|                                           
                      
                      
   Continuação 
                                                                     
                           
                                                                     
                                 
     
              14. Carlos Willian Leite
               - E Paulo Coelho é literatura? 
                                                                     
                                 
     
              SF:
               Poeta, o século XX foi o século do              desespero,
oriundo da desesperança dos 
			
			Baudelaires 
			
			e dos rimbauds,              agravada pelo
desencanto 
			
			nietzschiano
               para quem legítimo só o super-homem.              Ah,
meu caro Willian, o que fazer com essa escumalha, judeus, nordestinos, 
			palestinos; com esta nossa mestiçaria, os mal-amados, os baixotes e feiosos como este seu
amigo              aqui, barrigudo e de cabelo pixaim?! Sim, isto mesmo, o
que seria de nós? E, por seu favor, você, goiano (Brasil?!), não se considere fora
da lista dos enjeitados. Ante              tamanho horror, imperioso surgissem
“esperanças”, ainda que todas              falsas: nazismo, comunismo, fascismo,
integralismo e mais uma              centena de outros ismos, inclusive
o concretismo. O século XX              assistiu, como nenhum outro, à derrocada
das certezas científicas.              Espie num avião, um bichão daquele
tamanho, avoando igual a um              passarim – quem acreditaria? Einstein
e outros monstros do saber              puseram abaixo todas as certezas.
A complicar, ainda aparece um certo "Vintém-não-sei-o-quê" e diz que a
               filosofia seria apenas uma patologia da linguagem (Ludwig Wittgenstein). E Freud, tanto pior, a garantir que
os meninos,              ainda na barriga da mãe, estão todo o tempo a imaginar
safadezas para tomá-la, mãe, do              pai, matando-o. Tanta confusão
e incertezas, muitos               caíram em descrença, como quem passa um
             apagador na lousa. Crucial surgissem as              crenças,
muitas, de reposição, uma atrás da outra, Duchamps e penicos. Apareceu  
           até um “profeta”, doido como todos os profetas, um certo Jim Jones,
             um norte-americano que provocou um suicídio coletivo de centenas
de              pessoas aqui na América do Sul, na Guiana. Mas, saciadas
as              novidades, adveio a certeza de que era tudo fraude, Stalins,
penicos,              Hitlers, Picassos, Fidéis, latas de sopa, Pol-Pots,
Pinochets, os              generais daqui e os de lá. Um grande vazio tomou
conta do mundo no              final do século XX. Dois gênios surgiram a
preencher o caos: Paulo              Coelho               escrevendo, e sua
reverendíssima, o bispo Edir Macedo, pregando. Tenho que tirar o        
     chapéu, mas nem uso chapéu algum: gênios, ambos! Com direito ao    
         Nobel, digamos um Nobel da Paz. Por que não, também o de Medicina?
A cura!              Sim, meu caro poeta, você não imagina o bem interior
que a leitura              do escritor e a mensagem do bispo a quem
passou a              vida acreditando num ideal subitamente morto. Prozac?
Melhor ouvir              sua reverendíssima! Apavorações com o giro do mundo? Melhor
peregrinar   com o              mago e chorar bem sentadinho à margem do
Rio Piedra! Veja,  poeta, o              Roberto Freire, político do Recife,
um cara para além  de sério,              corretíssimo,  inatacável como
homem público, passou  a vida toda              pregando o comunismo como
o maior bem do mundo. Num segundo, o              comunismo desaba. Fazer
o quê? Ler o Paulo Coelho!  Nem sei se ele o lê,              e se não lê,
não sabe o que está perdendo.  Há mais um, o monge Boff. Puxaram-lhe,   
          de uma hora para outra, o tapete. O que fez o frei? É um      
       novo Paulo Coelho, menos místico  é certo, do mesmo saco porém,  
           farinha fina, escrevendo sobre  galinhas e águias, ele, é claro,
a              águia; nós, as galinhas.  O Gates exporta tecnologia?!
Pois nós              exportamos esperanças,               galinhas e novelas.
O resto é apenas inveja dos cifrões              do mago e dos   milhões
de sua reverendíssima. Lanço a idéia de o              Banco Central   premiá-los
               urgente. São milhões de              dólares que o Brasil       
       carreia por conta              dessa dupla, Edir   e Paulo. Agora,
se o Coelho vai continuar a ser              lido quando  essa fase de "desconsolo"
passar, eu não sei não. Aliás, sei.              Lá em casa [casa de minha
mãe], havia um livro de um certo Orizon Swift Made. Nunca mais          
   soube dele. Era do ramo "conselhos". Nem daquele outro, das amizades e
             influências — também "conselhos" —, simpaticíssimo,   Dale Carnegie.
Muito menos de Humberto de Campos. Nem do Laranja   Lima.
Tenho que literatura não é               "conselho", mas a  abordagem   do
humano, lá dentro, faca bem afiada              cortando tão fino que  
a gente nem o percebe. Literatura? Coisa naturalmente muito              fácil de fazer...
  desde quê. "Desde que o quê"? Pergunte a Dostoievsky. 
                                                                     
