Kátia Drummond
RÉQUIEM PARA UM AMOR
Desde o momento em que eu te vi morrendo,
apercebi-me: estava te perdendo.
Olhei pro tempo, andei léguas pra trás.
A vida veio inteira em minha mente.
Um filme surrealista, tocha ardente,
como um vulcão, uma fera voraz.
Desejei ser a autora do destino.
Vi-me menina, como o Deus Menino,
nos braços da Senhora Mãe donzela.
Ou era uma criança na janela,
olhando os “mascarados” na avenida,
todos querendo se esconder da vida.
A vida, então, pra mim era um brinquedo,
eu não entendia porque tanto medo.
O mesmo medo que me assombra agora,
ao ver você saindo do teu corpo.
Espírito de luz num corpo morto,
querer ficar, mas tendo que ir embora.
A dor maior era te ver calada,
sangrando a vida em plena madrugada.
Vi-me sozinha. Não entendi mais nada.
E a morte veio como erva daninha,
matando tudo. E eu ali, parada.
Que gosto amargo, que cansaço imenso.
Você virando um anjo em minha frente.
Deixando de ser mãe e de ser gente,
agonizando no extertor final.
Que sensação sinistra, ver teu funeral!
Loucura, ver a terra te cobrindo,
e eu te pedindo pra não ir embora.
Rezando, mesmo sem saber rezar,
buscando alguma força pra me dar.
Vi Deus virar Diabo aquela hora!
A casa parecia um templo antigo,
mal assombrado, sem qualquer amigo.
Uma cena delirante, teatral.
E eu fui me dando conta, de repente,
que eu já não era eu, eu era alguém.
Sem pai, sem mãe, um animal sem vida.
Um cão lambendo a própria ferida.
Sentei no chão, chorei amargamente.
E desejei ser terra e ser semente.
Fazer você voltar, sobrevivente.
Você saiu de mim como uma ladra.
Silenciosa, cabisbaixa, errante.
E me deixou sozinha e desarmada,
como uma marginal principiante.
Você roubou meus últimos brinquedos.
Você levou todos os meus segredos.
O meu maiô de elástico vermelho.
O meu batom, o meu primeiro espelho.
A bicicleta, o álbum de retratos.
Meus quinze anos, meus sapatos altos.
Meus carnavais e minhas fantasias.
A minha serpentina, o meu confete.
O meu Colégio Santa Bernadete,
minhas colegas, minhas alegrias.
Levou minhas cigarras, meus oitis,
a minha Madragoa, os bem-te-vis.
Levou minha Avenida Beira-Mar.
Levou Jauá, levou meus veraneios,
o barco de painho e meus passeios.
Levou meu São João, meu milho verde.
Meus doces sobre a mesa, meus natais.
O meu acordeon, o meu piano,
os meus concertos e os meus festivais.
Me diga mãe, o que é que eu faço agora,
se sem você eu já nem sonho mais?
Você me levou tudo mãe, até minh’alma!
Em que ternura eu vou buscar a calma?
Em que calor eu vou guardar meu frio,
se até meu coração ficou vazio?
Em qual abraço eu vou guardar meus medos,
se hoje estou em todos os degredos,
se fui deixada ao sabor do vento,
amargurando a cara do meu tempo,
mortificando a dor todo o momento?
Responda, mãe, de onde estás agora.
Dê-me o sinal que eu te pedi outrora.
Se não existe nada além da morte,
entrego a minha vida à própria sorte.
Responda mãe, o que eu pedi um dia,
em nome da esperança que eu perdi,
em nome do poeta e da poesia.
Por cada ideal, cada utopia,
faça os meus versos ter algum sentido,
faça vibrar o eco universal.
Atenda mãe, meu último pedido.
Responda mãe, num gesto maternal.
Valeu ou não, um dia ter nascido?
Valeu ou não, um dia ter vivido?
A morte é o começo, o meio ou o final?
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