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Ivan Junqueira


 

Esse punhado de ossos
A Moacyr Félix


Esse punhado de ossos que, na areia,
alveja e estala à luz do sol a pino
moveu-se outrora, esguio e bailarino,
como se move o sangue numa veia.
Moveu-se em vão, talvez, porque o destino
lhe foi hostil e, astuto, em sua teia
bebeu-lhe o vinho e devorou-lhe à ceia
o que havia de raro
adunco do assassino,
nas úlceras do mendigo,
na voz melíflua do bispo,
no martírio dos suicidas,
na mão crispada das vítimas,
na forca e na Guilhotina,
no sangue sobre o patíbulo,
no sexo do hermafrodita,
no ventre da meretriz
que deu à luz uma harpia,
nas bestas do Apocalipse,
no selo que foi rompido,
nas trombetas do Juízo,
no êxtase mudo dos místicos,
na agonia dos epígonos,
no corvo que bica as vísceras
de alguém cujo sacrifício
vale tanto quanto a epígrafe
de uma página vazia.
Paz, enfim, até no ríctus
que torce a boca do Cristo.


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, Venus Presenting  Arms to Aeneas

 

 

 

 

 

Ivan Junqueira


 

Talvez o vento saiba


Talvez o vento saiba dos meus passos,
das sendas que os meus pés já não abordam,
das ondas cujas cristas não transbordam
senão o sal que escorre dos meus braços.
As sereias que ouvi não mais acordam
à cálida pressão dos meus abraços,
e o que a infância teceu entre sargaços
as agulhas do tempo já não bordam.

Só vejo sobre a areia vagos traços
de tudo o que meus olhos mal recordam
e os dentes, por inúteis, não concordam
sequer em mastigar como bagaços.

Talvez se lembre o vento desses laços
que a dura mão de Deus fez em pedaços.

 

 

 

Um esboço de Da Vinci

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Poussin, The Exposition of Moses

 

 

 

 

 

Ivan Junqueira


 

Palimpsesto
A Antônio Carlos Secchin


Eu vi um sábio numa esfera,
os olhos postos sobre os dédalos
de um hermético palimpsesto,
tatear as letras e as hipérboles
de um antiqüíssimo alfabeto.
Sob a grafia seca e austera
algo aflorava, mais secreto,
por entre grifos e quimeras,
como se um código babélico
em suas runas contivesse
tudo o que ali, durante séculos,
houvesse escrito a mão terrestre.

Sabia o sábio que o mistério
jamais emerge à flor da pele;
por isso, aos poucos, a epiderme
daquele códice amarelo
ia arrancando como pétalas
e, por debaixo, outros arquétipos
se articulavam, claras vértebras
de um esqueleto mais completo.
Sabia mais: que o que se escreve,
com a sinistra ou com a destra,
uma outra mão o faz na véspera,
e que o artista, em sua inépcia,
somente o crê quando o reescreve.
Depois tangeu, em tom profético:
"Nunca busqueis nessa odisséia
senão o anzol daquele nexo
que fisga o presente e o pretérito
entre os corais do palimpsesto."
E para espanto de um intérprete
que lhe bebia o mel do verbo,
pôs-se a brincar, dentro da esfera,
com duendes, górgonas e insetos.

 

 

 

Herbert Draper (British, 1864-1920), A water baby

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Fernando Py

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Triumph of Neptune

 

 

 

 

 

Ivan Junqueira



Sagração dos Ossos
A Bruno Tolentino


Considerai estes ossos
— tíbios, inúteis, apócrifos —
que sob a lápide dormem
sem prédica que os conforte.

Considerai: é o que sobra
de quem lhes serviu de invólucro
e agora já não se move
entre as tábuas do sarcófago.

Dormem sem túnica ou toga
e, quando muito, um lençol
lhes cobre as partes mais nobres
(as outras quedam-se à mostra,

não dos que estão aqui fora,
mas dos ácidos que os roem
ou do lodo que lhes molha
até a polpa esponjosa).

De quem foram tais despojos
tão nulos e sem memória,
tão sinistros quanto inglórios
em seu mutismo hiperbólico?

Onde andaram? Em que solo
deitaram sêmen e prole?
Foram químicos, astrólogos,
remendões, físicos, biólogos?

Ou nada foram? Que importa
não haja um só microscópio
lhes cevado a magra forma
ou a mais ínfima nódoa?

Existiram. Esse é o tópico
que aqui, afinal, se aborda.
E eis o faço porque, ao toque
de meus dedos em seus bordos,

tais ossos como que imploram
a mim que os chore e os recorde,
que jamais os deixe à corda
da solidão que os enforca,

nem à sanha do antropólogo
que os vê, não como o espólio
do que foi amor ou ódio,
lascívia, miséria e glória,

mas como a lívida prova
de que o sonho foi-se embora
e dele só resta a escória
numa urna museológica.

E então me pergunto, a sós:
por que desdenhar o outrora
se nele é que ecoa a voz
do que, no futuro, aflora?

Não bastaria uma rótula
para atestar esse cogito,
ergo sum, aqui e agora,
alheio a qualquer prosódia

ou língua em que se desdobre
essa falácia que aposta
no fundo abismo sem orlas
entre o que vive e o que morre?

Baixa uma névoa viscosa
sobre as pálpebras da aurora.
E ali, de pé, sob a estola
de um macabro sacerdote,

sagro estes ossos que, póstumos,
recusam-se à própria sorte,
como a dizer-me nos olhos:
a vida é maior que a morte.

 

 

 

Leonardo da Vinci,  Study of hands

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Dalila Teles Veras

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Delaroche, Hemiciclo da Escola de Belas Artes

 

 

 

 

 

Ivan Junqueira


 


Rio, 12.4.1996

Prezado Soares Feitosa

Na verdade, esta carta já estava escrita desde princípios de novembro do ano passado, mas, nesse torvelinho em que às vezes se transforma a nossa vida, perdi a sua, ou seja, aquela que me chegou às mãos juntamente com o seu belo livro artesanal.

Seu fax despertou-me do esquecimento, e pedi então seu endereço ao Alcides Pinto. Enfim, espero que a carta, com esse imperdoável atraso, lhe alcance aí em Salvador.

A poesia de Psi, a Penúltima, amiúde intensamente experimental, causou-me boa impressão pelo viço e a audácia não apenas das imagens, mas sobretudo por sua estrutura.

Bastaria um poema como “Panos Passados” para justificar a publicação em livro dos versos que inervam todo o seu ciclópico estro poético, esse estro no bojo do qual, como v. mesmo admite, afloram a cada passo as vertentes heróica, telúrica e lírica.

Em troca estou enviando um exemplar de meu último volume de versos, A Sagração dos Ossos, que, para meu espanto, tantos prêmios e alegrias me rendeu. Perdoe mais uma vez o atraso em responder-lhe e receba um afetuoso abraço do seu

Ivan Junqueira

 

 

 

Ticiano, Magdalena

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Aleilton Fonseca