Carlos Felipe Moisés
Mário de
Andrade em San Francisco
para Roberto Piva & Cláudio Willer
1.
Dez horas da noite.
Percorro os meandros do Chinatown em San Francisco
e entre becos de névoa e olhares aflitos
é a ti que procuro
-- São Paulo, comoção da minha vida --
na voz de Mário, teu poeta,
subindo e descendo as ladeiras de angústia
de uma cidade que anseia pelo mar.
Dez horas da noite.
Meus pés,
que já pisaram as ruínas de Yucatán
e a medina de Marraquech,
o cais de Amsterdã
e o deserto de Alcácer-Quebir,
chegam cansados à Union Square, no coração de San Francisco,
e este chão morno coberto de pombos me acolhe
como se eu pisasse a rua Lopes Chaves em noite de crimes.
Dez horas da noite.
A culpa do insofrido, onde está?
Ali, Mário, põe a máscara!
O rei de Tule jogou a taça ao mar,
vendaval a levou -- e hoje,
troféu cravado na torre mais alta da Golden Gate,
banhada em luar,
ela anseia pelo Oriente onde, dizem, o sol reside.
Dez horas da noite.
Vem, Mário, vou mostrar-te San Francisco,
cidade esculpida em bruma a oriente do Oriente, onde a Primavera
existe e
se ergue do mar todo ano, ofertando presságios e desassossego,
ladeira abaixo
ladeira acima.
Aqui os corações são arrastados pelos bondes sapateando nos trilhos
como
o nosso dlem-dlem Santana! ei-ô! rumo à Voluntários da Pátria
ou às madrugadas arrepiadas de frio do largo de São Bento
mas aqui os bondes arrastam nossa aflição Powell St. acima, depois
pelo
Embarcadero até o Fisherman’s Wharf e por fim nos despejam
na Ghirardelli Square,
de onde avistamos nossos sonhos,
catedrais ancoradas no cais impossível,
e a Primavera mais terrível
cobre de flores nossos ombros pensos --
arlequinal!
comoção de nossas vidas!
2.
A noite agora não é mais criança.
A cidade assolada em neblina acolhe os deuses da madrugada e nos vê
passar.
Não é nossa Londres das neblinas finas, onde as rolas da Normal
esvoaçam
entre os dedos da garoa,
mas é a cidade que nos abrigou com sua Primavera incandescente e
guiou
nossa vagabundagem por labirintos de espanto, numa noite iluminada pelo desespero de náufragos e rainhas exiladas.
Foi aqui,
naquele bar imundo da O’Farrell quase esquina com a Market, em meio
ao
cheiro azedo e oleoso de tantas noites mal-dormidas, depois da
milésima cerveja, depois de esgotarmos todos os versos bem
amados, que sabíamos de cor,
foi aqui,
naquele canto escuro que Allen Ginsberg it’s too long that I have
been alone, it’s
too long foi-se chegando irritado e implorou come Poet, shut up &
eat my word e você o embalou no colo e depois sonhou que tinha
vomitado a cidade de San Francisco no oceano azul.
Foi aqui
que Leadbelly, o negro desdentado, sentou-se à nossa mesa e nos
ensinou a
chorar em uníssono com seu banjo prodigioso e você lhe ensi-
nou os passos da dança que todos sabíamos e ele então, com
outro brilho nos olhos, voltou a nos chamar irmãos e nos desejou alegria e você o abençoou.
Depois,
arrancamos de cada rua os fantasmas que ali se abrigavam e
derruba-mos todas as pedras que se acumularam no caminho
e as mãos sangradas e famintas finalmente descobrimos que San
Francisco
(Alexandria, você sabe, a Tebas impossível que nunca pudemos
pisar) é uma cidade viúva de segredos e os fantas-mas que aí
avistamos são os nossos próprios fantasmas, para sempre per-
didos
-- como teu coração paulistano,
Mário,
que um dia você enterrou no Pátio do Colégio
e ali estava, quente e vivo,
entre as ruínas da O’Farrell quase esquina com a Market,
dedilhando um blues sem esperança
-- como tua língua,
que você um dia guardou no alto do Ipiranga,
para cantar a liberdade, saudade,
mas esta já não foi possível encontrar mais, não.
Por isso também nos perdemos e nos achamos,
comoção de nossas vidas!
3.
Depois
rolamos nosso sono em delírio, pelas ruas,
e em nossos olhos ardia
a lembrança daquilo que nenhum de nós sabia.
