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Entardecer, foto de Marcus Prado

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Manoel de Barros

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Consummatum est Jerusalem

 

 

 

 

 

Roberto Pontes


 

Sutil tecido de sal e concha

 

por Lúcia Helena

 

 

Acabo de ler o livro de Robeto Pontes, e a associação que de pronto me ocorre remete-me ao conceito que a Psicanálise tem formulado sobre o texto literário: "escrever é evitar o assassinato do desejo". E se o homem é este ser desejante, espécie de Prometeu acorrentado, de Sísifo que continuamente se debate com a perda de si e do outro, esta associação me ocorre em relação ao texto de Roberto porque ele, de modo explícito, se realiza em consonância com a perspectiva estético-histórica, o amor cortês, no qual o lirismo é tematizado como manifestação do desejo nas suas múltiplas formas: seja na do desejo de escrever sobre o desejo, seja no de viver o desejo como escrita que o perpetua e resgata. Aliás, estas duas perspectivas se interrelacionam e alternam ao longo do livro, num marcante traço erótico. E não seria excessivo afirmar que a personagem central deste texto "desejante" é Eros, captado em todos os seus poros e latências.

Cada poema de Memória Corporal, livro em que até no título se tematiza a palavra se fazendo carne, reafirma incessantemente o ato de amor, através de expressivas e reiteradas metáforas, nas quais a poesia e o ato de escrever se confundem com o ato de fazer amor, num gesto múltiplo de que participam: a natureza, o amante e o objeto amado.

Surpreende-nos a riqueza e simbiose de elementos que a natureza captada pelo poeta congrega, principalmente marinhos: "Nessas águas de sal marinho/ há cogumelos, enguias, hipocampos/ nenúfares, ventosas e anêmonas" ("Há Solstício Tropical"). A natureza ora se manifesta participante, à maneira das canções de amigo, em que as personagens e o amor aderem ao cenário, chegando a ganhar suas espécies o nome da paisagem em que decorre tanto a espera quanto o encontro ou a realização do amor. Ora se torna confidente, à maneira dos românticos, em que a ambiência tende ao lunar, ao silêncio, ao melancólico; ora, ainda, se mostra contundente, ao remeter, de modo inesperado, a correlações semânticas que instalam uma carga corrosiva, através das quais marca-se uma ruptura com o clima idílico predominante na obra: "Nos teus colares de coral rochoso/ os sátiros fecundam salamandras/ e entre moluscos de anemia e cloro/ ejaculo gasolina incendiária." ("Há Solstício Tropical").

As personagens – tanto o amante como seu objeto amado – são apresentadas com tal capacidade de metamorfose que, a todo momento, a personagem masculina, como "fauno" de inesgotável sensualidade, se transforma em objetos fálicos, através dos quais se desloca o significante ( a "marca" do desejo ) que percorre e constitui o verbo lírico: flechas, girassóis de amianto, dedos de aço e lua, dedos de sol e ferro – são algumas das "máscaras" poéticas desse Eros irrequieto que celebra o amor e tem sabor de sal. E sua "ninfa" metamorfoseia-se em pétala, terra, água e concha, no que o poeta retoma a imagem da flor-mulher, tão cara aos líricos, e os mitos do elemento fecundável, quer seja a terra a salgar, já que o amante é sal; quer seja a da concha do mar, que ao sal também converge: "Tu me dirás que sou forte/ e tenho sabor de sal/ (...) / Eu te direi que és lisa/ e polida como uma concha" ("Este Nosso Encantamento").

E porque o texto se faz porta-voz de Eros, o desejo a todo instante também se metamorfoseia e desloca, transmudado em pássaro, gaivota, corda que vibra, corcel, raio e punhal – ao se referir à amada, numa sugestão de atividade/passividade, penetração/profundidade, na qual se expressa, de modo icônico, um determinado conceito da sexualidade masculina/feminina. Eis, então, que a mulher é apresentada, no texto, como motivo de desejo, impulsionada pela latência e espera, e o homem como o gesto que emite aquele que se apossa: "Passa por mim a sensação da posse/ que me atormenta e dói como um segredo/ e vem com os passos de animal ferido/ nas vísceras, nos nervos e no peito" ("Poema da Posse"); ou ainda: "e agora, ouve, / cantarei assim: / lábios de maçã suave,/ mãos próprias e cabíveis nas minhas,/ eu sou a fúria que desfecha golpes,/ eu sou aquele que conhece os prazeres" ("Faltando Leite, Faltando Pão").

