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Kátia Drummond


 

VIDA INTEGRAL

Para Sávio, meu filho.


Você é flor de açucena
Planta verde de quintal
Filhote de passarinho
Cigarra no mangueiral
Peixe de fundo de rio
Mel de abelha mandaçaia
Beija-flor no milharal.

Você tem cheiro de campo
Brilho de sol no trigal
Gosto de caldo-de-cana
Cheiro de flor matinal
Você é meu passarinho
É meu cavalo-marinho
É meu mundo vegetal.

Quero ver você crescer
Como cresce a esperança
E ver você renascer
No seu jeito de criança
Transformar a vida inteira
Água, terra, fogo e ar
Quero ver você viver
Quero ver você brilhar.


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Alessandro Allori, 1535-1607, Vênus e Cupido

 

 

 

 

 

Kátia Drummond


 

BRISA

Para Brisa, minha doce filha.


Você acorda cantando,
como faz o passarinho,
anunciando a chegada
do dia, devagarinho.
O sol chega e você cala.
E pra ouvir a sua voz,
desenho o sol indo embora,
faço outra lua lá fora,
desenho mil rouxinóis.
Amanhece de mansinho
e o sol brilha novamente.
Parece que a terra inteira
está brotando de repente.
O mato cheira mais forte,
a chuva cai levemente,
os carneirinhos no céu
viram flores, viram gente.
Lá vai o dia indo embora,
seguindo pra outro lugar.
A mansa noite lá fora
está começando a chegar.
Enquanto você descansa
do seu dia de aprendiz,
eu desenho outra esperança
onde você é criança,
onde você é atriz.


 

 

 

Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

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Donizete Galvão

 

 

 

 

 

 

 

Thomas Colle,  The Return, 1837

 

 

 

 

 

Kátia Drummond


 

ENQUANTO ANA TERRA NÃO VEM


Já vivi a intensidade exaustiva dos retiros.
Recitei todas as preces e tomei todos os votos.
Jejuei em busca de sanar as dores deste mundo.
Não matei, não roubei, não menti.
Cometi virtudes, purifiquei o corpo e a alma.
Realizei sonhos e multipliquei amores.
Convivi com todos os seres vivos e mortos.
Só não amei a Deus sobre todas as coisas.

Agora, resta-me estirar a rede na varanda,
acender a lua, deitar e sonhar.

Enquanto Ana Terra não acende o sol.


 

 

 

A menina afegã, de Steve McCurry

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Luís Manoel Paes Siqueira

 

 

 

 

 

 

 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Antigona,detail

 

 

 

 

 

Kátia Drummond


 

MAINHA


Quando eu era criança, ainda me lembro,
menina da rua, fugaz andorinha,
eu via os homens entrando e saindo.
Malditos ladrões. E perversos bandidos.
Querendo prazeres, todos mal vividos,
buscavam o corpo da minha mainha.
Na mesma alcova. Bem onde eu dormia,
sem cama e coberta. Deitada no chão.
No colo onde eu jamais me deitaria.
Na casa que eu pensava que era minha.

Alguns davam doces. E outros, brinquedos.
Pequenas bonecas vestidas de trapos.
E eu, curiosa, pensava comigo:
Por que tantos homens entrando e saindo?
O que é que eles fazem? Parecem farrapos!
Às vezes ficava quietinha, espiando.
Nas pontas dos pés. Infeliz bailarina.
Sem mesmo saber que ali, do outro lado,
mainha traçava pra mim minha sina.

Aquela mulher, já exausta da lida,
chorava baixinho pra ninguém ouvir.
E eu já crescida, menina perdida,
fui vendo em meu corpo o preço da vida.
Odiei os homens. Desejei partir.
Pensei em tirar a mainha da luta.
Mas ela me olhava e com raiva dizia,
gritando aos brados, no maior desdém:
"Se manda daqui. Vai, menina vadia.
Que filha de puta, é puta também."


 

 

 

Ruth, by Francesco Hayez

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Ademir Demarchi

 

 

 

 

 

 

 

John Martin (British, 1789-1854), The Seventh Plague of Egypt

 

 

 

 

 

Kátia Drummond


 

AOS MEUS FILHOS

Com a utópica inocência dos sonhadores.


Que seja a nossa casa o nosso templo,
onde se faça o amor e a poesia.
E onde seja eterna a esperança
de ter sempre o pão fresco a cada dia.

Que não nos falte nunca a inocência.
E que nos seja dada a consciência
de que nascemos da mesma semente
e de que todos são iguais a gente.

E que de manhã cedo Sávio cante.
Enquanto Brisa, livre a caminhar,
entoe, com sua voz meiga e constante,
as notas que anunciem, por instante,
todo o talento de André Bernard.

Que juntos trabalhemos pelo trigo
que nós dividiremos com o amigo.
Pois que o amigo sempre chegará,
em busca do amor e do abrigo.