                          
                
                                                                     
                                 
     
              15. Chico Perna
               - PSI, a penúltima - com quantos mandacarus se faz um candelabro? 
                                                                     
                                 
     
              SF:
               Veja, o poema funda-se todo numa notícia de jornal, o Diário
  do              Nordeste, uns cinqüenta, cem mil exemplares, não faço idéia 
quanta gente leu, mas um              só escreveu. Os demais, desconfio, passaram
batidos àquela  notícia.              Em suma, há de ter todos os mandacarus
do mundo para  fazer um Psi-candelabro;              há de ter mandacaru
nenhum para fazer  um Psi-candelabro. O Menino nunca andou       
      em Paulo Afonso,  mas ele a descreve com força tal que você, quando
             se dá conta,  já está lá dentro. A várzea dos touros e garças,
na              tarde rubra  do Velho Chico, meu caro Chico! Tudo resume-se,
parece,              ao sinistro  “desde que”, tal como naquela maldita história
dos              talentos, do Cristo, vide Mateus, «A quem já tem,
tudo se lhe será dado;              e de quem não tem, tomar-se-lhe-á o que
não tem». O Menino,  tinha-os              todos! O resto é Bilac
e Haroldo de Campos falando mal dele. 
                                                                     
                          
                
                                                                     
                                 
     
              16. Carlos Willian Leite
               - Qual o grande poema brasileiro?  
                                                                     
                                 
     
              SF:
               O Navio, de Antonio Frederico Castro Alves. Ninguém lhe foi
 maior. É              o gênio da língua. Outra expressão grandiosa, Cruz
e Souza, pena que              não se tenha assumido da negritude. Ninguém
escreveu mais branco,              parecia um concurso de sabão em pó a disputar
a brancura de um              tanque de roupas. Contudo, ainda que branquelo,
  o gênio sopra em              Cruz e Souza. Um registro em prol de Augusto
  dos Anjos, embora eu              lhe desgoste o lado triste, lúgubre e
crepuscular.  Nem sei com que              coragem me atrevo a expressar
uma opinião destas.  Outro dia, a  Folha de São Paulo correu uma enquete entre
os poetas brasileiros.  Os meus, acima,              levaram chumbo. Elegeram
Sousândrade. Com todo  respeito, nunca              consigo passar do primeiro
verso desse maranhense  ilustre. Não estou              nem aí! Gosto porque
gosto, não porque tenha  ouvido dizer que a              senhorita Bíundinchen
gostasse, que aliás,  nada ouvi. Uma moça muito              distinta, essa
Bíundinchen. Dia destes,             
  a sandália despregou-se-lhe              em pleno desfile. Ela continuou
 desfilando, com a alpercata pra lá e              pra cá, pendurada no mocotó,
 como se nada tivesse acontecido.              Impávida “colossa”!, meu caro
 poeta, com todo respeito! Aquilo é que              é classe!
  Poema em estado  puro! O resto é barraco. E palavrão.  
                                                                     
                          
                
                                                                     
                                 
     
              17. Carlos Willian Leite
               - E o grande poeta?  
                                                                     
                                 
     
