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Flávio Villa-Lobos


 

Terra do nunca


tique-taque no corredor da casa
aquele carrilhão gigante
me observando
- olhá-lo do alto da infância
dava até
uma tontura terçã


na ante-sala do apartamento
o mesmo som cúmplice hoje
me acalentando
- ouvi-lo assim com ternura e lágrima
denuncia
minha porção Peter Pan

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, Acis and Galatea

Flávio Villa-Lobos


 

Voragem


Aceita meu convite:
estende tuas mãos prontas
para a viagem incógnita,
imprevisível.


Agarra-te com astúcia
na cabeladura desse vento
melodioso
e voa comigo para o desconhecido
- terra misteriosa que abriga
amores nômades,
febris.


Dentro d´alma, o eterno conflito:
viver o amor em conta-gotas
- para sempre -
ou deixar a paixão explodir
no peito transtornado?


Voa comigo às cegas
e verás
um paraíso apenas consentido
aos amantes desvairados,
que vencem o temor
esculpido nesse improviso.


Aceita meu convite:
não espera o tufão virar brisa,
a cor esmaecer,
os versos impecáveis
perderem o sentido.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Delaroche, Hemiciclo da Escola de Belas Artes

Flávio Villa-Lobos


 

Amor bandido


Pressente o pranto
a hora exata
- espoucar de aragem
salífera -
visão turvada,
furtiva lágrima
aberta
em desencanto.


Aviso natural,
gosto sombrio
- frágil acolhimento.
Encosta súbita,
rutilante
- caudaloso rio
de águas errantes.


Abandono dissonante
agridoce momento,
dor enlouquecida
- gozo e tristeza
em alternância
explícita.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Flávio Villa-Lobos


 

Contorno
a Ivan Junqueira


É uma porta cincada – não fecha;
noite anciã que nunca termina
– aragem assaltando a fresta
do tempo que te lancina.


É uma sombra palpável – nunca arrefece;
uma promessa apenas – não se realiza,
luz sonâmbula que despe
a mórbida silhueta de tuas linhas.


É um soluço abrindo-se tardio,
choro híbrido de mágoas profundas:
pranto contínuo que converge
ao fogo brando de tuas amarguras,


ao horizonte plúmbeo em que pairas
inerte, sem astrolábio nem bússola:
navio à deriva, fadado ao desmonte
inexorável de negras tessituras.


É uma falsa perspectiva do que seria,
traço lancinante de tua pálida figura:
quadro inacabado de uma antes
nítida, quase perfeita criatura.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Flávio Villa-Lobos


 

Temporal
a Moacyr Scliar


A súbitas, um instintivo balé
excita o horizonte:
lufadas, espirais de pó, poeira,
nuvens desencadeiam
um estranho pas-de-deux
– o céu turva-se
em tons cinza-escuros.


Folhas em fúria, raios ricocheteiam
insanos,
trovões acesos anunciam:
torrencial, a chuva cai
na tarde agonizante.


Após o dilúvio,
o aroma noturno de um mundo impecável
brota do chão úmido.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904) - Phryne before the Areopagus

Flávio Villa-Lobos


 

Cicatrizes
a Lygia Fagundes Telles


Uma espada sibilina
– lâmina suave
que não se vê –
desbrava trilhas
virgens,
numa procura ávida
e malsã.


Aço golpeando o ar
a esmo
– busca cega,
insana –
tragicômica cena,
um drama
banal, explícito.


O gume infalível
então cai
e fere fundo
meu coração
de samurai.


Submisso, vejo novamente
sangrar a lume
o vermelho-perfume
de amores ilícitos.

 

 

 

 

 

 

10.11.2005