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            Roberto Pontes 
   Quando o 
            verbo se 
            encarna
   
            
     
            A atual poesia cearense é importante, muito importante, pela 
            contribuição que traz à nossa mais válida literatura, aquela que se 
            quer e se faz contra esses aparentemente desvairados cultos da 
            irracionalidade, pregados pelos que se dizem "rebeldes sem causa", e 
            que, por isso mesmo, servem apenas de vaso para o modismo das 
            "vanguardas" conservadoramente aplaudidas pelo poder, por interesses 
            e medos da classe dominante. A atual poesia cearense, no seu aspecto mais significativo, deixa 
            evidente que vê a literatura como a arte da palavra posta 
            filosoficamente – ou seja, sem simplificações a aleijar as móveis 
            espessuras do real – a serviço das idéias e dos sentimentos que se 
            realizam nas lutas contra as alienações que dolorosamente deformam 
            os sentidos da existência humana. É uma poesia de pé, não há dúvida, 
            uma poesia contra o que oprime e a favor do que liberta, uma poesia 
            dos que sentem na pele dos seus corpos e das suas calçadas o baque 
            das horas sujas e quebradas pela miséria e pela ignorância. As matrizes da divulgação literária no Rio e em São Paulo, 
            sobretudo, e em outras importantes cidades do Sul e do Centro do 
            nosso país, cercam com uma pesada cortina de silêncio os muitos 
            livros desses poetas editados em Fortaleza. Para ser reconhecido ou lido nacionalmente, tem-se que ir, pelo 
            menos, ao Rio ou a São Paulo, e ali buscar relacionar-se com os 
            "donos do poder cultural", ou, pelo menos, com os seus parentes e
            subaltaernos, freqüentar suas casas, levar cartões de visitas sob os 
            olhos das secretárias, alisar com o traseiro as poltronas das 
            editoras, fazer reverências nas redações, encher a todo momento a 
            boca de elogios aos chamados "vencedores da vida", etc., etc. E 
            agora – Deus meu! – é a hora de lembrar o quanto vem sendo badalado, 
            no Rio e em São Paulo, aquele amontoado de ignorância e de 
            imposturas que fez Carlos Drummond de Andrade morrer denunciando o 
            alastramento: da poluição cultural, que consiste na divulgação 
            estonteante de valores intelectuais e artísticos da pior qualidade, 
            absorvidos com avidez por consumidores despreparados e alienados da 
            realidade brasileira. Por mais que para a imprensa e os escritores daqui fossem enviados, 
            que escritor ou jornal deu cobertura a iniciativas como, por 
            exemplo, a de imprimir e lançar Nação Cariry, uma revista de 
            qualidades bem mais altas do que as babaquices das revistecas e 
            jornalecos em que aqui bailam reunidas a mediocridade e a 
            leviandade?! E se voltarmos atrás, o que dizer da nenhuma esquálida, 
            quando não envenenada, repercussão de movimentos importantes da 
            poesia que foram Clã, na década de 40, o Sin na de 60, O Saco, na de 
            70?! E isso não é por acaso: o Nordeste – sofrido e ferido sob um 
            regime econômico que já fez por merecer a alcunha de "capitalismo 
            selvagem" – se encontra em autores como os dessa poesia de rebeldes 
            com causa; e se à sua gente fosse dado o mínimo poder de comprar e 
            ler os seus livros, o grito do colonizado se levantaria contra o 
            colonizador. E é nesse grito, portanto, que a dor mais funda do povo brasileiro, 
            como um todo, encontra o seu verdadeiro eco, aquele cuja história é 
            a do ser contrário aos sons cosmopolitas com que somos vendidos às 
            matrizes do capitalismo financeiro internacional. Matrizes que são 
            as mesmas que dão corda e limite às matrizes da orientação 
            fundamental dos nossos mais potentes meios de comunicação. E aqui fico pensando em alguns dos mais significativos poetas vivos 
            que hoje o Ceará nos oferece, cada um senhor das técnicas do verso 
            com que vão abrindo – ora com sucesso, ora com fracasso – as muitas 
            janelas da vida que se acha e que se perde no exterior interiorizado 
            do ser humano. Sem esquecer o relevo dos mortos como Jáder de Carvalho e Aluízio 
            Medeiros, ou o já celebrado em vida Gerardo de Melo Mourão, vale 
            citar, entre os mais velhos, Francisco Carvalho, Alcides Pinto, 
            Arthur Eduardo Benevides e Caetano Ximenes Aragão; e entre os mais 
            moços, além de Luciano Maia e Rosemberg Cariry, vale destacar também 
            Oswald Barroso, Adriano Espínola, Airton Monte, Pedro Lyra, Carlos 
            Augusto Viana, Rogaciano Leite Filho e o digno de ser muito estudado 
            popular poeta Patativa do Assaré. E entre esses, e com o devido 
            destaque, é de incluir-se o nome do autor deste Verbo Encarnado. Desde as leituras de Contracanto, Lições de Espaço e Memória 
            Corporal, ou seja, há muitos anos, conheci e me fiz amigo pessoal de 
            Roberto Pontes, essa musical figura humana que sabe se fazer tão 
            parte das ruas da cidade em que se orquestra. Da sua ternura 
            guevarina, como indivíduo e poeta, é que ele fez a sombra e o vazio 
            de que também são feitos os atos da vida dos homens. Porque em 1970 
            ela já escrevia em "Raízes", um poema publicado no número 5 de O 
            Saco, que:
 
