Roberto Pontes
Sutil tecido de
sal e concha
Acabo de ler o livro de
Robeto Pontes, e a associação que de pronto me ocorre remete-me ao
conceito que a Psicanálise tem formulado sobre o texto literário:
"escrever é evitar o assassinato do desejo". E se o homem é este ser
desejante, espécie de Prometeu acorrentado, de Sísifo que
continuamente se debate com a perda de si e do outro, esta
associação me ocorre em relação ao texto de Roberto porque ele, de
modo explícito, se realiza em consonância com a perspectiva
estético-histórica, o amor cortês, no qual o lirismo é tematizado
como manifestação do desejo nas suas múltiplas formas: seja na do
desejo de escrever sobre o desejo, seja no de viver o desejo como
escrita que o perpetua e resgata. Aliás, estas duas perspectivas se
interrelacionam e alternam ao longo do livro, num marcante traço
erótico. E não seria excessivo afirmar que a personagem central
deste texto "desejante" é Eros, captado em todos os seus poros e
latências.
Cada poema de Memória
Corporal, livro em que até no título se tematiza a palavra se
fazendo carne, reafirma incessantemente o ato de amor, através de
expressivas e reiteradas metáforas, nas quais a poesia e o ato de
escrever se confundem com o ato de fazer amor, num gesto múltiplo de
que participam: a natureza, o amante e o objeto amado.
Surpreende-nos a
riqueza e simbiose de elementos que a natureza captada pelo poeta
congrega, principalmente marinhos: "Nessas águas de sal marinho/ há
cogumelos, enguias, hipocampos/ nenúfares, ventosas e anêmonas" ("Há
Solstício Tropical"). A natureza ora se manifesta participante, à
maneira das canções de amigo, em que as personagens e o amor aderem
ao cenário, chegando a ganhar suas espécies o nome da paisagem em
que decorre tanto a espera quanto o encontro ou a realização do
amor. Ora se torna confidente, à maneira dos românticos, em que a
ambiência tende ao lunar, ao silêncio, ao melancólico; ora, ainda,
se mostra contundente, ao remeter, de modo inesperado, a correlações
semânticas que instalam uma carga corrosiva, através das quais
marca-se uma ruptura com o clima idílico predominante na obra: "Nos
teus colares de coral rochoso/ os sátiros fecundam salamandras/ e
entre moluscos de anemia e cloro/ ejaculo gasolina incendiária."
("Há Solstício Tropical").
As personagens – tanto
o amante como seu objeto amado – são apresentadas com tal capacidade
de metamorfose que, a todo momento, a personagem masculina, como
"fauno" de inesgotável sensualidade, se transforma em objetos
fálicos, através dos quais se desloca o significante ( a "marca" do
desejo ) que percorre e constitui o verbo lírico: flechas, girassóis
de amianto, dedos de aço e lua, dedos de sol e ferro – são algumas
das "máscaras" poéticas desse Eros irrequieto que celebra o amor e
tem sabor de sal. E sua "ninfa" metamorfoseia-se em pétala, terra,
água e concha, no que o poeta retoma a imagem da flor-mulher, tão
cara aos líricos, e os mitos do elemento fecundável, quer seja a
terra a salgar, já que o amante é sal; quer seja a da concha do mar,
que ao sal também converge: "Tu me dirás que sou forte/ e tenho
sabor de sal/ (...) / Eu te direi que és lisa/ e polida como uma
concha" ("Este Nosso Encantamento").
E porque o texto se faz
porta-voz de Eros, o desejo a todo instante também se metamorfoseia
e desloca, transmudado em pássaro, gaivota, corda que vibra, corcel,
raio e punhal – ao se referir à amada, numa sugestão de
atividade/passividade, penetração/profundidade, na qual se expressa,
de modo icônico, um determinado conceito da sexualidade
masculina/feminina. Eis, então, que a mulher é apresentada, no
texto, como motivo de desejo, impulsionada pela latência e espera, e
o homem como o gesto que emite aquele que se apossa: "Passa por mim
a sensação da posse/ que me atormenta e dói como um segredo/ e vem
com os passos de animal ferido/ nas vísceras, nos nervos e no peito"
("Poema da Posse"); ou ainda: "e agora, ouve, / cantarei assim: /
lábios de maçã suave,/ mãos próprias e cabíveis nas minhas,/ eu sou
a fúria que desfecha golpes,/ eu sou aquele que conhece os prazeres"
("Faltando Leite, Faltando Pão").
Desde "Cinco Prelúdios"
até "Epitáfio", respectivamente o primeiro e o último poemas do
livro, os temas da fecundação e da cópula se anunciam e tomam a
forma da imagem de um sonho circular, no qual uma pétala é
engravidada pelo pingo morno que lhe afoga o ventre e se faz
"liberto, líquido, livre", ao acender-se a chama do amor pelos dedos
da amiga, que lampejam na noite fria. Se isto é o que se tematiza no
primeiro poema, que dá ensejo à abertura do ciclo da fecundação
amorosa, no último texto – discurso da memória que flui – há o
desdobramento final do ciclo que evolui ao longo do livro, e "Aqui
jaz o amor um dia dito". E, com resta morto o amor, cabe à palavra
poética resgatá-lo.
Este ciclo –
fecundação/paixão/morte/resgate – do amor justifica o título da
obra: Memória Corporal, além de explicitar o sentido que o poeta
atribui ao termo memória. Este é apresentado, no texto de Roberto
Pontes, como uma tentativa de se apreender, surpreender e suspender
o tempo. Memória como instância que torna possível ao homem
resgatar, do círculo inexorável e destrutivo de vida/morte, tanto o
sentimento quanto as coisas. Como se a poesia, fazendo-se na
cumplicidade com a memória, se tornasse uma "verdade indestrutível"
e perpetuasse, para além de Cronos, a viagem de Eros.
Uma viagem lírica, em
que a beleza do efeito rítmico-sonoro a todo momento nos relembra as
melhores realizações da poesia lírica, dos cancioneiros ao hoje. Uma
viagem de sensibilidade que nos penetra mansamente, à maneira do
amor, e outras vezes avidamente, à maneira da paixão.
Esta obra do poeta
cearense Roberto Pontes, que tece o amor no traço do homem e do
nome, se apresenta como uma das melhores realizações da poesia
lírica contemporânea. E, acredito e desejo, ocupará seu lugar.
LÚCIA HELENA é Mestre em Teoria Literária e Doutora
em Letras pela UFRJ. Professora de Literatura da Universidade
Federal Fluminense e de Teoria da Literatura na UFRJ. Professora
conferencista nas Universidades de Lisboa (Portugal), Pavia e
Bérgamo (Itália). Ensaísta e crítica literária tem colaborado com
publicações especializadas, entre as quais: revista Colóquio/Letras
(Portugal); Revista de Cultura Vozes Petróplis/RJ) e Revista Tempo
Brasileiro (RJ). É autora de A Cosmo-Agonia de Augusto dos Anjos
(Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro), Uma Literatura Antropofágica
(Rio de Janeiro/Brasília: Cátedra/INL, 1982) e Modernismo Brasileiro
e Vanguarda (São Paulo: Ática, 1996).
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