              SF:
               Antônio Frederico Castro Alves, ainda que sob a maledicência
  de              Bilac, no passado, e de Haroldo de Campos bem recente.
Castro   Alves              é o POETA. Outro dia, fui ver a tradução da Ilíada,
de   Haroldo de              Campos, que o Deus o tenha em Sua "gulória".
Pois   lá estava, na              última estrofe, a mais bela de todo o poema,
quando  Homero canta em              onda alta o final de Heitor. Haroldo
seguiu as pegadas da péssima              tradução de Odorico Mendes, que
apelida Heitor de “doma-corcéis”,              expressão que não existe no
falar brasileiro. Aqui, Brasil, meu caro              poeta Carlos Willian,
você que é quase pantaneiro, sabe que a maior              patente do sertanejo
 é a de «domador de cavalos». Assim mesmo, a              expressão forte,
 do coração para cima:              domador de cavalos!       
      Esta outra, “doma-corcéis”?! Por Zeus! Evidente que o compêndio
              da tradução, de rica expressão gráfica, do doutor Haroldo retornou à prateleira feito um
              relâmpago. Se você está pensando em me presentear com um exemplar,
              mande, por seu favor, uma manta de carne de sol com duas garrafas
 de              manteiga da terra. Sal, fogo e azeite — precisa mandar não,
            dou jeito por
 cá. Voltemos a Castro alves. No Navio há uma mágica  ligação do 
            Menino com a             Quinta, d’ELE, via  Beethoven.
Muita gente              desavisada pronuncia “Estã...”, quando  o correto
é iniciar o poema,              pode contar as sílabas, com “Tã...!”  Agora,
por favor, tente              pronunciar o “tã”, nada a ver com a empresa 
de aviação. Veja, a              língua vai-se postar no palato, à raiz dos 
incisivos, para se explodir, mantra universal,           
 Tã...! É d’ELE...! A do             Destino, também conhecida
como Quinta,                          Tã-tã-tã-tãann!
            Direto d’ELE para as oiças surdas daquele              surdo muito doido.
 Quem copiou quem? Ninguém! Quinta e Navio,
 ELE que entregou-os,  gratuitos, sem intermediários, com              Suas
 próprias mãos, ao surdo,  ao Menino. No              Navio,
 há mais, muito mais, veja  isto: «Auriverde pendão de minha            
 terra/ que a brisa do Brasil  beija e balança...» Pergunto, a terra,  
           quantas são as terras  em Castro Alves? Em primeiro, a terra
do              Menino, um solo  utópico, Geo, Gaia, auriverde
 de              riquezas e esperanças,  com todos esses nomes bonitos que
 ecologistas              saíram a inventar; mas há esta outra, nada utópica,
 a do Brasil, aqui,              debaixo dos nossos pés, uma terra carrasca,
 madrasta, escrava,              banal, cruel. Há infinitas coisas outras no
             Navio. Faço um              ensaiote, já disse, mostrando
 as “rimas do lado de fora”, os “ascendimentos”,              os “acendimentos”.
 Quando aprontar, avisarei. 
                                                                     
                          
                
                                                                     
                                 
     
              18. Chico Perna
               - Qual é a importância da oralidade para poesia brasileira?
                           
                                                                     
                                 
     
              SF:
               Brasileira? Claro que a oralidade é fundamental à poesia,
não   apenas              à brasileira. A escrita só veio a ser inventada
muito   recentemente.              No Nordeste, muitos cantadores de prestígio
não   sabem ler. Alguns              até sabem, mas lêem muito engraçado.
No meu   tempo de menino, eu              também lia assim, «pantasma», que
era como   se escrevia “phantasma”              na ortografia dos cordéis
antigos. Um  dia, assisti a uma discussão              de que «pantasma»
seria um bicho  muito mais perigoso que fantasma.              Chamado
a opinar, desempatei pró-pantasma, meu caro Chico, um bicho            
 muito mais terrível. Poesia visual tem oralidade? Claro que não.       
      Apenas um pantasma, perdoem-me os concretos, que já não assombra nem
             um pouco. mas ainda faz muito barulho. Parece que só no Brasil.
            Poeta              Francisco, naquela minha caminhada silenciosa de cinqüenta
anos,              houve um momento que, de tão desesperado com os concretos, me segurei nos cantadores, precisamente
no              grande Orlando Tejo, com o seu magnífico Zé Limeira, O Poeta
do              Absurdo. Ali eu tive a certeza de que a Arte não morrera. Escreviam
os              incautos que a poesia estava morta. Não! Não estava. Nunca
esteve.              Nem morrerá. Eles, sim, cum Christo! 
                                                                     
                          
                
                                                                     
                                 
     
              19. Carlos Willian Leite
               – O Rodrigo Petrônio disse em entrevista publicada no Jornal
  de              Poesia que o Paulo Leminski era um lúdico barato e que
o  Chico Alvim              era um Jeca Tatu inventado pela Folha de São
Paulo,  concorda com ele? 
                                                                     
                                 
     
