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José Nascimento Félix


 

Perpetuum


sereno e lábil o teu corpo cede
à fragilidade do sol.
os dedos tocam leve a flor da água
brincando com a sombra
no espelho do crepúsculo.
uma brisa penteia os teus cabelos
levando o cheiro solto
para a raiz das pedras.


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

 

 

 

 

 

José Nascimento Félix


 

Milhafres


rapaces, os milhafres roubam-me
os olhos no delírio do sonho.
levam-mos para os montes impossíveis
onde os deuses, em brincadeiras de água,
espetam estiletes de desejo
na loucura do naufrágio.

é simples a memória da substância
e quimera, no banho imaginário
dança na pantomina doutro tempo
com as asas presas na lava do vulcão.

o magma preso numa simples brisa.


 

 

 

William Blake, Death on a Pale Horse

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Carmen Rocha

 

 

 

 

 

 

 

John Martin (British, 1789-1854), The Seventh Plague of Egypt

 

 

 

 

 

José Nascimento Félix


 

Tchaikovski
Sinfonia nº 6 em Si Menor, Op.74 - “Patética”


a agonia é a surpresa dos caminhos
imperfeitos. por que rumos, por que
rotas vão os meus passos ambulantes?
as árvores – a terra da alegria,
ó rui belo! – há muito que lhes apodreceram os frutos,
e a seiva resguarda-se ou esconde-
-se na margem dos troncos, no aumento
da sede substantiva.
aparta-se o meu corpo fruto, aperta o meu corpo árvore.
decúbito regresso à primeira água.
acordam os faunos, despertam os sátiros,
bebem a água dos deuses e das ninfas;
envenenam o chão, abraçam-se na
lascívia do trovão cantando coros
impossíveis. despedaçam-se ramos
desfazem-se as copas e uma tropa
pândega delicia-se com os seus filhos.
há luz que já não parece luz e
a escuridão é o refúgio do
sopro ferido. as flores iluminam-se
retendo réstias, linhas de sorriso.

a cidade brinca na água os olhos
dos habitantes. uma felicidade
rústica corre pelas avenidas
dos amantes sem hora, na bebedeira
límpida, rezando promessas que
se perdem na tempestade. a bondade
adolescente prende-se ao sol da tarde
e sobre a sombra dos navios, ao longe,
o eco descansa a voz no horizonte de bruma.

um baile de folhas vem com o vento. os
frutos maduros cheiram a todas as árvores
e um céu de cores explode iluminando
os caminhos apostólicamente.
a boa-nova voa com os cavalos com asas
rasando os cumes e as copas.
o peito tem a largura da alegria
e os dedos caem com o peso da esperança.

inquilinos, os fantasmas descobrem os lábios.
bocas de fogo têm línguas que bebem
o tronco, a mátria da seiva
a radícula genealógica do pomo,
e morta, a árvore deixa no chão, submersa,
uma ferida com pequenos caules frágeis
que resistem aos passos na carícia dos vermes.


josé félix in a casa submersa
(inédito) 2005.10.06

 

 

 

Rafael, Escola de Atenas, detalhes

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Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Bathsheba

 

 

 

 

 

José Nascimento Félix


 

Auri Sacra Fames


viver um dia com normalidade
é ter o olhar cubista, no sentido
que picasso lhe dá. é que são várias
as formas de rever os dias idos.
o olhar é feito sempre de passados.
o tempo é longo na serenidade.
ver multifacetadamente os dias
sem adjectivos é o poder dos fracos,
e os outros, bem, os outros não se importam
com a substância temporal da vida.
carpe diem já o disse horácio
nas odes. mas virgílio, cidadão,
conhecendo pois da fatalidade
de roma e que do mar viria eneias,
sabia bem que da fome execrável
do ouro também se vive cada dia.
a mim basta-me o olhar sem mais palavras
do indivíduo ou de uma multidão
a tentar augurar o seu futuro
enquanto os corvos grasnam sobre os restos
do império apodrecido pelos séculos.



josé félix, Quatro Poetas da Net, Edições Sete Sílabas, Lisboa, 2002

 

 

 

Michelangelo, 1475-1564, David, detalhe

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Maria de Lourdes Hortas

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Consummatum est Jerusalem

 

 

 

 

 

José Nascimento Félix


 

A semente possível


tenho a luz na algibeira
e restos de um país em construção.
na areia as estrelas morrem cegas
enquanto desenho sonhos
na infância longínqua.
há sempre uma fala de búzios
possível na linha de água
com os peixes e os segredos das escamas
em conciliábulos de sombras
onde um feixe de luz sussurra
a nítida claridade.


josé félix in o outro lado da fala

 

 

 

Ticiano, Magdalena

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Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904)

 

 

 

 

 

José Nascimento Félix


 

Os meus ossos

ao Ivan Junqueira


trabalho os ossos na vil paciência
de quem ainda tem caminho certo
requeiro a um e a outro a tal licença
pra se mover na vida o rumo incerto.
conforme a vida vai , e a mudança
dos ossos, soltos, e por fim liberto,
não choro o rosto dos que são usança
dos néscios fazendo dos seus protesto.
é nas ossadas que se mente a história
e se inventa a memória que não é
dos fracos, e se canta toda a glória
da vida nunca solta da ralé.
os ossos são só meus, de mais ninguém.
ninguém os cante nem sirvam a alguém.


2006.05.01

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), The Pipelighter

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Renata Palottini

 

 

02/05/2006