Desde "Cinco Prelúdios" até "Epitáfio", respectivamente o primeiro e o último poemas do livro, os temas da fecundação e da cópula se anunciam e tomam a forma da imagem de um sonho circular, no qual uma pétala é engravidada pelo pingo morno que lhe afoga o ventre e se faz "liberto, líquido, livre", ao acender-se a chama do amor pelos dedos da amiga, que lampejam na noite fria. Se isto é o que se tematiza no primeiro poema, que dá ensejo à abertura do ciclo da fecundação amorosa, no último texto – discurso da memória que flui – há o desdobramento final do ciclo que evolui ao longo do livro, e "Aqui jaz o amor um dia dito". E, com resta morto o amor, cabe à palavra poética resgatá-lo.

Este ciclo – fecundação/paixão/morte/resgate – do amor justifica o título da obra: Memória Corporal, além de explicitar o sentido que o poeta atribui ao termo memória. Este é apresentado, no texto de Roberto Pontes, como uma tentativa de se apreender, surpreender e suspender o tempo. Memória como instância que torna possível ao homem resgatar, do círculo inexorável e destrutivo de vida/morte, tanto o sentimento quanto as coisas. Como se a poesia, fazendo-se na cumplicidade com a memória, se tornasse uma "verdade indestrutível" e perpetuasse, para além de Cronos, a viagem de Eros.

Uma viagem lírica, em que a beleza do efeito rítmico-sonoro a todo momento nos relembra as melhores realizações da poesia lírica, dos cancioneiros ao hoje. Uma viagem de sensibilidade que nos penetra mansamente, à maneira do amor, e outras vezes avidamente, à maneira da paixão.

Esta obra do poeta cearense Roberto Pontes, que tece o amor no traço do homem e do nome, se apresenta como uma das melhores realizações da poesia lírica contemporânea. E, acredito e desejo, ocupará seu lugar.


LÚCIA HELENA é Mestre em Teoria Literária e Doutora em Letras pela UFRJ. Professora de Literatura da Universidade Federal Fluminense e de Teoria da Literatura na UFRJ. Professora conferencista nas Universidades de Lisboa (Portugal), Pavia e Bérgamo (Itália). Ensaísta e crítica literária tem colaborado com publicações especializadas, entre as quais: revista Colóquio/Letras (Portugal); Revista de Cultura Vozes Petróplis/RJ) e Revista Tempo Brasileiro (RJ). É autora de A Cosmo-Agonia de Augusto dos Anjos (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro), Uma Literatura Antropofágica (Rio de Janeiro/Brasília: Cátedra/INL, 1982) e Modernismo Brasileiro e Vanguarda (São Paulo: Ática, 1996).
 

 

 

Ticiano, O amor sagrafo e o profano, detalhe

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Inocência, foto de Marcus Prado

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Bathsheba,

 

 

 

 

 

 

 

alphonsus Guimaranes Filho

 

Roberto Pontes


 

A verdade do corpo

 

por Carlos d’Alge

 

 

Os quarenta e cinco poemas que compõem esta Memória Corporal, de Roberto Pontes, foram elaborados ao longo do tempo e da experiência do poeta que, já em seu livro anterior, Lições de Espaço, nos dava uma medida do seu pensar e fazer poéticos.

Memória Corporal é uma reflexão amadurecida e vivenciada sobre o amor. A descoberta do corpo e a sua linguagem específica são o leit-motiv do texto poético.

A memória percorre os vários caminhos do corpo amado, do conhecimento e das primeiras descobertas, numa travessia que se quer calma, lenta e integral. Até o dar-se em plenitude há muito a percorrer. Cada sinal sugere um novo símbolo, cada toque um ato de recriação, à espera da libertação final.