              SF:
               Devem ser! Nunca me pari de amores por aquele Leminski. Aforismos
  de              frases curtas, o dedo em riste. Prefiro ler o Livro das
Lamentações,               Provérbios, Eclesiástico, Eclesiastes ou o doido
Jeremias e sua              jumenta esturrando ao cio das primeiras chuvas,
no deserto. Contudo,              a convivência obriga-me ao respeito. Há
quem goste. Por que              ofendê-los? Viva o poeta Leminski! [Viva
Bilac! Viva o poeta Haroldo              Campos!] O outro, Alvim, já escrevi
para ele diversas vezes, nunca              me respondeu sequer convite enterro.
            Não pode prestar! Perdão, pode              sim! Ele é amigo da Maria Maia, de Brasília, 
 gente minhíssima e              grande poeta. Pelos santos, e não são poucos, 
 inclusos São Francisco              do Canindé e Santa Maria Maia, vivo 
 beijando  
        e abraçando              urtigas, cansanções e cururus. Quem sabe, 
 esse Alvim seja dos bons.              Cururu coisa nenhuma! Deve ser dos 
 melhores. Aliás, dos ótimos!              Claro que é! Viva a poeta Maria 
 Maia! Viva o Alvim! Nunca li nada              dele. Um amigo me disse que 
 um poema dele é assim, só isto, nem              uma letra a mais: 
      
             
                                                       
               
                  Mas 
                                
                  é limpinha.  
                 
                                                       
             
                Poema? Deve haver um engano.              Do meu amigo, é
claro.  Se o             Alvim aparecer aqui farei festa, festa         
    grande.  É de lei. Se você vai fazer uma festa, que a festa seja decente.
             Sou do sertão, já disse! O Rodrigo Petrônio? É um cara de altíssimo 
             valor! É jovem. Aposto um monte de fichas nesse Petrônio.   
          Garanto-lhe festa. Das grandes!                        
  
                                                                     
                          
                
                                                                     
                                 
     
              20. João Aquino:
               Você só começou a escrever na maturidade. Para referência
aos   seus              milhares de admiradores no Brasil inteiro, quem você
nomearia,                individualmente, como seu herdeiro poético? 
                                                                     
                        
                          
              SF:
               Veja, meu caro poeta Aquino, os poetas são duas famílias:
os                crespusculares, do triste e do soturno; e os aurorais,
alienados                certamente, loucos que andam achando graça sem ver
de quê. Acho  que              não há meio termo. Mais de 90% dos poetas,
dos melhores  poetas, são              do triste e do sortuno. «Minha alma
é triste»  —  já estou ouvindo              alguém recitar. O Menino, assim
o chamo carinhosamente,   é auroral. E              Pessoa, quando travestido
de Álvaro de Campos,  e Whitman, e Jó. Como              negar que Jó é um
super-poema dos mais  belos que o engenho humano já              produziu?
Os aurorais estão em  franca desvantagem numérica. Por isto             
é que é tão fácil falar  mal do Menino. Outro dia, um escritor até      
       muito bom nos ensaios,  Flávio Kothe, desceu a ripa no Menino, que
             seria plagiário de  Heine. Nada, absolutamente nada a ver! Pois
bem,              recebi recente  um livro belíssimo, do Mayrant Gallo, da
Cidade Bahia,              muito  bom poeta, famoso em todo o trecho. Vejamos,
pois, este belo              poema de Mayrant:  
                                                                     
              
                        
              CEDO 
                                                                     
             
               
              O rapaz que entrega jornais 
                                                                     
             
               
              é o primeiro a se levantar 
                                                                     
             
               
              mas você não sabe. 
                                                                     
             
               
                
                                                                     
             
               
              Noite ainda, sol ou chuva. 
                                                                     
             
               
                
                                                                     
             
               
              É o primeiro e de moto percorre  
                                                                     
             
               
              toda a cidade. 
                                                                     
             
               
                
                                                                     
             
               
              Enquanto você dorme, 
                                                                     
             
               
              enquanto você morre. 
                                                                     
              
                                                                     
                          
              O poema faz o maior sucesso! Ilustra a 4ª capa do livro de
Mayrant,   um              livro muito bonito. A revista              Iararana, do meu amigo
  Aleilton Fonseca, um grande poeta,              publicou-o com destaque.
Merececidamente. Parabéns, meu caro              Mayrant! Quando o li, disse
aos meus botões: Que bom, o entregador              de jornais agora tem
moto! No meu tempo, entregava-os a pé! Pois              enquanto o Mayrant
vê só-desgostos ao jornaleiro, vejo-lhe a vitória              de uma moto,
pra cima e pra baixo: vruuummm...!                Certamente,
o Mayrant não quer que eu vá, nem ele vai por mim,   bem              cedo,
pegar o jornal lá na redação, a muitos quilômetros   daqui de           
  casa, ainda que manhã bem calma, tanto pior se for  chovendo ou       
      fazendo sol, ou no “casamento da raposa”, que é sol-com-chuva ou  
           chuva-com-sol, tanto faz. Ele diz que eu (leitor) não sei que
o              rapaz da moto, desde muito cedo, está no trabalho enquanto 
eu durmo.              Claro que sei, meu caro poeta Mayrant. São as tarefas 
do humano, as              tarefas da noite, as tarefas do dia. Os animais 
não se revezam em turnos, só o              Homem. As galinhas, todas de uma
vez, mal escurece na fazenda, caem              no sono. Os galos, todos os
galos do mundo, acordam o dia na hora              exata, vide  
            
