Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Bathsheba,

 

 

 

 

 

Francisco Carvalho


 

Tríptipo



I


tudo o que possuis
a alma, o pomar da lascívia


a fome de palavras
a sede de volúpia


a sentença lavrada
na poeira dos arquivos:


tudo cabe, poeta,
dentro de uma gaveta.



II


o olho da serpente
passeia na treva
o seu fulgor breve


lambe o odor da presa
entre folhas mortas


mastiga as horas
e uma ceia de besouros.



III


somos apanhados
numa teia de mitos


nada sabemos da alma
e do logaritmo binário


entre conchas e búzios
baionetas e obuses


a esfinge nos espreita
nos decifra e devora.
 

 

 

Da Vinci, Homem vitruviano

Início desta página

Raquel Naveira

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Velazquez, A forja de Vulcano

 

 

 

 

 

Francisco Carvalho


 

O tempo nos desfolha


O tempo nos desfolha
com sua foice de murmúrios


somos o rebanho de cabras
pastando o caos


somos os tufos de relva
nas frestas da rocha
batida pelo mar


onde a nau de Ulisses
ainda ancora


somos a escória do mito
a rota em que navega
a nossa penúria.
 

 

 

Início desta página

Marselino Botelho

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Tintoretto, Criação dos animais

 

 

 

 

 

Francisco Carvalho


 

Testamento real


Fui nascido rei
num pomar de luxúrias
me puseram na cabeça
o colar de chamas
dos heróis.


Conheci as rotas do mar
e suas mitologias
de concha e sal.
Minha nau de exílios
um dia ancorou
nos mares de Ulisses.


Construí palácios
de cristal no vértice
das escarpas.
Meus rebanhos pastavam
girassóis em todas
as encostas dos mapas.


Tive vassalos
e cães fiéis.
Duzentas amantes
cavalgaram meu corpo
da cabeça aos pés.


Fui íntimo das águas
e das marés
cem vezes morri
duzentas vezes ressuscitei
voltei do exílio
num esquife de pedra.


Escrevi estas palavras
no papiro
para que reste de mim
algum vestígio
e para que saibam
que um rei


vive para sempre
à sombra do herói.
 

 

 

Maura Barros de Carvalhos, Tentativa de retrato da alma do poeta

Início desta página

Wilson Martins

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jornal de Filosofia

 

 

 

 

Francisco Carvalho


 

Domingo


É domingo no bosque dos sargaços
constelado de vento e de ardentia.
As ondas se agasalham nos rochedos


ou vão dormir na concha dos teus braços.
Tudo celebra a glória deste dia
em que brotam orquídeas dos teus dedos


e o mistério incendeia a tua nuca.
É domingo no mar. Todas as fúrias
acendem seus penachos de martírio


O coração se veste para a luta
como um herói de impávidas centúrias
que não sucumbe à febre do delírio.


É domingo nas angras, nas retinas
dos peixes e no delta das meninas.
 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Mignon Pensive

Início desta página

Manoel de Barros

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ingres, 1780-1867, La Grande Odalisque

 

 

 

 

Francisco Carvalho


 

Canção da oferta


Te ofereço um búzio
do Mar Morto
o molde de cristal
da placenta de Cleópatra.


Te ofereço a lágrima
de areia do espantalho
a alba seduzida
pelas retinas da águia.


Te ofereço a prata dos arroios
a conjuração da pedra
o mar acorrentado
à quilha da nau de Ulisses.


Te ofereço um ramo de fogo
do pomar da lascívia
um ramalhete de todas
as pulsações da vida.


Te ofereço a sobra de lã
da túnica de Laertes
tecida por Penélope.
 

 

 

Ticiano, O amor sagrafo e o profano, detalhe

Início desta página

José Nêumanne Pinto

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Thomas Colle,  The Return, 1837

 

 

 

 

Francisco Carvalho


 

Lição de espaço


O homem no espaço
é a sombra de Sísifo.


O espectro da esfinge
O vertigem do tísico.


O homem no espaço
é a pedra no vértice.


A folha que tomba
1no vórtice.
 

 

 

Culpa

Início desta página

Fernando Py