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Herbert Draper (British, 1864-1920), A water baby

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), L'Innocence

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Blake (British, 1757-1827), The Ancient of Days

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

José Saramago, Nobel

 

 

 

 

 

Roberto Pontes


 

Quando o verbo se encarna

 


por Moacyr Félix

 

 

A atual poesia cearense é importante, muito importante, pela contribuição que traz à nossa mais válida literatura, aquela que se quer e se faz contra esses aparentemente desvairados cultos da irracionalidade, pregados pelos que se dizem "rebeldes sem causa", e que, por isso mesmo, servem apenas de vaso para o modismo das "vanguardas" conservadoramente aplaudidas pelo poder, por interesses e medos da classe dominante.

A atual poesia cearense, no seu aspecto mais significativo,Moacyr Félix deixa evidente que vê a literatura como a arte da palavra posta filosoficamente – ou seja, sem simplificações a aleijar as móveis espessuras do real – a serviço das idéias e dos sentimentos que se realizam nas lutas contra as alienações que dolorosamente deformam os sentidos da existência humana. É uma poesia de pé, não há dúvida, uma poesia contra o que oprime e a favor do que liberta, uma poesia dos que sentem na pele dos seus corpos e das suas calçadas o baque das horas sujas e quebradas pela miséria e pela ignorância.

As matrizes da divulgação literária no Rio e em São Paulo, sobretudo, e em outras importantes cidades do Sul e do Centro do nosso país, cercam com uma pesada cortina de silêncio os muitos livros desses poetas editados em Fortaleza.

Para ser reconhecido ou lido nacionalmente, tem-se que ir, pelo menos, ao Rio ou a São Paulo, e ali buscar relacionar-se com os "donos do poder cultural", ou, pelo menos, com os seus parentes e subaltaernos, freqüentar suas casas, levar cartões de visitas sob os olhos das secretárias, alisar com o traseiro as poltronas das editoras, fazer reverências nas redações, encher a todo momento a boca de elogios aos chamados "vencedores da vida", etc., etc. E agora – Deus meu! – é a hora de lembrar o quanto vem sendo badalado, no Rio e em São Paulo, aquele amontoado de ignorância e de imposturas que fez Carlos Drummond de Andrade morrer denunciando o alastramento: da poluição cultural, que consiste na divulgação estonteante de valores intelectuais e artísticos da pior qualidade, absorvidos com avidez por consumidores despreparados e alienados da realidade brasileira.

Por mais que para a imprensa e os escritores daqui fossem enviados, que escritor ou jornal deu cobertura a iniciativas como, por exemplo, a de imprimir e lançar Nação Cariry, uma revista de qualidades bem mais altas do que as babaquices das revistecas e jornalecos em que aqui bailam reunidas a mediocridade e a leviandade?! E se voltarmos atrás, o que dizer da nenhuma esquálida, quando não envenenada, repercussão de movimentos importantes da poesia que foram Clã, na década de 40, o Sin na de 60, O Saco, na de 70?! E isso não é por acaso: o Nordeste – sofrido e ferido sob um regime econômico que já fez por merecer a alcunha de "capitalismo selvagem" – se encontra em autores como os dessa poesia de rebeldes com causa; e se à sua gente fosse dado o mínimo poder de comprar e ler os seus livros, o grito do colonizado se levantaria contra o colonizador.

E é nesse grito, portanto, que a dor mais funda do povo brasileiro, como um todo, encontra o seu verdadeiro eco, aquele cuja história é a do ser contrário aos sons cosmopolitas com que somos vendidos às matrizes do capitalismo financeiro internacional. Matrizes que são as mesmas que dão corda e limite às matrizes da orientação fundamental dos nossos mais potentes meios de comunicação.

E aqui fico pensando em alguns dos mais significativos poetas vivos que hoje o Ceará nos oferece, cada um senhor das técnicas do verso com que vão abrindo – ora com sucesso, ora com fracasso – as muitas janelas da vida que se acha e que se perde no exterior interiorizado do ser humano.