            Tecendo a
              Manhã, belíssimo, de João Cabral, e   
            Rio
              Macacos, do filho de
véia minha mãe. A prevalecer a reclamação do              poeta Mayrant, os
hospitais não atenderão à noite, nem os padeiros              aprontarão o
pão da manhã. Sequer teremos jornais matutinos, da              madrugada, 
manhã. Evidente que, depois da tarefa              noturna, quem as faz de 
noite, tem que dormir de dia. No meu tempo              de jovem, 18 anos, 
tomei conta de uma redação de um pasquim              local, da política, 
varando a noite inteira. De manhã bem cedo, numa              hospedaria muito
modesta da Rua General Sampaio, o Hotel Brasília,              jogava este
corpo aqui em cima de uma cama, a dormir feito um gambá.              Aliás,
nem sei se gambá é bicho bom de sono. Sei que é muito bom de            
 catinga, assim eu, que as águas eram poucas e os banhos escassos.      
       Não sei se a catinga do redator é que levou o político ao insucesso, um certo
              Pequim, boa gente, mas levou chumbo, chumbo grosso.
             Se o candidato tivesse ganho, ainda hoje estaria eu mourejando
na              prefeitura, ou, quem sabe, na política, seria um senador,
um              presidente da Câmara ou do Senado. Ora, ora! Também sou nordestino,
igual ao Renan e ao bravo Severino. Pois quando              acordava, ainda
morto de sono, era levantar feito um gato, almoçar              bem ligeiro,
pegar um monte de livros, metê-los debaixo do braço   a              sovaqueá-los
até dizer chega, livros, que nada nos cai gratuito   dos              céus,
e a gente aprende mesmo é pelos sovacos, nem que seja  ao rigor das muletas, a Srª.
            Dona Vida, de professora. Meu caro poeta Mayrant, não consinta
que esse              cabra do seu poema falte ao serviço, a me deixar sem
jornal. Ligarei              reclamando meu exemplar, inclusive  para você.
No segundo dia, se o              dorminhoco repetir a proeza,  cancelarei
a assinatura e me mudarei para a concorrência. Se o entregador do jornal  concorrente
também for "descansado",              terei a certeza de que a praça comporta
um jornal de gente ligeira,              com sangue no olho,  dormindo na
hora que é para dormir, acordando              na hora que é para acordar.
De moto, poeta Maytant, eu, entregando              os jornais:  vruuummm!
              E, durante as entregas,
              entre um jornal e outro, passarei na  porta dela (vide
              sanfoneiro Dominguinhos, com o som à toda altura),              detonando os
escapes, pruuuunnnmmmn! — que era assim  que              os pleibóis
do meu tempo faziam, eu liso, um pé-rapado, só olhando,              de pés.
Veja,              meu caro poeta Aquino, o Mayrant encerra o poema afirmando
que              eu (leitor) estou morrendo.  Qual é o mal de estar a morrer?
Morrer              também é bom, meu caro  Mayrant, vide        
                  
            
            Estudos &
Catálogos  – Mãos:               
               
                           
            
              
                
                  | 
                     Ah,  meu caro Vergilius – Nunes Maia ou Publius       
      Maro, tanto faz –, a legitimidade do nosso canto é tão-só a   
          sustentar o júbilo. Se cantamos a vida, cantemo-la como a não-morte; 
             se cantamos a morte, que seja um psalmo de ressurreições. 
                    Poeta Virgílio, creia-me, o catálogo das mãos é inesgotável 
porque              as mãos dos novos hão de garantir as nossas mãos. Por 
sobre, sempre              por sobre; assim tem sido.  | 
                 
               
             
                           
              
