Anna O. e Outras
Novelas, de Ricardo Lísias, reúne cinco
testemunhos pessoais com função de catarse
Creio que o escritor Ricardo Lísias esteja
comemorando ao reunir cinco novelas, duas
delas (Capuz e Dos Nervos, lançadas em 2001
e 2004), editadas em tiragens comerciais
limitadas. Com o título Anna O. e Outras
Novelas, a sensação deve ser compartilhada
pelo leitor. Relacionaria apenas dois senões
que parecem ter ficado mais evidentes com a
reunião dessas histórias: a estrutura
praticamente idêntica de todos os capítulos,
com invariavelmente uma página, efeito que
cansa um pouco e que às vezes parece não
exatamente ser uma marca de autor, mas
camisa-de-força (algo que limita ou impede
movimentos) que ele mesmo se impôs. E ainda
uma visão de mundo que incluísse um pouco
mais de humor seria bem-vinda. Nada disso,
entretanto, chega a prejudicar esse livro
que, repetimos, tem o alto mérito de reunir
boa parte de sua prosa (há ainda os romances
Cobertor de Estrelas, sua estréia em 1999, e
Duas Praças, de 2005). Isso porque, conforme
a crítica já reparou, há algo de
assustadoramente pronto neste paulista de 32
anos. De fato, poucos autores brasileiros
repetiram essa façanha. Dentre eles, Caio
Fernando Abreu, sem dúvida o maior talento
literário da geração anterior à de Lísias.
Vale lembrar, por outro lado, que suas
histórias são formatadas em blocos
narrativos uniformes que podem ser lidos
separadamente, como fazia Graciliano Ramos,
de quem Lísias tem algo, mas a comparação
fica nisso, haja vista a enorme distância
temática e de ambiente entre os dois
escritores.
Já se disse ainda que Lísias se despe da
própria existência quando escreve. Eis algo
inteiramente verdadeiro e que se pode
constatar neste Anna... Em poucas linhas o
leitor é solenemente convidado a esquecer
quem escreve. Em ação, personagens com suas
dores, desvarios, desabafos. As cinco
narrativas estão todas em primeira pessoa,
obviamente não por acaso. São testemunhos
pessoais com grande poder e função de
catarse para aqueles que narram. Depoimentos
que emanam sensação de alívio e também de
dor, sofreguidão e desamparo. A deflagração
deste desamparo humano parece ser a grande
causa do autor, atrelado ao medo primitivo
do homem diante da morte. Creio que isso
tenha mais peso na sua ficção do que a
loucura e a irracionalidade, elementos
tantas vezes ressaltados. Há sim alguns
personagens “enlouquecidos e encurralados”,
como observa Leyla Perrone-Moisés no
excelente posfácio do livro, porém, mais do
que isso há solilóquios refletindo esse
insistente desamparo. E uma situação
recorrente - o desejo de se escapar de um
fatalismo que se apresenta quase
irreversível.
Capuz, Diário de Viagem, Corpo, Anna O. e
Dos Nervos demarcam algo interessante na
trajetória desse escritor que firma seu
lugar na literatura brasileira escrevendo
novelas, vertente pouco praticada no Brasil.
Narrativa quase-conto, quase-romance que
exige experiência, em seu caso certamente
adquirida como leitor e estudioso em seu
doutorado na USP.
Procurei algumas analogias entre Lísias e
autores da sua geração. Marcelino Freire,
Santiago Nazarian, Nelson de Oliveira, Joça
Reiners Terron. Mas não percebi muitos
elementos de aproximação. Não há referências
do mundo pop nem do rock’n roll, internet ou
cinema. Há nele dicção específica, que se
afina talvez apenas no estranhamento deste
começo de século, na ausência de pieguice;
eu devassado, sozinho e solitário, em geral
vítima de cotidianos sofridos. Tudo isso
embalado em linguagem precisa, firme,
exaustivamente revista. Enfim, ler Ricardo
Lísias é surpreender-se com as fímbrias da
palavra. Puro prazer que pode emanar do
texto.
Suênio Campos de
Lucena é jornalista e escritor. Autor dos
livros 21 Escritores Brasileiros
(Escrituras, 2001) e Depois de Abril
(Escrituras, 2005)
(SERVIÇO)Anna
O. e Outras Novelas, Ricardo Lísias, Globo,
208 págs., R$ 24