Depois,
diante do cais, em Lands End, os braços abertos em cruz,
você gritou para o abismo em frente,
ou sussurrou para as almas encolhidas de medo:
-- A noite vem do mar cheirando a cravo!
E por um instante
o baiano poeta Sosígenes bailou entre nós
naquela madrugada em San Francisco,
mas logo regressou a seus castelos em Belmonte.
No fundo das águas havia dragões e havia sereias
e ao longe, e-eh-ô!, Boi Paciência e o Irmão Pequeno.
Cada rua era um rio que o mar desenhara na terra
e a lua enorme
uma ânfora plantada na torre mais alta da Golden Gate.
-- Garoa do meu São Paulo,
garoa sai dos meus olhos!
E a garoa caía em San Francisco
ou em Londres das neblinas finas.
Depois
rolamos nosso sono em delírio pela Mission St., como um rio,
de leste a oeste cruzamos toda a cidade,
à procura do sol,
guiados pelo cheiro do mar,
mas o cheiro do mar nos levou para longe do mar.
-- Água do meu Tietê,
onde me queres levar?
Rio que entras pela terra
e que me afastas do mar...
Nessas águas Boi Paciência se afogou,
que o peito das águas tudo soverteu.
Você queria um porto seguro na terra dos homens,
por isso perguntava pela culpa do insofrido
e suplicava:
-- Garoa, sai dos meus olhos!
Por isso
você desceu ao léu da corrente do rio
e entrou na terra dos homens ao coro das quatro estações
mas não me ensinou o caminho
ou não aprendi a lição.
Ao regressar,
teus olhos eram só preguiça e mágoa,
teus olhos bailavam no ar,
o ar de mansa maresia dos mares de San Francisco,
teus olhos bailavam no ar a grandeza de todas as glórias
e teu coração entoava:
-- Estou pequeno, inútil,
bicho da terra derrotado,
e já nem sei se vale a pena
cantar São Paulo na lida
Você recusou a Paciência (Boi morto) e a esperança
e em teus olhos as águas murmuravam hostis,
levando as auroras represadas
para o peito do sofrimento dos homens.
Nem eram tantas essas águas, nem tamanhas.
Era uma lágrima, apenas, uma lágrima
das águas turvas do nosso Tietê, límpida
lágrima em que brilhava um céu de chumbo,
arlequinal!
comoção de nossas vidas!
4.
Quatro horas da manhã.
Caminhamos em silêncio pelo longo e frio corredor infinito da Powell
St.
à espera do primeiro carro do subway que nos levará de volta a
Berkeley e à
Telegraph Avenue,
onde a Revolução é um estado de espírito permanente e, qual Oroboros,
do
seu próprio tédio se alimenta,
onde até o breakfast cheira a conspiração e onde os filhos dos
hippies ven-
dem penduricalhos & melancolia e aceitam credit card.
Mas você sabe, Mário,
São Paulo também sempre foi berço de revoluções.
Quatro horas da manhã.
Deixamos para trás o cais e a noite negra
e em nossos ouvidos ecoa o grito de Álvaro de Campos:
-- Ó coisas navais! Meus velhos brinquedos de sonho!
Componde fora de mim a minha vida interior!
Caminhamos em silêncio pela Powell St.
e você começa a saltar pela calçada
como se estivesse na avenida São João.
De repente,
o riso debochado
que brota dos teus e dos meus lábios
se espraia pelas ruas solitárias
e divide a madrugada.
Antes você perguntava pela culpa do insofrido
e se queixava:
-- Miséria, dolo, ferida,
isso é vida?
Agora teu coração secreto nos leva de volta
ao dia claro de onde viemos.
Quatro horas da manhã.
A maresia vem do cais distante
e se espreme entre os prédios altos
e arde cheia de aroma
no céu pesado de chumbo
-- entre essas duas ondas plúmbeas de casas plúmbeas,
como você costumava dizer da rua de São Bento.
Jamais
madrugada tão sombria,
jamais minha alma tão serena e vazia.
Quatro horas da manhã.
Caminhamos em silêncio pela Powell St.
e em algum lugar a Primavera nos aguarda
com dez mil milhões de rosas paulistanas.
No ar,
daquele banjo desdentado
o som já desfeito em penumbra
nos guia os passos
e somos duas crianças
balbuciando o rondó das tardanças.
E como sabe que vai morrer
daqui a um segundo
daqui a um verso
a noite mergulha em treva mais densa
(vingança!)
e em nosso olhar o dia todo se ilumina
em milhares de brilhos vidrilhos,
arlequinal!
comoção de nossas vidas!
(Subsolo, São Paulo, Massao Ohno, 1989)
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