                           
            Poeta
            João Aquino, o
poema de  Mayrant é perfeito, afinal verbera contra              a “injustiça”
de alguns  dormirem enquanto outros trabalham. Atende              perfeitamente
ao plano utópico, do Paraíso, é claro. Nem sei se por              lá os
anjos dormem ou passam dia e noite cantando benditos. Muito             
menos se há motocicleta ou "doma-corcéis" por lá. Por Zeus, se tiver    
         “doma-corcéis”, dispenso minha vaga. Ah, ia esquecendo, meu caro
             poeta Aquino, o termo médio que você referiu na pergunta,
             percebo agora que ele existe. Tomemos este exemplo em Álvaro
de              Campos, Tabacaria,
que,              para  mim é pior poema de Álvaro Campos, mas é o que mais
agrada ao              soturno geral, a crepuscular clientela da poesia,
poetas e leitores.              Tabacaria começa com maldições do tipo «não
valho nada, não sou               ninguém», um tom de ressentimentos e tristeza,
mas no final...  Ah, meu caro              poeta João Aquino, no final a
aurora escancara-se,  explodindo-se de              pura Aurora: Esteves,
o da Tabacaria, ele sorriu.  É o gênio de              Pessoa: a tristeza
absoluta... uma luz bem fininha  (suficiente,              porém) no sorriso
de              Esteves — auroral!               
                                                                     
                          
                
                                                                     
                                 
     
              21. Carlos Willian Leite
               - Se o que sobra da literatura é a literatice, o que sobra
dos  Blogs              de poesia, é bloguice? 
                                                                     
                                 
     
              SF:
               Sou a favor dos blogs. Um crítico local, Manoel Ricardo de
Lima,               escreveu que o poeta Adriano Espíndola era ótimo porque
publicava  no              Rio de Janeiro. Adriano é excelente poeta e amigo
meu, mas  nada a              ver com o local em que editou seus livros.
Indaguei ao  crítico local              onde o livro de Jó e o livro de J
(o supremo poema  da fundação do              Gênesis!) foram publicados.
O blog serve para  romper esse círculo              perverso em que o autor
não tem, até mesmo  pela distância geográfica,              acesso aos jornais
da corte. O poeta  cria o dele, blog, divulga-o              para os amigos.
E nada mais fácil  que fazer uma mala-email. O              problema é que
não há tempo para  ler tanta coisa. Sou a favor dos              blogs. Inteiramente
 a favor.  Abaixo os colonizados, lobotomizados,              que só vêem
o bem, o bom  e belo se for de fora, das estranjas, no              mínimo
da corte, Rio  e São Paulo, uma indigência em todos os              sentidos.
              
                                                                     
                                 
     
                
                                                                     
                                 
     
              22. Carlos Willian Leite
               - Existem as gerações de 70, 80, e 90, mas, mesmo já estando
  na              metade da década, ainda não existe a geração de 2000. Há
 uma crise              criativa na poesia brasileira atual ou isso é culpa
 da Internet que              nivelou todo mundo? 
                                                                     
                                 
     
              SF:
               Franca palhaçada, isto de gerações. Não as creio. De que geração
  é o              cantador Chico Pires, um bardo nordestino nascido na Inglaterra?
  E              Cervantes? E Castro Alves? Gerações? Um tema muito ameno
ao  Pedro              Lyra, meu amigo, que fez uma antologia com os amigos
dele,               naturalmente. Comigo não que ainda não era amigo. Botou
alguns  até já              ultrapassados de idade na suposta geração escolhida,
 mas assim é              que se faz: amigos! Acho uma bobagem isto de saírem
 por aí              enfiando grilo em cordão, os taxonomistas, tudo gente
 do                          op-cit: você é preto, você é judeu, 
 você é palestino, você é              nordestino, classificações que nada 
 têm a ver com a face do Homem, o              espelho de Deus, à Sua imagem 
 e semelhança. E cá para nós, "classificações"
  que nada têm a ver com o DNA,              todos iguais, nós, desde a mais
  escurecida savana africana até o              mais louro dos viquingues.
 Geração do poeta? Ora, ora! O poeta, se Poeta for, não tem geração, posto
 que gerado de              dentro da terra, desde os tempos, gerando o seu
 próprio tempo,              continuando-o, mãos sobre mãos, nesta ciranda
 mágica, o Conhecimento,              o Homem, a partir do dia em que descemos
 das árvores, até o dia em              que este planeta glorioso submergir
 nas trevas da entropia. Pergunte              a Dante.  
                                                                     
                          
                
                                                                     
                                 
     
              23. Carlos Willian Leite
               – Poeta, na pergunta nº 3, "Em qual Igreja o senhor
reza?",               quis dizer literariamente. Aqui em Goiânia está cheio
de igrejas               literárias. Qual a sua? 
                                                                     
            SF:
            
