Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova, detail

 

 

 

 

 

Francisco Carvalho


 

Gravura nordestina

 

A Eduardo Campos



Este sol é um deus feroz
que dardeja e que incendeia
os esqueletos dos bois.


As redondas oiticicas
são carpideiras de luto
chorando a morte dos brutos.


Em vôos rasantes, ao léu,
os urubus mais parecem
anjos expulsos do céu.


Gaviões roçam de esguelha
as asas martirizadas
nas costelas das ovelhas.


Cigarra, ali,devaneia.
Morre de tanto cantar
em sua concha de areia.


Uma rajada de vento
sacode os gonzos das portas
como se fosse um lamento.


Os leitos secos dos rios
são tumbas de faraós
ou de monarcas fenícios.


Quando o sol chega no vértice
os mandacarus acendem
os seus fanais de quermesse.


Os bichos magros cochilam
à sombra dos juazeiros
à espera de alguma brisa.


O canto da juriti
trespassa as almas dos homens
com seu punhal de vizir.


O balido das ovelhas
assusta as aves e os ninhos
que elas fizeram nas telhas.


Entre esquivâncias e astúcias
jumenta se entrega ao macho
que entorna o vinho das núpcias.


Ao mugido de uma rês
percorre toda a paisagem
um clamor de viuvez.


Nas varandas das fazendas
as redes brancas desenham
corpos que são oferendas.


Ninguém que ouse ou que vá
toldar os sonhos de linho
das moças no copiá.
 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), The Grief of the Pasha

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William Bouguereau (French, 1825-1905), Reflexion, detail

 

 

 

 

 

Francisco Carvalho


 

Adágio para um tigre


Quando ele passeia pela floresta
os astros se escondem em seus casulos
de cristal e as ramagens genuflexas
derramam no ar gorjeios de alaúdes.


O tigre escuta o cântico das árvores
seduzidas pela flauta de Pã.
Seus olhos, dançarinos entre as flores
querem dormir ao sol de Aldebarã.


A noite arrasta o seu manto de búzios
sobre os pântanos coroados de chamas.
O tigre é um deus que sai de seus refúgios
para comer os brolhos das semanas.


O vento apaga as lâmpadas dos charcos
volta a zumbir nas veias dos cipós.
O tigre escreve a lenda de seus passos.
Em seu rumor canta secreta voz.


As horas passam, suas vestes longas
tocam de leve as harpas das clareiras.
O andar do tigre e o espírito das sombras
são dois impulsos para as profundezas.
 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Yeda

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Cristiane França

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Memories, detail

 

 

 

 

 

Francisco Carvalho


 

Sala


Ouço passos vindos
do alpendre
para dentro da sala.
Será o vento que fala
coisas da cabala?
Ou será o morto
de regresso à senzala?
O vento se cala
e um rumor de sedas
resvala
no ladrilho da sala.
No alto da cumeeira
a coruja gargalha.
De novo o mistério
se instala
em cada movimento
da sala.
 

 

 

A menina afegã, de Steve McCurry

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John Martin (British, 1789-1854), The Seventh Plague of Egypt

 

 

 

 

 

Francisco Carvalho


 

Lavoura


As minhas mãos
já foram robustas
já plantaram
sementes de milho
nas terras dos filisteus
hoje só semeiam
as lavouras do adeus.
 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova. 1864.

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Renato Suttana

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Michelangelo, 1475-1564, Teto da Capela Sistina, detalhe

 

 

 

 

 

Francisco Carvalho


 

As vacas


Nos currais da fazenda
as vacas paridas
acalentam os bezerros
com as suas línguas
transbordantes de oferendas
os seus gemidos de ouro
escrevem uma lenda
de desejos
no espinhaço do touro.
 

 

 

Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

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Carlos Figueiredo da Silva

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Plaza de toros

 

 

 

 

 

Francisco Carvalho


 

Aranha


Medusa
tecelã dos fios
da morte.


Seus olhos de Górgona
dilaceram
o corpo do vento.


Transformam
em rochas de sal
os filhos do nosso invento.



II


Num raio de sol
os fios da teia.
Arquitetura de vidro
com vigas de areia.


O fulgor da trama
que o vento incendeia.
Numa gota de orvalho
os olhos da teia.


Medusa acordada
a aranha passeia
nas ruas de seda
do seu devaneio.



III


Arquiteta
dos minutos
fiandeira
do tempo circular
semeadora
das messes do vazio
ceifadora
de asas e de vôos
contemporânea
dos anjos e da morte.
 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), L'Innocence

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Carlos Nóbre