Sem esquecer o relevo dos mortos como Jáder de Carvalho e Aluízio Medeiros, ou o já celebrado em vida Gerardo de Melo Mourão, vale citar, entre os mais velhos, Francisco Carvalho, Alcides Pinto, Arthur Eduardo Benevides e Caetano Ximenes Aragão; e entre os mais moços, além de Luciano Maia e Rosemberg Cariry, vale destacar também Oswald Barroso, Adriano Espínola, Airton Monte, Pedro Lyra, Carlos Augusto Viana, Rogaciano Leite Filho e o digno de ser muito estudado popular poeta Patativa do Assaré. E entre esses, e com o devido destaque, é de incluir-se o nome do autor deste Verbo Encarnado.

Desde as leituras de Contracanto, Lições de Espaço e Memória Corporal, ou seja, há muitos anos, conheci e me fiz amigo pessoal de Roberto Pontes, essa musical figura humana que sabe se fazer tão parte das ruas da cidade em que se orquestra. Da sua ternura guevarina, como indivíduo e poeta, é que ele fez a sombra e o vazio de que também são feitos os atos da vida dos homens. Porque em 1970 ela já escrevia em "Raízes", um poema publicado no número 5 de O Saco, que:


As raízes explicam sempre as folhas
adidas aos ramos projetados
e nelas a essência bruxuleia.
Da sua duração subterrânea
vem o vago e o complexo das plantas
onde apanho o real pelos cabelos.

 

E assim ele caminha desde os becos escuros ou as praias esverdeadas pelas ondas que levam os perfis da sua Fortaleza até o jogo da luz e da treva nos fatos e nas figuras da nossa história contemporânea que mais o tocaram. O mundo, o nosso mundo e este país dentro dele – esse o barco dos seus pensamentos; o povo, todos os povos, e a singularidade do ser individual neles imerso, esses os tripulantes do seu barco. Aqui o verbo se encarna na dança linotípica das escrituras de significados e significantes; e é uma recusa de todas as ditaduras que levam ao sectarismo e ao dogmatismo, a tudo que prende numa conceitual camisa-de-força os inconceituáveis e quase infinitos tons pesados no olho das velocidades em que giram, se acendendo e se apagando, as contradições de cada ser humano. Aqui, neste livro, o chão de todo verdadeiro poeta, o chão em que cada poeta escolhe a sua singularíssima viagem, o chão em que Roberto Pontes realiza os melhores poemas deste livro. E aqui pinço, como exemplificação, o poema dedicado a Tatá, a negra retinta que foi mãe dos princípios do poeta, a que, no dia da notícia da morte de Stalin, deu-lhe o que foi a primeira lição de liberdade.


Eu tinha nove anos e sorria
apenas nove anos e sonhava.

 

Tudo formando a descrição do momento do quanto aprendera, desde então, que a existência humana é maior do que qualquer esquematismo político:


As flores transpiravam mil segredos
elas eram brancas, roxas, e teimavam.

 

Aqui vemos o que aparecerá várias vezes neste livro: o fato mais individual a servir de eixo para a definição de fatos da grande história dos homens, o próximo e o singular mostrando seu rosto do distante e do plural.

E por isso – ora aplaudindo e abraçamdo, ora condenado e vergastando – o poeta vai costurando, em torno da sua noção de liberdade, a evocação de nomes de tiranias e tiranos – como Stalin, Salazar, e o golpe militar em 64 – com os nomes de Neruda, Ho Chi Minh, Frei Tito, José Genoíno, Luther King e outros.

