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Álvaro Seiça Neves


 

Asilo


naquele Asilo de mármore e baba fria
a Morte entrou de passos apressados
sorvendo almas
berraram os maus mas em vão
os ombros
varas pontiagudas alinhadas ao Céu
ventilavam ondulantes
as orelhas cerradas de cera vivida
as têmporas
a testa
os nervos
balas rebentando de solidão
olhavam lancinantes
como guilhotinas de músculos dissecados
o raciocínio era pura irritação
e para todos
a Vida
chegava numa ambulância
mascarada de carro funerário
toda esta ferida era evasão
os tiros das espingardas
sobrevoavam a sala dos rumores
cadeiras de roda empilhadas em silêncio
e enfermeiras formosas
cuspindo descontracção
e para todos
as clarabóias que fendiam
o solo seco do cérebro comum
eram miragem de um deserto moribundo
guilhotinas
varas
e ventiladores
têmporas
testas de ranho
e nervos de cera
cheirando ao podre
ao esqueleto do caixão
a festa da Vida era a cólera da Morte
almofadas e pantufas
por muito que boas
eram apenas Nadas
naquele Asilo de mármore e baba fria
o único calor vinha das mãos apertadas
 

 

 

William Blake (British, 1757-1827), The Ancient of Days

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Dora Ferreira da Silva

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Memories, detail

Álvaro Seiça Neves


 

cobaias


ó crianças!
cobaias de Infância fustigada pelo vento
vento trincando raízes de árvores perdidas
molhadas em espermatozóides
em sangue
em whisky bêbado oxigenado


cobaias de chumbo liquefeito
em soberbas saias de escuridão
cobaias de Infância
roubada
aos ventríloquos da ocasião
Infância de rio branco de lua
regando a breve estrada das luzes eternas.
 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Admiration Maternelle

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Jomard Muniz

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John Martin (British, 1789-1854), The Seventh Plague of Egypt

Álvaro Seiça Neves


 

Cosmos


Varandas
de uma fachada chamada rosto
observando o horizonte.
o mago
frente a frente
repara no software instalado
no ciber-cérebro alimentado
em porções de gigabytes virulentos.
Varandas
de um ser tornado Cosmos
visionário do seu tempo
aprendiz de recordações
metálico e frio e distante
enregelado de circuitos condutores
entrelaçados
onde nano-neurónios virtuais
se vigiam cintilantes
irrigados de virtuosismo
observando os guardas as Varandas
aprendizes de recordações
que num tanto de curto-circuito
retraem seus falsos corações.
 

 

 

Michelangelo, Pietá

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Francisco Perna

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Michelangelo, 1475-1564, Teto da Capela Sistina, detalhe

Álvaro Seiça Neves


 

Irmão


carruagens alucinantes
de heroísmos rebeldes e sadios
heroísmos emprestados à vingança cobarde
de sermos Irmãos.
ouviste? Irmãos!
vidros partidos
pés
escoriações
pés
vidros partidos
plantas de
pés
rasgadas
por detalhados e pequenos pedaços de
vidros partidos
cheios de esquinas
lanças
facas afiadas
de corte ancestral.
ouviste? Irmão
os pés sangram a tua ausência desconhecida
os pés sangram todas as vitórias
todos os heroísmos rebeldes
cobardes
de vingança embebida
cujo suco não partilhámos...
ouviste? Irmão
os pés sangram por ti...
 

 

 

Rafael, Escola de Atenas, detalhes

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Napoleão Maia Filho

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Plaza de toros

 

Álvaro Seiça Neves


 

diarreia


Oh! pensamentos!


diarreia de nervos
nervos nervos ópticos
fibras fibras
fibras ópticas


pensamentos
virulentos
nervos nervos
suculentos


tráfego aéreo automóvel
em colisão cósmica
nervos nervos
e pensamentos


uma dor escavada
num estômago trágico
hipoglicémico
um pensamento
nervos nervos
fome fome
sem fundamento


cem mil teclas
um pianista surdo
algemado às 18:09
a uma partitura encruzilhada
cem mil teclas
às 18:10
vibrando enxutas...
CRASH!
de lés a lés.


diarreia de nervos
um enjoo agudíssimo
cem mil pensamentos
à velocidade-luz de auto-estradas espaciais
em mudo trânsito
diarreia
fibras ópticas
nervos ópticos
e um autoclismo
onde se carrega o dedo
e vrrruuummmmmmm
num pensamento
parado e espumante
tudo é o momentO
 

 

 

Michelangelo, 1475-1564, David, detalhe

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Luciano Maia