A
Guisa de Posfácio
Quando a imagem é
nova, o mundo é novo, é o que afirma Bachelard sobre
as imagens de poesia que habitam os lugares e os
cantos mais escondidos (e que, por isso mesmo, são
os mais surpreendentes). E é esta a escolha de Edson
Cruz em Sortilégio, seu livro de estréia: dizer o
espaço pela via de imagens que não apenas o
presentifica mas, sobretudo o renova.
Outeiro criado de
acúmulos/tegumentos enrijecidos/essências
exteriorizadas. É o que diz Linguagem, poema que
abre o livro e que de certo modo dá a tônica da
obra. Os lugares que a poesia de Edson diz assaltam
o leitor pelo jogo de interiorização/exteriorização.
O lugar está lá, em sua materialidade, com as coisas
que o definem, e se num momento é concha, no momento
seguinte é vôo, sobressalto. Ou o contrário, como em
Sambaqui:
em meu samba sarnambi
cabem todas os restos:
é meu recanto de
desterras
chão de joão-ninguém
depositório de meus
erros
O lugar é dentro, é
recanto e recôndito, mas em seguida o susto, o
vômito:
o que fazer então
com as palavras?
depositá-las aqui
vomitá-las
como se vomita
uma língua.
Assim, pode-se dizer
que há um movimento, que os lugares se movem num
devir que é aquele que rege as sobreposições e
desdobramentos. Nesse sentido, o poeta renova também
justaposições e substantivos pouco usuais, de modo
pontual, o que, para além da economia, é sinal de
maturidade. E, demiurgicamente novos sentidos surgem
e saltam dos poemas como sapos, e tomam vôo como as
libélulas é o caso de lamelibrânquios e gonfotérios,
palavras que sugerem uma fauna única para os lugares
criados por este Sortilégio.
O livro divide-se em
em quatro partes. A primeira, Sambaquis, como o
próprio nome revela, é um acúmulo de olhares sobre o
mundo natural e da escrita, mundos que na poesia de
Edson Cruz se interpenetram e promovem transformação
mútua: algo assim tão/inatural/ que chega a
ser/outra natureza.
Na parte seguinte,
Parabolês, poemas mais longos traçam lugares da
memória e do imaginário e, como num crescente
parecem preparar o final, o fechar da porta, que em
nenhum momento significa o encerramento do livro. Aí
é que ele começa.
A segunda parte,
intitulada Quaternário, abriga (como o nome já
indica) quatro poemas em que tempo e velocidade são
os liames para o tema do eterno retorno, do “círculo
eterno”. Essa liga é realizada com uma fina ironia e
alguma dose de confusão e perplexidade, o que
confere ao leitor um desconforto, a sensação de que
o caminho a ser seguido não era o da volta.
Entretanto o seguir em frente se prefigura como
suicídio pois o abismo é certo. Nada a fazer, a não
ser completar mais uma volta: carro engolindo/a
pista//paradoxo de Zenão//torres ficando/para trás//
um motor em combustão//faísca iluminando/ a
infância/ um ursinho bem bobão.
Em Suíte com Graça
para Voz Solo, poemas minimalistas dão um toque de
leveza. Aqui, Bashô e Pessoa se encontram numa
contemporaneidade que é dádiva apenas dos poetas em:
a solidão
Bashô
em mim
E em um dos momentos
em que a poesia é flagrada despudoradamente nua e
bela:
lá em casa
o menino Jesus
com os meninos
tinha caso
Nesse Sortilégio,
Edson Cruz revela uma poesia madura, conduzida com
maestria. Não, não se trata de um aprendiz de
feiticeiro. É mestre, e opera magia com as palavras.