Roberto Pontes está convencido de que a fala insubmissa do poeta não deve ser concebida "apenas como resitência" e sim "muito mais como incitação das consciências". E a partir dessas idéias estrutura neste livro uma verdadeira lição do que deve ser verdadeiramente uma poética: lutando para não se aprisionar nos dogmatismos e sectarismos contrários à complexidade da existência, aberto aos infinitos que ainda não sabemos, o poeta colhe a poesia no que vê e sente como o não-ser do que foi ou que não pôde ser sob os golpes do destino e da história; e em nome disso faz da Liberdade a porta e o caminho e o horizonte para o verbo com que intenta dar fala ao ser que nele move idéias e sentimentos:


A noite será feia
enquanto houver uma cadeia.

 

O poeta não abre exceções, não as admite; a liberdade é indivisível e para todos, ou não é liberdade. Ela é o fundamento de todos os atos do ser humano a se construir no meio das coisas:


E ao não te sobrar mais nada
pressentindo ter-se ido
a LIBERDADE
arranca a primeira pedra da calçada
e luta
pela única razão que vale a pena.

 

Esses pensamentos centrais sobre a liberdade, porém, só fazem sentido poético se completados pelas questionantes noções de infinitude, morte, mistério e necessidade de conscientização. Elas é que completam qualquer poética autenticamente voltada para servir ao socialismo, distanciando-se assim da farsa desses escribas em verso que se dizem "poetas engajados", mas que, por ignorância e carreirismo, descambam para um panfletarismo que falseia a realidade, e que, portanto, mente, e que, por mentir, é também politicamente um equívoco e um erro, pois o poeta sabe que:


O poema há de levar
a direção pensada e fria
da consciência
dos que não têm dias
nem mar, nem sol, mas má ração.


Mas mergulhar no insondável nunca é demais:


Cai do queixo a interrogação
tatuada nos rostos de abismo.

 

Rosto de abismo: inútil olhar a superfície apenas, as aparências da vida. Há que mergulhar – e a poesia e o amor ensinam isso – até sentirmos a profundidade das raízes na história de cada ato ou omissão do homem.

E é também com profunda beleza estética que ele prossegue:


Olha como se amam as borboletas
que fiam corpos vivos no mistério
e não dizem versos
porque fazem vôos.

 

Subentendida, a compreensão de que os versos nascem do não voou, embora devesse ser a asa bonita do que eleva o ser humano. Ética e estética não se separam: eis o ensinamento.

Eu poderia alongar este texto com a citação de vários outros fragmentos de uma poesia bela, em muitos momentos, porque feita com a fidelidade à arte que é a encarnação da palavra como corpo elaborado de autenticidade no sentir que não é conceituável e é, no entanto, a própria respiração dos sonhos em que se move o melhor do nosso estar-no-mundo como formas de amor e da liberdade.

Deixo aos leitores, porém, o encantamento desse trabalho.


MOACYR FÉLIX é filósofo, advogado, e foi editor das revistas Civilização Brasileira; Paz e Terra; e Encontros com a Civilização Brasileira. Poeta, integra a Geração de 45. É autor de Cubo de Trevas (1948), Lenda eAreia (1950), Itinerário de uma Tarde (1953), Pão e Vinho (1959), Canto para as Transformações do Homem (1964), Um Poeta na Cidade e no Tempo (1966), Canção do Exílio Aqui (1977), Neste Lençol (1977), Invenção de Crença e Descrença (1978), Em Nome da Vida (1981). Atualmente é editor-adjunto da revista Poesia Sempre (RJ).

 

Leia obra poética de Moacyr Félix

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

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Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Albrecht Dürer, Mãos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A menina afegã, de Steve McCurry

 

 

 

 

 

Roberto Pontes


 

Verbo encarnado, a lição da liberdade

 

por Angela Gutiérrez

 

 