 As raízes explicam sempre as folhas
 adidas aos ramos projetados
 e nelas a essência bruxuleia.
 Da sua duração subterrânea
 vem o vago e o complexo das plantas
 onde apanho o real pelos cabelos.
 
 
 
              
            E assim ele caminha desde os becos escuros ou as praias esverdeadas 
            pelas ondas que levam os perfis da sua Fortaleza até o jogo da luz e 
            da treva nos fatos e nas figuras da nossa história contemporânea que 
            mais o tocaram. O mundo, o nosso mundo e este país dentro dele – 
            esse o barco dos seus pensamentos; o povo, todos os povos, e a 
            singularidade do ser individual neles imerso, esses os tripulantes 
            do seu barco. Aqui o verbo se encarna na dança linotípica das 
            escrituras de significados e significantes; e é uma recusa de todas 
            as ditaduras que levam ao sectarismo e ao dogmatismo, a tudo que 
            prende numa conceitual camisa-de-força os inconceituáveis e quase 
            infinitos tons pesados no olho das velocidades em que giram, se 
            acendendo e se apagando, as contradições de cada ser humano. Aqui, 
            neste livro, o chão de todo verdadeiro poeta, o chão em que cada 
            poeta escolhe a sua singularíssima viagem, o chão em que Roberto 
            Pontes realiza os melhores poemas deste livro. E aqui pinço, como 
            exemplificação, o poema dedicado a Tatá, a negra retinta que foi mãe 
            dos princípios do poeta, a que, no dia da notícia da morte de 
            Stalin, deu-lhe o que foi a primeira lição de liberdade.
 
 Eu tinha nove anos e sorria
 apenas nove anos e sonhava.
 
 
 
              
            Tudo formando a descrição do momento do quanto aprendera, desde 
            então, que a existência humana é maior do que qualquer esquematismo 
            político:
 
 As flores transpiravam mil segredos
 elas eram brancas, roxas, e teimavam.
 
 
 
