o escritor, é o poeta. Abraços André

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CLAUDIO WILLER: Valdir Rocha tem todos os motivos para estar feliz por ter sido descoberto ou achado por você. Belo encontro de artistas. Ficou bom e o mais importante é seu tom honesto, a credibilidade que seu texto transmite. Abrs, Claudio Willer

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ELIDIA MARIA FRANZIM: Que a Poesia lhe dê (para sempre) esse “sol se rasgando nos jatobás que se explodem de amarelo em borboletas amarelas”, e toda a água das cacimbas claras do Ceará. Abraço e beijo de novo Elidia

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FERNANDO HENRIQUE: Caro Soares Feitosa, olha, muito brevemente: precisarei de um “dicionário nordestino” para poder entender esse seu boneco pascoal. O engraçado é que, não desde agora, mas já há algum tempo, quando seu livro li, achei que precisaria passar um tempo em sua terra para poder abstrair alguns sabores, cheiros, coisas mais para tocar e ver... Como poderei saber quão macio é o jatobá? E as borboletas de asas amarelas, o que tão raramente em Curitiba se dá, como perceber o que são, como são, e de que cores podem vir a tomar se aqui só o verde, o cinza e o azul do céu!? É... Será difícil entender, mas a beleza de suas palavras, ah essas... essas, sim, poderei guardar.

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HELENA ARMOND: Belíssima a sua forma FEITOSA forma de dizer! Viagem- entre- dentro - com-através-do cheiro-do tatomadeiras-verdes-leves pesadasmaduras... eternizadas na sua fala e nos traços e cortes de Valdir Rocha. TEM em sua página todo o registro da força que TÊM! Cumprimentos. Helena Armond

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ANGEL CABEZA: Acabei de receber sua versão. E fui ler os comentários dos leitores. E vi que o leitor Fernando Henrique [ainda] não conhece quase nada do Nordeste..., que é o meu universo. Lendo o texto de Soares, vejo-me em palavras, sentidos, aquele sentimento encalacrado que todo nordestino possui: a secura e o afago desta plagas difíceis. Conheci o poeta Soares Feitosa através do suplemento cultural de “A Tarde”, de Salvador. E percebi logo que era um poeta da mesma linhagem do nosso bardo de fôlego enorme: Gerardo de Mello Mourão. Foi ler e me identificar. O Nordeste de que provenho é ribeirinho. Bom Jesus da Lapa fica na margem esquerda do médio São Francisco, Oeste da Bahia, fartura e seca, sol abrasador e águas barrentas. Abraços, João Filho

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JOCA DA COSTA: Leituras… “Melhor que as entranhas das aves…”, que teus textos, soluços semânticos de gestos pantocráticos, quase escritos pictos sobre pedras ancestrais, já desencantam o mundo por si! Bela, tua escrita em síncopes entre sístoles e diástoles, Feitosa!

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MANTOVANNI COLARES: Soares Feitosa mais uma vez nos surpreende, com sua cadência lírica, que beira ao delírio febril, em suas luzes literárias que projetam sensações diante do enigmático quadro “Fui Eu”, de Valdir Rocha. Lendo o texto de Soares Feitosa nos damos conta da irresistível luminosidade do quadro, o ângulo perplexo dos sobrolhos que emolduram o sol-dia em forma de semblante, e nos leva à simplória conclusão – porém tão inalcançável nessa nossa cegueira de sentimentos – de que a arte é a propulsora das sensações, o estímulo a todos os sentidos: não nos enganemos! A arte visual é também olfativa, auditiva, gustativa e, principalmente, tátil. “Enxergarias sem o tacto?”, esse o enigma de Soares Feitosa, e para que não nos deixemos devorar pela esfinge que sempre nos impõe o “decifra-me ou devoro-te”, revisitemos a beleza do quadro, sem a pretensão de enxergá-lo, mas de apalpá-lo em sua tridimensionalidade emotiva. Nesse instante, nos damos conta da magia do pensamento de Fernando Pessoa, para quem tudo no universo um dia findará, menos a arte, pois esta será eterna. Decifremos o enigma. Sem o tato, nunca enxergaríamos, em tempo algum ouviríamos, jamais perceberíamos os odores e em nenhum tempo notaríamos o sabor. A arte é a junção dos sentidos, ainda que ela se expresse somente através de um deles, e é daí que surge o desejo de prolongamento quando nos deparamos com arte, tal qual a sensação dos cheiros e da água morna a que se referiu com maestria Soares Feitosa. Mantovanni Colares