Todavia não é somente o corpo e o ato do amor que constituem o cerne dos poemas. A libertação se faz pelo amor e pela participação num universo isento de medo, guerra e ódio. Um universo enamorado, como a ilha de Vênus, criada pela generosidade de Camões e ofertada aos rudes navegadores cansados de tanta desventura. Assim o prazer, a posse em contato com a natureza, traduzem uma visão humanista, comparada à saída do "Purgatório", na Divina Comédia de Dante, e ao ingresso no "Paraíso".

É preciso lembrar, pois, que o amor e o prazer são um compromisso do homem para com o seu semelhante. Impedi-lo é desumano. O homem só poderá se libertar pelo amor e com o amor: "Amamos,/ animais enternecidos (...)/ amamos e perdemos./ O meu primeiro verso foi: / amamos".

Na sua intensa e apaixonada travessia, o poeta coloca o verso implicitamente no presente, a fazer coro com Carlos Drummond de Andrade, que em "Amar-Amaro" já nos dissera: "que pode uma criatura senão/ entre criaturas, amar?"

Que libertação senão pelo amor? Que única verdade senão o corpo, total e absoluto, pleno e tátil? A nudez é um símbolo de liberdade. Valho-me de Harold Clurman que em artigo no Harper’s afirma: "numa época em que todos os valores antigos se tornam vazios, e tudo que era sagrado deixou de ser respeitado, o corpo é a única verdade irreversível. Não há segredos vergonhosos na nudez – Ela é um símbolo de liberdade".

É em face disso que em Memória Corporal, no poema "Bebei na Boca Indócil", Roberto Pontes vê que "Cai um mau sereno sobre o mundo"e conclama as virgens: "Colai em vossas faces versos puros. / Roçai o vosso peito sobre rosas./ Fundi os vossos ventres nas estrelas" para reconhecer a existência de cadeados de aço que, como prisões e bombas, impedem a sua libertação, pois "Amar sem medo é defender a paz. / Amar sem medo é inventar a vida, / rasgando o corpo/ no sexo do amigo".

Na descoberta do corpo sob entrega plena e total, a libertação se processa lentamente: "A cintura tão macia/ e a pálpebra fibrosa/ que senti romper-se um lírio novo".

A tristeza, habitante do homem, na solidão, desaparece com a descoberta do corpo amado; o poeta é o "imprevisto vestido de ternura", e hábil viajante vai percorrendo os caminhos da amada, e através das mais sensíveis comparações e metáforas constrói o seu universo de amor: "no negro asfalto do ventre/ um girassol de amianto/ se contorcendo na noite" (...) ou "Sonho como fui nos teus poros de tapete,/ nos braços sensuais, nas ancas cor de mate,/ no ventre cheio de surpresa e medo".

O paraíso na descoberta e posse? A utopia da felicidade num mundo de amor e paz, de flores e sorrisos? Memória Corporal é um canto de esperança, em que o poeta através da posse do corpo, como verdade total e absoluta, constrói também a sua verdade, despojada e magnânima.

A verdade do corpo, cantada por Camões no encontro de Vênus com Júpiter, no "Concílio dos Deuses" e na sua ilha namorada, realizada pelos artistas da Renascença, recriadores da beleza do mundo helênico, tem continuidade através da história literária.

Mal interpretada em diversos momentos, nivelada ao patológico pelos naturalistas, foi restaurada pela literatura moderna – lembremo-nos de D. H. Lawrence, Henry Miller, James Joyce, e por que não das Novas Cartas Portuguesas, de Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa e Maria Isabel Berreno?

Assim, Memória Corporal dá seguimento a essa verdade. São dos poemas mais belos e puros que tenho lido sobre o sentimento do amor, repito, única verdade, irrecusável, irresistível e irreversível.

Um canto geral de integração e de ternura, de paz e realização humanas.


CARLOS d’ALGE é professor titular do Departamento de Literatura da Universidade Federal do Cerá e professor-visitante em universidades da Alemanha, Estados Unidos e Portugal. Poeta, crítico e ensaísta. Autor de vários livros, dentre os quais: As Relações Brasileiras de Almeida Garrett (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1979); A Experiência Futurista e a Geração de "Orpheu" (Lisboa: ICALP/Ministério de Educação, 1989); Almeida Garrett (Rio de Janeiro: AGIR/Col. "Nossos Clássicos", 1996).


Leia obra poética de Carlos d'Alge
 

 

 

Fernando Py

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Aleilton Fonseca