O próprio poeta Roberto Pontes lembra, em "Nota posterior" a seus poemas de Verbo Encarnado, que "encarnado é sinônimo de vermelho, havendo nas festas populares acirradas disputas entre os partidos azul e encarnado". Aceitando o mote, ressalto que, além da acepção bíblica de "verbo que se fez carne", junta-se à significação do título do livro de Roberto, a idéia da cor vermelha que, no imaginário ocidental, é a cor da paixão, reiterada, no encarnado, pela etimologia ligada à carne. A acepção de encarnado, como aquilo que é representado, ou penetrado por um espírito, o brasileirismo que considera comoAngela Gutierrez encarnado aquilo que assedia, importuna, o simbolismo do encarnado como cor dos partidos de esquerda, tudo isso converge para o título da coletânea de poemas que, hoje, chega ao público cearense. O verbo poético de Roberto é verbo vermelho na palavra-luta; é verbo de carne, na palavra-dor e na palavra-paixão, é verbo que nos assedia, ao exigir, em diferentes modulações, a lição da liberdade.

A mesma "Nota posterior", além de informar sobre datas, nomes e fatos ligados à gestação dos poemas, sendo, portanto, um adendo genético, funciona, também, como uma poética do autor. Nela, Roberto afirma que a poesia não é "exercício para narcisos", mas "fala insubmisssa" que age como "resistência" e como "incitação das consciências". Quem viveu a adolescência e a juventude durante "os anos de chumbo" – entre 64 e 84 – e recorda a sensação do medo, da revolta, da impotência da boca amordaçada que nos afligia nessa "página infeliz de nossa história" (na bela expressão de Chico Buarque em seu samba Vai passar), entende que os poemas de Roberto, escritos entre 64 e 83, são intérpretes dessa "memória corporal" e nos fazem não só recordá-la como reencarná-la.

Em Verbo Encarnado, o poeta nega-se o direito de contemplar a própria imagem; nunca é um só, é sempre um entre muitos: é cidadão do mundo em "Soul por Luther King", "Lembrança de Neruda", "O Pássaro Amarelo" (poema dedicado a Ho Chi Minh); cidadão do Nordeste e de Fortaleza, em "Composição sobre a Peixeira", "Os Nossos Meninos Azuis", "Chula da Rendeira", "Poema para Fortaleza" e tantos mais.

O poeta, naqueles tempos de revolta, traveste seu verbo em arma, como em "A Bala do Poema":


A palavra há de ser
a consistência da bala

.....................................

A palavra há de trazer
o peso do chumbo
a quentura
a explosão do peito
enquanto o amor não for reconhecido.

 

Ou, como em "Dedicatória":


Pixe muros
faça hinos
dê combate à ditadura
enforque em cordas de aço
toda forma de opressão.

 

Ou, ainda, como em "Definição":


trago um chicote
inquieto na mão

 

Mas se, em "Ultrapassagem", o poeta canta o momento feliz da fartura contra a guerra, da liberdade contra o medo, do mundo novo sem miséria, esse é o tempo do futuro:


quando o homem se souber
indigno do que até hoje cometeu

 

Apesar da delicadeza, quase diafaneidade, do poema "Os Ausentes", dedicado a Frei Tito –


Dos ausentes fica sempre um sorriso
como as pinturas recheias
de surpresa, reencontro e irreal.

 

– e que abre o livro, na versão em francês, o tom dominante de Verbo Encarnado é o que explode nas imagens audaciosas do ciclo apocalíptico, em "Antevéspera", "Véspera" e "O Dia":


e o ágape servido será dor e veneno.


No dia
e após o dia
a vida irá sumindo lentamente
e cheios de medalhas
os cus dos generais apodrecendo.

 

Essas são as últimas palavras do último poema do livro e, apesar de vertidas no futuro, são as que impregnam a nossa memória do passado que o livro do Roberto nos traz, dolorosamente, ao presente.


ANGELA GUTIÉRREZ é Professora Adjunta de Literatura Brasileira no Curso de Letras da Universidade Federal do Ceará. Doutora em Literatura Comparada pela UFMG. Pertence ao quadro de especialistas da Associação Brasileira de Literatura Comparada – ABRALIC. Autora de O mundo de Flora (romance) e Vargas Llosa e o Romance Possível da América Latina (ensaio).
 

 

 

Ruy Espinheira Filho

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Pedro Nunes Filho