Kátia Drummond
Depoimentos sobre a autora e a obra:
1. Por Carlos Anísio Melhor
Especialista em Literatura (UFBA). Escritor e
Poeta.
Nos poemas de Kátia Mattos Drummond o tempo flui sobre o leito do
ser: como o rio de nossa infância, como a brisa nos cabelos
adolescentes, a leve umidade do amanhecer e minúsculos gafanhotos.
Ou velhas árvores, ninho matinal de vozes. E, à noite, o tácito
silêncio das estrelas. Perpassa nele todo o ritmo da infância - o
paraíso perdido do nunca mais.
Assim, Kátia Drummond surpreende o Tempo em sua mágica singeleza:
Com meus cabelos de milho
e meu corpo de algodão
no meu tempo de criança
eu era que nem o vento
e atravessava o tempo
sem tirar os pés do chão.
Vê-se que a infância no texto poético é aquela pátria perdida de que
fala Novalis (A infância é a pátria da alma). O tempo da infância
desdobra-se em a lucidez com que ela fala no Homem e Natureza, como
um prolongamento natural advindo no processo da reflexão consciente,
quando se instala a maturidade. Kátia Drummond, é de bom aviso, não
se perde em partidarismos ideológicos, via ecologismos, quando o
verde por mera denúncia se divorcia do homem numa visão estetizante.
Homem e Natureza fundem-se organicamente em uma unidade totalizadora
e holística. Nada existe separado. Tudo participa do tudo. São os
campos virgens, antes do parto sanguíneo da madrugada, com flores de
apenas luz ou águas núncias da liberdade no espontâneo correr.
Jardins e quintais cúmplices de namorados. Impossível é retornar-se
ao tempo da infância:
Quando a última flor
do último jardim morrer
beija-me, beija-flor
que eu vou virar um jardim
cheio de flor pra você.
Navega sem porto a lucidez poética de Kátia Drummond: sagra então
novas ilhas. A região da nudez total do Zen. O vazio pleno. Vê com
olhos limpos as coisas tais quais elas são, sem mancha alguma de
humano: planta luminosa que floresce na noite dos sentidos. Assim a
autora capta num rapto, no êxtase, o real verdadeiro, a talidade, e,
"por cause", densamente poético:
Eu vi a menina
no meio do mato
olhar para um lado
olhar para o outro
tirar a calcinha
e sem-vergoinha
bem abaixadinha
fazer cocozinho.
Um mestre Zen não assinaria porque é Zen.
Carlos Anísio Melhor.
Salvador, Bahia, Brasil.
2. Por Edilene Mattos
Acadêmica. Escritora. Pesquisadora. Doutora,
especialista em Literatura Brasileira (UFBA/USP).
A natureza ainda não se recolheu e o vento insiste em regressar em
pleno verão. As janelas tremem, o outono já deveria ter chegado?
Não, ainda é cedo. É preciso aproveitar a presença (mesmo
imaginária) do sol para escrever sobre a luminoso e tão simples
conto-poesia de Kátia Drummond.
Leio, releio, e sinto uma espécie de sossego que já não se usa mais.
Uma doçura inefável! Ah! Este ardoroso texto, esta paixão feita de
fatos que podem ser considerados até banais, mas onde se dá a
experimentação da alegria e da tristeza - a hora exata do jogo das
alegorias.
Ao abrir seu arquivo - Paris - a autora retira dele prazeres e
sofrimentos, e assim faz todas as coisas passarem pelo coração.
Codificando de imediato seu universo, faz da palavra um aprendizado
feérico, sem desperdício. É, pois, do reencontro com o mundo, mas
sob o influxo da imaginação criadora, da lucidez e do delírio, da
razão e da desrazão, que nasce a criação de Kátia Drummond.
Sábia, Kátia entende muito bem o poder do discurso vivo. Sábia,
Kátia percebe o fascínio da palavra. Porque a palavra é seu
principal instrumento. Essa palavra que é, em verdade, um mediador
entre a mulher (que conta/canta/encanta) e sua experiência.
Kátia Drummond, mulher do seu tempo, e dos que virão, é um estado de
inspiração permanente, sempre vigilante e atenta aos pormenores.
Tudo o que imaginou, sentiu, sonhou, ganha força através de uma
consciência "ingênua" que não é guiada pelo intelecto: "Não vem do
intelecto/ Vem da alma/ Não vem dos livros/ Vem do coração." E os
fantásticos relatos de onírica realidade abrigam a experimentação do
real pelo conto em forma de poesia, que pode soar estranha, porque a
experimentação representada tornará sempre perceptível uma dupla
realidade: subjetiva e objetiva.
Aprender a viver é que é viver mesmo, dizia J.G.Rosa. A autora
captou muito bem esta lição do mestre e traz à tona o mundo lúdico
de vivências ricamente acumuladas no plano do sentimento, capaz até
de provocar suspiros de saudades do tempo vivido, capaz de manter
intocável o momento atual e capaz de fazer revelações de um tempo
que virá: "Eu poetizo e conto a vida sem limites."
Narcisicamente, Katia sai de seu casulo, olha-se ao espelho,
desnuda-se, reflete-se e encontra-se em Paris, identificando-se com
a cidade dos seu sonhos, metamorfoseando, graças a sua sensibilidade
aguçada para a captação do sentimento, essa emoção cristalizada, que
é a fonte geratriz do seu texto.
Lúcida e lúdica, Kátia Drummond cria um espaço, e não por acaso, de
encontro e similaridade entre essas qualidades nem sempre tão
próximas. Coladas, aliadas, a consciência e o jogo marcam presença
em seu fazer poético, onde o social e o individual reclamam sempre
para si o sentimento do mundo. E aqui, Paris, é seu principal e
apaixonado representante.
Edilene Mattos.
São Paulo, SP, Brasil.
|