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Cláudio Aguiar


 

Balada dos últimos arcanjos
 


Arcanjos vão às águas do Jordão
buscar pedras perdidas no seu leito,
enquanto o cão ao olho leva a mão
e seus filhotes cantam: "Oh, bem feito".
Se as águas brilham fortes no verão,
imagens nelas surgem flutuando
nos espelhos das ondas, deslizando,
até que a noite venha a luz cegar.
Só, acordada, a mente vai pensando
no sonho que mais tarde irá sonhar.
 


Papiro, pergaminho, papelão,
eis o que fica no lodo da terra,
trazido ao dia qual aluvião
se cava a mão e logo os desenterra.
Iluminado arcanjo que se encerra
no leve curso d’água fugidia,
salta desnudo pela margem fria,
alma ou fantasma, dádiva do mundo,
desfigurada e rápida alquimia,
dos que não chegam mais além do fundo.
 


Desembestado o húmus temporão,
incontinenti, avança e não emperra
diante dos olhares dos que vão
cedo ao combate da planície à serra,
a paz ferindo, loas dando à guerra.
Não pára o tempo e a pedra o pó gerando,
o micro gene ao vento joga e ferra
a semente na sombra, a germinar
nas horas quentes, vidas transformando,
milhões de vozes na torre a falar.
 


As correntes do rio, qual trovão,
nas cachoeiras vão trombeteando,
milhões de ícones a verberar
o som das eras, voz anunciando,
final estrondo, que o bit vai dar.
 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Reflexion

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Tarcísio Holanda

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Caravagio, Êxtase de São Francisco

 

 

 

 

 

Cláudio Aguiar


 

Sextina da dúvida


Do mundo dos mortais ou só dos anjos?
Quero a resposta já para que a dúvida
nunca prospere; mas se o entendimento
turba-se e vejo seres sem razão,
que pensar do meu corpo e de minh’alma,
se dela um sai e logo outro diz: entra?
 


Se sobrevive a alma que bem entra
no descuidado corpo, leves anjos
verberam no que é, fazendo que a alma
exista, enquanto se levanta a dúvida
no mundo, deformando-se a razão,
perdendo-se também o entendimento.
 


Se não é absoluto o entendimento,
mesmo que aprenda dele o que só entra
na matéria, restaura-se a razão.
Quem a desconhecer não verá anjos,
nem precisa chamar a si a dúvida
para chegar a ter outra boa alma.
 


Como mortal não vi jamais um’alma.
Logo, não vou perder o entendimento.
Com ele não conviveria a dúvida,
que, num relance, em nossos corpos entra.
Se de repente dele expulso os anjos,
que fazer do saber e da razão?
 


Se algum dia eu ficar sem a razão,
não sei se perderei toda minh’alma
e viverei no limbo com os anjos,
tendo tudo mas sem entendimento,
e até a certeza que em mim já não entra,
muito fará crescer a minha dúvida.
 


Já que está sempre a porta aberta à dúvida,
entrando a fé ou fugindo a razão,
nada entrará em ti sem o aviso: "entra"!
Se ninguém poderá viver sem alma,
mesmo quando lhe falte o entendimento,
não olvides que em nós habitam anjos.
 


-- Se você viu anjos, não resta dúvida,
tem entendimento e também razão.
-- Ali vem um’alma e agora em mim entra!
 

 

 

Titian, Noli me tangere

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Paulo de Tarso Pardal

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Venus with Organist and Cupid

 

 

 

 

 

Cláudio Aguiar


 

Três sonetos metafísicos

 

A José Bonifácio Câmara

 


I


Por que gostamos tanto do passado?
A interrogante leva-me a pensar
no segredo que fica em si guardado,
que não sei se algum dia vou achar.
 


Perdido na palavra ou termo dado,
sempre o presente vive a deslizar
em busca do impossível já pensado
ou do que não se pode desvendar:
 


os três instantes num sopro da vida,
que poderia até vê-la esquecida,
no que será ou já foi existente.
 


O melhor é não mais perder o tempo,
ainda que eu resuma num momento
o passado e o futuro no presente.



II

Quanto mistério tem a flor guardado,
pois, desde sempre, desafia a mente
dos que desejam descobrir o dado
oculto no desvão duma semente.
 


E como o pólen nela está cravado,
dele o áspide mau tira somente
o venenoso, enquanto o mel levado
por uma abelha logo se pressente.
 


Quem tudo sabe pouco talvez veja.
Quem nada sabe afronta sua verdade
ou seu direito de bem percebê-la.
 


Que o mistério segredo sempre seja
para que nunca o mal vença a bondade,
impondo a morte à vida sem querê-la.



III

Algo há nas flores que acalentam feras,
chamando abelhas vivas do sereno
para as tocarem, há perdidas eras,
nunca alterando forma nem aceno.
 


É preciso viver as primaveras
para sentir o gestual e ameno,
esforço feito, sol florindo esperas,
elaborando o bom mel e o veneno.
 


Há nelas algo que esconde o mistério,
fazendo com que a abelha encontre o mel
no mesmo pólen que o áspide tira
 


o veneno letal, momento sério,
grito de morte, do holocausto ao fel,
que cega os olhos, apagando a pira.
 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Cleópatra ante César

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Nelson Ascher

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Consummatum est Jerusalem

 

 

 

 

 

Cláudio Aguiar


 

Sonho solar
 

 

A Miguel Elías Sánchez Sánchez



Eu não conheço o sol,
clarão que humilha e me faz manso.
Só o conheço na sombra
que também mata e inocenta.
 


No lago interior, alma afogada,
afundei a matéria abismal do choro,
facho imenso entre o dia e a noite.
Oh, escuridão eterna,
quando serei raio
partindo do útero da terra?
 


Eu não conheço a luz temporal
que anda por sendeiros,
buscando as pisadas das estrelas,
gerando um som que me emudece.
 


Ainda que o meu tamanho se agigante,
não vejo nada além do infinito.
Talvez me ensine mais o sonho
que me alimenta e logo me destrói:
rotor preciso da imensidão,
refrão nefasto da pequenez humana.
 

 

 

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Edna Menezes

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Da Vinci, La Scapigliata, detail

 

 

 

 

 

Cláudio Aguiar


 

Improviso a Iracema-Alencar

 

A Audifax Rios

 


Iracemar - viver bem deslumbrado,
rindo na praia que Deus nos criou
além da inocência e do bom pecado,
com fogo, sal e sol devorador,


e todos votos do carnal amor.
Mercadoria fazes tuas mágoas,
América! Alencar te recriou,
além-mar, mar-além daquelas águas,


luzes banhadas pelo sol dos dias,
egressas de contados movimentos,
nascentes das canções de nossa gente,


cantadas em desoras maresias:
areal-pó, levado pelos ventos,
romance-aurora, madrigal silente.
 

 

 

Octavio Paz, Nobel

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Benedicto Ferri de Barros