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MARILIA GONÇALVES: Vou conhecer todos os termos brasileiros que utiliza, mas com o tempo isso vai ter solução, ireiaprendendo, que assim é vida no entanto um nome me despertou a atenção, que sei de ser de um fruto que no entanto desconheço: jatobá. Pois meu caro Soares, daqui lhe lanço desafio de um texto que mo descreva em sabor, perfume, textura, tacto, visão já você foi dizendo, isto se tiver disponibilidade e paciência, mas como aqui é o que pode chegar do fruto teria muito gosto em saborear. Grande abraço Marilia

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MARINA LEITÃO: O poeta e o pintor. Juntos podem dar outro significado à vida... tornando-a não um fardo, mas um prazer! Lindo, lindo, adorei. Marina

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RICARDO ALFAYA: Caro Soares. Um projeto muito interessante, 41 poetas escrevendo a respeito. Sua visão é notavel mente original, conseguindo pontilhar de lirismo, numa boa, a máscara-carranca, cujo título “Fui eu” a torna evocação mortuária, plena de um expressionismo barroco-contemporâneo. A idEia de recortá-la no ritmo do texto foi ótima, deu ao trabalho uma dimensão de fato poética. Além disso, ocorreu ainda um enriquecimento das possibilidades de leitura, em virtude do deslocamento do foco da análise da forma do objeto para o material com que foi realizado, permitindo-nos uma nova leitura. Gostei do conjunto. Vale notar que é interessante demais esse título “Fui eu”. O objeto artístico, afinal, diz do seu autor, mesmo quando este se encontra ausente. O objeto “representa” o autor. Nesse ponto, criador e criatura se confundem. Por outro lado, ao mesmo tempo, o objeto em si parece negar aquilo que afirma, posto que sua excessiva rigidez de máscara mortuária na verdade não sugere tanto aquilo que o seu criador tenha sido, mas sim no que se transformou, ou melhor, poderia ter vindo a transformarse, uma vez que ele realizou o trabalho enquanto vivo. Em verdade provavelmente aquele objeto nunca “foi ele”, embora, paradoxalmente, pela razão primeira apontada, de fato o tenha sido. Em última análise, na verdade o objeto serve de metáfora a todo o objeto artístico existente, uma vez que cada um tem a capacidade ambígua de, a um só tempo, presentificar o autor, ao mesmo tempo em que, contraditoriamente, frisa a sua ausência. Abcs, Ricardo Alfaya

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RITA BRENNAND: Deu água na boca, rio, choro de gostoso. Até onde você me leva? Inda bem nem chego, você já me sangra. 1 visão: um rosto? Essa cara? Esse ovo – só gema exposta – amarelo shocking. Por enquanto, a gema derramada, pinta de luz a borboleta amarela. Em cada asa, um pingo de pupila. MÁSCARA! Você esquarteja a cara, e cada olho é gamela das grandes. Na cozinha, Bastiana guardava, nas de madeira maciça. Um dedo de água da cacimba clara cobria a brancura do polvilho, a goma de fazer tapioca. Partido ao meio o ovo, o ouro escorre e brilha. Brilho de luz da pupila, bem no centro, de cada asa da borboleta dourada. Partiu-se em duas a máscara, no carnaval de Olinda... 1+1 visão: de barro amassado, ao ponto, sugerir a forma, sonhar um rosto. Sentir a multiplicidade de rostos. Multidão. Impregnar-se. Destacar um rosto, escorrer das mãos a imagem, os olhos. Só olhos, vorazes. Buracos negros, a absorver o universo. Vontade de buscar a memória dessa máscara. A praia de Boa Viagem, as gitiranas, cambada de meninos. Cuidado com as caravelas — boiando como flor rosa... traiçoeira. Lá vem ela linda com seus fiapos de fogo. Francisco, estou borbulhando, cheiros, sons, gargalhadas, só de pensar que tenho um baú cheio de vida. Beijo, Rita [E no engenho? E no curral? E a porteira? E as tanajuras? Ah!, Francisco

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