            Poeta, desculpe-me ter metido os pés pelas mãos. Aqui, Ceará,
  não              freqüento igrejas, nem de clérigos, nem de poetas. Saio
 muito pouco              de casa ou do escritório e não vou a nenhum lugar
 sem ter sido              enfática e insistentemente convidado. Entrar de
 "penetra"?! Nem no              céu! Pois bem, no meu tempo de Bahia, 1994-1998,
 um tempo bom, anote              aí, por seu favor, estes nomes: Maria da  
            Conceição Paranhos, Luís              Antonio Cajazeira Ramos, Gerana Damulakis, 
 Hélio Pólvora, Carlos              Cunha, João Augusto Sampaio, Aleilton Fonseca, Ruy Espinheira, 
 Ildásio Tavares, Aramis              Costa, Florisvaldo Matos e mais uns 
três ou quatro gatos pingados —              estes os meus na
Cidade da Bahia. Freqüentávamo-nos.              Vieram-me depois,      
       lá, o Inácio Melo, a jovem poeta Vanessa Buffone e o Cancão de Fogo,
             meu amigo Miguel Carneiro. Em Pernambuco, meu convívio de poesia
foi              praticamente nenhum. Era açougueiro e auditor, ambientes
em que a              poesia pouco circula. Mas havia bons nomes dentre os
meus colegas de repartição: Diná Gasparini, Manoel              Ambrósio de Queiroz Neto,
  Lourival Francisco de Souza, Pedro Nunes              Filho, Joel Marques
  da Silva e Suely Annunciato. Dentre os poetas              estabelecidos,
  resumi-me a César Leal, Francisco Brennand, Weydson              Barros
Leal  e Sébastien Joachim. Disse "resumi-me" porque só vim a            
 conhecê-los,  no Recife, quando já estava transferido para Salvador.   
          Anote  mais, por favor, do Recife: Majela Colares e Cláudio Aguiar.
             Deve estar faltando nomes, que véio é véio. Para que, meu Deus,
fui-me              meter a citar nomes?! Anteriormente a 1993, não freqüentava
nenhum               ambiente de poesia, nem tinha livros de poetas modernos
em casa.               Aqui no Ceará, eis os nomes: Artur Eduardo Benevides,
 Francisco               Carvalho, Juarez Leitão, Dimas Macedo, os irmãos
Maia, Virgílio,               Luciano e Napoleão; os Rodrigos, o Marques
e o Magalhães, dois               jovens poetas de grande prometimento, e
mais uns poucos que a              velhice me obriga à injustiça de esquecê-los.
Ah, veja estes  dois,              estou mesmo caduco: José Alcides Pinto
e o Sinésio Cabral,  espie só              que esquecimento imperdoável Eipa,
eipa, ia esquecendo  o Paulo de              Tarso Pardal e o Floriano Martins,
uma bela parelha  de amigos. Ah, meu Deus, que bobagem esta minha de cair
na gelada de citar  nomes! Faltam: Pedro Henrique Saraiva Leão, Beatriz
            Alcântara, José Telles e Ruy Câmara. Como você vê, não freqüento maus             
poetas. Já no plano literário, a igreja de que me considero fiel é     
        esta aqui: a igreja do lampejo do inefável. Se tal templo existe,
não faço idéia. Para mim, o poema pode ser triste, perverso, maldito até,
mas              há de trazer, preferencialmente bem dissimulados o acendimento
e o              ascendimento. Retomemos o exemplo de há pouco,         
    
              Tabacaria, de Álvaro de Campos. Claro que é um super-poema!
               Toda aquela moldura de tristeza e desespero é tão-só para
dar   azo ao              sorriso do Esteves. Sem aquele lampejo,       
                  
              Tabacaria, para mim, não seria nada. Tomemos outro exemplo: 
               
              O Crime do Padre Amaro, de Eça. Nenhum romance foi tão
               anti-clerical. Pois bem, demonstro em Salomão que, pelo contrário, 
               
              O Crime do Padre Amaro é um livro devoto, santificado,
  beato              e carola, dois pontos. É que em meio a toda aquela patifaria
  de              Amaro e do padre mestre, cercada por todos os lados por
um  clero              absolutamente ímpio e corrupto, surge-nos, bem apagado
  mas              luminescente, lá dentro dos matos, um santo, o abade Ferrão.
  Num              único parágrafo, Eça nos descreve o bem-dentro-do-mal,
o  justo em              estado puro, como se fosse um Abrãao circundado
de Gomorras, Ferrão, bom e justo, apesar do nome. Em               
              Primo Basílio, também de Eça, outro lampejo da mesma 
estirpe:               a bondade do amigo do marido traído, que jura de pés 
juntos que              Luísa é pura e inocente. Ora, ora! Logo quem, a trêfega 
Luísa! E por aí              vai. De Machado, em              
              Cubas, a figura do bem naquela senhora que toma conta,
               honestíssima, do "refúgio" do casal. Em Capitu, o bem sem
limites   no              agregado José Dias, para mim a figura central do
romance.   Capitus,              Bentinhos, Escobares e demais patifes servem-lhe
apenas   de ornato e realce. Veja, meu caro poeta Carlos Willian, recebi
             recente   um opúsculo artesanal do poeta Renato Suttana.   
          
