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Ildásio Tavares


 

Illud


Nada sinto do que escrevo.
Pouco importa se o disseram.É
verdade. E sinto, quando
escrevo, que não sinto.
Mas o verso sente.
 


E sentirão os que o
lerem, se amarem a boa poesia e
Se houverem de sentir. Ou se
Estiverem bem dispostos, antes
Ou após o almoço,
numa ampla varanda de Domingo.
 


Fico frio
Para que as palavras possam
Aquecer outros ouvidos, outros olhos. Outra
mente é que pode sentir (e pensará
que sente) o que escrevo – e escrevo,
`as vezes, até por não ter o que fazer.
Jamais movido por qualquer sentimento.
 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

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Lau Siqueira

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Bathsheba,

 

 

 

 

 

Ildásio Tavares


 

Intenção de outono


Queria compreender o outono,
tantos e diversos amarelos,
caindo e atapetando o chão.
Fácil e o verão,
seu espetáculo de sol sobre o azul.
E a primavera com seu ramalhete
de bromélias febris; de acácias
e de orquídeas selvagens.
 


Queria compreender o outono,
seus amarelos que caem;
sua intenção de aos poucos avançar
até a neve – o inverno
com seu horizonte de chumbo.
 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Slave market

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Elaine Pauvolid

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Velazquez, A forja de Vulcano

 

 

 

 

 

Ildásio Tavares


 

Réstia de luz


Ainda ontem, entrei sem querer naquela
pensão barata ( mas limpa e asseada )
onde nos encontrávamos felizes nos
finais de tarde. Entrei sem querer,
Eu juro. Procurava uma peça de carro
numa daquelas lojas perto da estação
e quando dei por mim, estava bem na porta.
Quem havia de resistir?
 


Na penumbra furtiva do corredor,
o coração descarrilou ate o quarto
17 que me aguardava calado como uma
verdade eterna. Tudo igual. A cama
imaculadamente branca; um criado mudo;
duas cadeiras puídas de palhinha; e a
bacia de louça cor de rosa em que te
lavavas, depois, ocultando teu gesto,
constrangida, para não te banalizares –
tua aura de deusa profanada por
uma intimidade prosaica.
 


Quanta vez, este teu recato ante a
promiscuidade me excitou, te enlacei
por detrás e te trouxe de volta ao
tumulto da cama! Tu sempre resistias.
Você e louco, menino? Ele chega cedo
do trabalho. Olhe aquela réstia de luz
na persiana como engatinha sorrateira
a caminho da noite. Mas resistias um
resistir indeciso, querendo mesmo te
entregares, e desta vez, como mais volúpia.
 


É um amor bem mais amor esse amor
que me fazes depois, tu murmuraste
um dia, abaixando os olhos, com esse
teu jeito recatado e tímido de
tudo fazer e nada comentar. Foi num
desses dias em que sentimos a terra
tremer embaixo de nós e ate pensamos
Que era o trem. La estava a réstia de
luz que engatinhava pela persiana,
prestes a engendrar a noite. Não sei
Se foi ele, se fui eu ou o que foi.
Ninguém entende a lógica das mulheres.
 


Faz bastante tempo que nos vimos. Foi
no meio da rua, por acaso. Tu nem
quiseste sentar para tomar alguma coisa,
conversar. Era um final de tarde. Tinhas
pressa. O que a gente tem pra conversar,
conversa aqui mesmo, em pé, diga. Eu
tentei reviver em minhas trôpegas palavras
nossos momentos de esplendor; cerzir
retalhos do passado como uma colcha de
delírio. Tu ouviste calada e no final
disseste. Acabou, menino, passou, esqueça.
Com um sorriso didático e nada teu.
 


Com um ar preocupado, consultaste teu
relógio e foste embora, sem um adeus,
pisando nas nuvens num passo curto
e ligeiro. Eu via uma pessoa mas era
outra pessoa. No quarto imóvel da
pensão barata, a réstia de luz desenhava
preguiçosamente as horas diminutas do
final da tarde, recorrente indiferença
de todos os dias. Sinete azul da eternidade.
 

 

 

Inocência, foto de Marcus Prado

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Barros Pinho

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Tintoretto, Criação dos animais

 

 

 

 

 

Ildásio Tavares


 

Nossa Senhora dos Pecados


Não a vós adoro,
Nossa Senhora dos Pecados
mas aos meus pecados.
Por eles vos tive; e neles.
Por eles vos vi em Rafael.
                         Murilo
                         Angélico
                         Tintoretto,
nos vossos braços um menino lascivo.
Nossa Senhora dos Pecados sois;
dos meus pecados sois
os meus pecados sois
     meus
     sois.
 

 

 

Albrecht Dürer, Mãos

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Lilian Mail

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jornal de Filosofia

 

 

 

 

 

Ildásio Tavares


 

Ode ao silêncio


Vesti o silêncio com teu rosto.
 


Na passagem das horas,
fiquei menos só;
fiquei mais triste.
 


Somente ao construir
a tua ausência
é que pude entender
de que consiste.
 


Não me importa o que tu
és ou não és,
mas o que tanto foste
e que persiste,
 


ornamentado o silencio.
 


As palavras te recriam
do fundo irretocável do passado
como uma silhueta móvel.
 

 

 

John William Waterhouse , 1849-1917 -The Lady of Shalott

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Roberto Pires

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ingres, 1780-1867, La Grande Odalisque

 

 

 

 

Ildásio Tavares


 

Canção da menina da Clínica Botafogo


Há uma menina de pé,
lá em cima na sacada
da Clinica Botafogo;
fita a distância, parada,
sem saber o que fitar.
Não há lua , não há nada,
nem o mar em reflexão,
sozinha em pe, no silêncio,
não tem pressa, não tem rumo,
somente fita o vazio
da distancia que não vê.
 


Que serão seus pensamentos?
Eu não sei mas sei dos meus,
quando olho para a moça,
tão bonita, tão parada,
de pé ali na escada,
fitando o longe vazio.
 


Eu penso. daqui de baixo ,
não posso chamar por ela.
Ela é jovem, é bonita,
mas não possui a cabeça
que a tem bem possuída
por um médico qualquer.
 


Passo, pensando na rua,
a emoção de ver a moça,
de saber que, longe dela,
está seu tempo e memória
e que a sacada é seu mundo
o seu pequeno universo.
Me sinto isolado e triste
passando lá pela rua,e levando nos meus olhos
a fixidez de seus olhos,
perdidos, mortos, vazios
como os olhos arredios
das mulheres de Del Vaux.
 


Às vezes chego a pensar
que sou eu e não é ela
que está na minha janela,
imaginando seu vulto –
eu, no meu apartamento,
ela no meu pensamento;
os dois no mesmo tumulto.
 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), João Batista

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Ivo Barroso, 2003