Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Bathsheba,

Guilherme de Almeida


 

Branca de neve


Eu te guardo no fundo da memória,
como guardo, num livro, aquela flor
que marca a tua delicada história,
Branca de Neve, meu primeiro amor.

 

Amei-te... E amei-te, figurinha aluada,
porque nunca exististe e porque sei
que o sonho é tudo — e tudo mais é nada...
E és o primeiro sonho que sonhei.

 

Hoje ainda beijo, comovido e tonto,
a velha mão que um dia me mostrou
aquela estampa do teu lindo conto,
princesinha encantada de Perrault!

 

Que fui eu afinal? — Um pobre louco
que andou, na vida, procurando em vão
sua Branca de Neve que era um pouco
do sonho e um pouco de recordação...

 

Procurei-a. Meus olhos esperaram
vê-la passar com flores e galões,
tal qual passaste quando te levaram,
no ataúde de vidro, os sete anões.

 

E encontrei a Saudade: ia alva e leve
na urna do passado que, afinal,
é como o teu caixão, Branca de Neve:
é um ataúde todo de cristal.

 

E parecia morta: mas vivia.
Corado do meu beijo que a roçou,
despertei-a do sono em que dormia,
como o Príncipe Azul te despertou.

 

Sinto-me agora mais criança ainda
do que naqueles tempos em que li
a tua história mentirosa e linda;
pois quase chego a acreditar em ti.

 

É que o meu caso (estranha extravagância!)
é a tua história sem tirar nem pôr...
E esta velhice é uma segunda infância,
Branca de Neve, meu primeiro amor.


Publicado no livro Encantamento (1925).
 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

 

 

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Elaine Pauvolid

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Consummatum est Jerusalem

Guilherme de Almeida


 

Cinema


Na grande sala escura,
só teus olhos existem para os meus:
olhos cor de romance e de aventura,
longos como um adeus.

 

Só teus olhos: nenhuma
atitude, nenhum traço, nenhum
gesto persiste sob o vácuo de uma
grande sombra comum.

 

E os teus olhos de opala,
exagerados na penumbra, são
para os meus olhos soltos pela sala,
uma dupla obsessão.

 

Um cordão de silhuetas
escapa desses olhos que, afinal,
são dois carvões pondo figuras pretas
sobre um muro de cal.

 

E uma gente esquisita,
em torno deles, como de dois sóis,
é um sistema de estrelas que gravita:
— são bandidos e heróis;

 

são lágrimas e risos;
são mulheres, com lábios de bombons;
bobos gordos, alegres como guizos;
homens maus e homens bons...

 

É a vida, a grande vida
que um deus artificial gera e conduz
num mundo branco e preto, e que trepida
nos seus dedos de luz...


Publicado no livro Encantamento (1925).
 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

 

 

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Paulo bomfim

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Plaza de toros

Guilherme de Almeida


 

Cubismo


Um Arlequim feito de cubos
equilibrados:
trinta losangos arranjados
sobre dois tubos.
— Ele talvez
jogue xadrez...
 

 

No halo, que a lâmpada tranquila
rasga, de cima,
esse Arlequim de pantomima
oscila, oscila,
e vem... e vai...
e quase cai...

 

Mas entra alguém: é uma silhueta
que espia e passa.
Seu riso é um fruto sob a graça
da mosca preta
— É uma mulher
como qualquer...

 

Um gesto só lânguido e doce:
e, num instante,
Dom Arlequim, o petulante,
esfarelou-se...
— Todo Arlequim
é mesmo assim...


Publicado no livro Encantamento (1925).
 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

 

 

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Francisco Brennand

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Venus with Organist and Cupid

Guilherme de Almeida


 

Humorismo


Sossego macio da tarde.
Um sol cansado
passa pelo rosto suado
uma nuvenzinha alva como um lenço
para enxugar as primeiras estrelas.
Silêncio.

 

E o sol vai caminhando sobre os montes tranqüilos
vai cochilando. E de repente
tropeça e cai redondamente
sob a pateada dos sapos e a vaia dos grilos.


Publicado no livro Meu: livro de estampas (1925).
 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

 

 

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Luiz Bello

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Michelangelo, 1475-1564, Teto da Capela Sistina, detalhe

Guilherme de Almeida


 

Natureza-morta


Na sala fechada ao sol seco do meio-dia
sobre a ingenuidade da faiança portuguesa
os frutos cheiram violentamente e a toalha é fria
e alva na mesa.

 

Há um gosto áspero de ananases e um brilho fosco
de uvaias flácidas
e um aroma adstringente de cajus, de pálidas
carambolas de âmbar desbotado e um estalo oco
de jaboticabas de polpa esticada e um fogo
bravo de tangerinas.

 

E sobre esse jogo
de cores, gostos e perfumes a sala toma
a transparência abafada de uma redoma.


Publicado no livro Meu (1925).
 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

 

 

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Antônio Houaiss

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Caravagio, Êxtase de São Francisco

Guilherme de Almeida


 

Os andaimes


Na gaiola cheia
(pedreiros e carpinteiros)
o dia gorjeia.


Publicado no livro Poesia Vária (1925).
 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

 

 

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Lau Siqueira

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

Guilherme de Almeida


 

Velocidade


Não se lembram do Gigante das Botas de Sete Léguas?
Lá vai ele: vai varando, no seu vôo de asas cegas,
as distâncias...
E dispara,
nunca pára,
nem repara
para os lados,
para frente,
para trás...

 

Vai como um pária...

 

E vai levando um novelo embaraçado de fitas:
fitas
azuis,
brancas,
verdes,
amarelas...
imprevistas...

 

Vai varando o vento: — e o vento, ventando cada vez mais,
desembaraça o novelo, penteando com dedos de ar
o feixe fino de riscas,
tiras,
fitas,
faixas,
listas...
E estira-as,
puxa-as,
estica-as,
espicha-as bem para trás:
E as cores retesas dançam, sobem, descem de-va-gar
paralelamente,
paralelamente
horizontais,
sobre a cabeça espantada do Pequeno Polegar...


Publicado no livro Encantamento (1925).
 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

 

 

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Ivan, 2003