              O Livro da Noite, este o título; o email do Suttana
  também              soturno: fantasmananoite@ig.com.br. Ele escreve,
  lá pelas tantas: «Vazio,              branco, imerso em sombra e perplexidade,
  apenas alcanço constatá-lo,              vendo que, lenta e lucidamente,
 estou sendo arrastado para baixo»,              pág. 37. Você acha pouco?
 Um novo Augusto dos Anjos no trecho? Isto              vejamos, se sim,
se  não; parece que sim, parece que não. Saí catando e sublinhando em cada
capítulo  do livro de Suttana mínimos laivos de luminescência,
uma tarefa  quase              impossível. Pois não deu outra! Por mais sombria
seja a              noite-Suttana, grifei: «...o
morto               optou pela sabedoria, erguendo...»,  pág.
9; «...esse  fio de              perplexidade por cima de um  abismo...»,
pág.  14; «...olhando para o teto...,  pág. 20»;
«...a  única meta é a madrugada..., pág. 23»; «...tudo 
             o que faço é prosseguir..., pág. 24»; «...o dia
 é claro  e nítido...,              pág. 29». Já chega, não? Um
poeta que se  garante olhando para o teto, será qualquer coisa, menos
  crepuscular. Presumo que Suttana vá levar              um grande susto
quando   ler isto aqui. Sabe-se ele um auroral? Quem,              então,
escreveu   por ele em tom de auroras? [Faça um contato com o poeta, quem
sabe, ele lhe  presenteie um  exemplar do belo Livro da Noite!
Basta clicar na foto, ao lado.] Acaso Eça sabia-se devoto,         
    religioso, carola, quando demonstrou que o verdadeiro clero português
             era o padre Ferrão e não aquele bando
 de facínoras, espelhado
em Amaro e Padre              Mestre? Sei não, sei não, meu caro poeta! Tenho
apenas isto para              concluir: um mínimo risco de auroras num panelão
de escuros é o              contra-ponto, como se fosse uma gota apenas de
luninescência, por              mais insignificante, para pôr a perder todo
o mal. Luminescência?              Isto mesmo, meu caro Willian, a luz já
estava criada anteriormente ao sol, à lua, às estrelas
— Gênesis, capítulo inicial,              confira por seu favor. Luz? Que
luz seria, se não é a do sol, nem a da lua? Haveria, então, uma outra
 "luz"? É incrível, mas não é o              mal que corrompe o bem. Pelo
contrário, o mal sempre perdeu, sempre              perde, sempre perderá,
vide Auschwitz: de lá escapamos, ainda que a milhares de quilômetros de distância;
comemoremo-lo,              vivos, nós, que, afinal também morreremos. Os
pósteros hão de ser              melhores do que nós. Isto mesmo, meu poeta,
 melhores! Até outro
 dia, ninguém se atreveria a recriminar do tiro da "autoridade" na
 nuca de um ninguém-vigia de mãos postas.
 Hoje, sente-se a necessidade de garantir uma pensão alimentícia em favor do
 inocente, o órfão. Alimentícia, não seria um indenização apenas? A
 indenização, sem dúvidas! Mas a alimentícia também! Veja, o desatinado, no
 tiro, assumiu-se de pai quando o privou de pai. Pelo bem, pelo mal, agora é
 "pai". Se o tribunal vai conceder, é outra história. O próximo
            tribunal, ainda
 que só no Século Cem de Ésquilo (vide  
            Salomão), há de conceder. Não é fácil, meu
            poeta Carlos Willian Leite, creia-me,
descortinar o lampejo. É              ele que, quanto menor e mais dissimulado,
dá o grifo, o "sublinhado",              da verdadeira obra de Arte. Esteves,
o da              
              Tabacaria, sorriu. Passe um risco debaixo, por seu favor. 
              [Goiânia e Fortaleza, 5.3.2005] Publicada em inteiro teor no 
			jornal Opção, Goiânia, GO. 
                                                                     
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