              
            Aqui vemos o que aparecerá várias vezes neste livro: o fato mais 
            individual a servir de eixo para a definição de fatos da grande 
            história dos homens, o próximo e o singular mostrando seu rosto do 
            distante e do plural. E por
            isso – ora aplaudindo e abraçamdo, ora condenado e 
            vergastando – o poeta vai costurando, em torno da sua noção de 
            liberdade, a evocação de nomes de tiranias e tiranos – como Stalin, 
            Salazar, e o golpe militar em 64 – com os nomes de Neruda, Ho Chi 
            Minh, Frei Tito, José Genoíno, Luther King e outros. Roberto Pontes está convencido de que a fala insubmissa do poeta não 
            deve ser concebida "apenas como resitência" e sim "muito mais como 
            incitação das consciências". E a partir dessas idéias estrutura 
            neste livro uma verdadeira lição do que deve ser verdadeiramente uma 
            poética: lutando para não se aprisionar nos dogmatismos e 
            sectarismos contrários à complexidade da existência, aberto aos 
            infinitos que ainda não sabemos, o poeta colhe a poesia no que vê e 
            sente como o não-ser do que foi ou que não pôde ser sob os golpes do 
            destino e da história; e em nome disso faz da Liberdade a porta e o 
            caminho e o horizonte para o verbo com que intenta dar fala ao ser 
            que nele move idéias e sentimentos:
 
 A noite será feia
 enquanto houver uma cadeia.
 
 
 
              
            O poeta não abre exceções, não as admite; a liberdade é indivisível 
            e para todos, ou não é liberdade. Ela é o fundamento de todos os 
            atos do ser humano a se construir no meio das coisas:
 
 E ao não te sobrar mais nada
 pressentindo ter-se ido
 a LIBERDADE
 arranca a primeira pedra da calçada
 e luta
 pela única razão que vale a pena.
 
 
 
              
            Esses pensamentos centrais sobre a liberdade, porém, só fazem 
            sentido poético se completados pelas questionantes noções de 
            infinitude, morte, mistério e necessidade de conscientização. Elas é 
            que completam qualquer poética autenticamente voltada para servir ao 
            socialismo, distanciando-se assim da farsa desses escribas em verso 
            que se dizem "poetas engajados", mas que, por ignorância e 
            carreirismo, descambam para um panfletarismo que falseia a 
            realidade, e que, portanto, mente, e que, por mentir, é também 
            politicamente um equívoco e um erro, pois o poeta sabe que:
 
 O poema há de levar
 a direção pensada e fria
 da consciência
 dos que não têm dias
 nem mar, nem sol, mas má ração.
 
 
 Mas mergulhar no insondável nunca é demais:
 
 
 Cai do queixo a interrogação
 tatuada nos rostos de abismo.
 
 
 
              
            Rosto de abismo: inútil olhar a superfície apenas, as aparências da 
            vida. Há que mergulhar – e a poesia e o amor ensinam isso – até 
            sentirmos a profundidade das raízes na história de cada ato ou 
            omissão do homem. E é também com profunda beleza estética que ele prossegue:
 
 Olha como se amam as borboletas
 que fiam corpos vivos no mistério
 e não dizem versos
 porque fazem vôos.
 
 
 
              
            Subentendida, a compreensão de que os versos nascem do não voou, 
            embora devesse ser a asa bonita do que eleva o ser humano. Ética e 
            estética não se separam: eis o ensinamento. Eu poderia alongar este texto com a citação de vários outros 
            fragmentos de uma poesia bela, em muitos momentos, porque feita com 
            a fidelidade à arte que é a encarnação da palavra como corpo 
            elaborado de autenticidade no sentir que não é conceituável e é, no 
            entanto, a própria respiração dos sonhos em que se move o melhor do 
            nosso estar-no-mundo como formas de amor e da liberdade. Deixo aos leitores, porém, o encantamento desse trabalho.
 
 MOACYR FÉLIX é filósofo, advogado, e foi editor das revistas 
            Civilização Brasileira; Paz e Terra; e Encontros com a Civilização 
            Brasileira. Poeta, integra a Geração de 45. É autor de Cubo de 
            Trevas (1948), Lenda eAreia (1950), Itinerário de uma Tarde (1953), 
            Pão e Vinho (1959), Canto para as Transformações do Homem (1964), Um 
            Poeta na Cidade e no Tempo (1966), Canção do Exílio Aqui (1977), 
            Neste Lençol (1977), Invenção de Crença e Descrença (1978), Em Nome 
            da Vida (1981). Atualmente é editor-adjunto da revista Poesia Sempre 
            (RJ).
 
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            obra poética de Moacyr Félix |