Será que é tão difícil esse meu sonho
ou eu já nem preciso mais sonhar?
É aqui que nós devemos ser felizes.
Que seja a nossa casa o nosso templo.
E o nosso templo todos os países,
que a gente leva pra qualquer lugar.


 

 

 

Albrecht Dürer, Germany, Study of praying hands

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Ronaldo Costa Fernandes

 

 

 

 

 

 

 

Andreas Achenbach, Germany (1815 - 1910), A Fishing Boat

 

 

 

 

 

Kátia Drummond


 

MÃE


Esta vida que me deste, eu não a entendo.
Busco encontrar explicações, a esmo.
Não há qualquer vestígio. Só suspeitas.
Uma razão sequer. Procuro em vão.
Quando partires, se me antecederes,
dá-me um sinal de vida, qualquer toque.
Compreenderei quem sabe, então,
essa amargura de vir e ir,
assim, sem mais nem menos.
Como um inseto trôpego,
um verme, um cão.


 

 

 

Um cronômetro para piscinas

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Alvaro Seiça Neves

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Venus with Organist and Cupid

 

 

 

 

 

Kátia Drummond


 

A MORTE

Para a mãe moribunda.


Em minha mãe, eu vejo a morte algoz.
Fera feroz a arrancar-lhe a vida.
Impiedosa. Voraz. Avidamente.
E vejo a vida conquistar o tempo,
com sua ambição transformadora.
Uma corrida sôfrega, demente.

Nessa luta da vida contra a morte,
tento entender a força da grandeza.
Procuro a essência, a arma destruidora.
E acalmo o ódio que precede a fúria,
quando a derrota é ameaçadora.

Pra que contrariar a natureza,
se a morte é sempre a grande vencedora?


 

 

 

Michelangelo, Pietá

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Sérgio Sant'Anna

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Plaza de toros

 

 

 

 

 

Kátia Drummond


 

RÉQUIEM PARA UM AMOR


Desde o momento em que eu te vi morrendo,
apercebi-me: estava te perdendo.
Olhei pro tempo, andei léguas pra trás.
A vida veio inteira em minha mente.
Um filme surrealista, tocha ardente,
como um vulcão, uma fera voraz.
Desejei ser a autora do destino.
Vi-me menina, como o Deus Menino,
nos braços da Senhora Mãe donzela.
Ou era uma criança na janela,
olhando os “mascarados” na avenida,
todos querendo se esconder da vida.

A vida, então, pra mim era um brinquedo,
eu não entendia porque tanto medo.
O mesmo medo que me assombra agora,
ao ver você saindo do teu corpo.
Espírito de luz num corpo morto,
querer ficar, mas tendo que ir embora.
A dor maior era te ver calada,
sangrando a vida em plena madrugada.
Vi-me sozinha. Não entendi mais nada.
E a morte veio como erva daninha,
matando tudo. E eu ali, parada.

Que gosto amargo, que cansaço imenso.
Você virando um anjo em minha frente.
Deixando de ser mãe e de ser gente,
agonizando no extertor final.
Que sensação sinistra, ver teu funeral!
Loucura, ver a terra te cobrindo,
e eu te pedindo pra não ir embora.
Rezando, mesmo sem saber rezar,
buscando alguma força pra me dar.
Vi Deus virar Diabo aquela hora!

A casa parecia um templo antigo,
mal assombrado, sem qualquer amigo.
Uma cena delirante, teatral.
E eu fui me dando conta, de repente,
que eu já não era eu, eu era alguém.
Sem pai, sem mãe, um animal sem vida.
Um cão lambendo a própria ferida.
Sentei no chão, chorei amargamente.
E desejei ser terra e ser semente.
Fazer você voltar, sobrevivente.

Você saiu de mim como uma ladra.
Silenciosa, cabisbaixa, errante.
E me deixou sozinha e desarmada,
como uma marginal principiante.
Você roubou meus últimos brinquedos.
Você levou todos os meus segredos.
O meu maiô de elástico vermelho.
O meu batom, o meu primeiro espelho.
A bicicleta, o álbum de retratos.
Meus quinze anos, meus sapatos altos.
Meus carnavais e minhas fantasias.
A minha serpentina, o meu confete.
O meu Colégio Santa Bernadete,
minhas colegas, minhas alegrias.

Levou minhas cigarras, meus oitis,
a minha Madragoa, os bem-te-vis.
Levou minha Avenida Beira-Mar.
Levou Jauá, levou meus veraneios,
o barco de painho e meus passeios.
Levou meu São João, meu milho verde.
Meus doces sobre a mesa, meus natais.
O meu acordeon, o meu piano,
os meus concertos e os meus festivais.
Me diga mãe, o que é que eu faço agora,
se sem você eu já nem sonho mais?

Você me levou tudo mãe, até minh’alma!
Em que ternura eu vou buscar a calma?
Em que calor eu vou guardar meu frio,
se até meu coração ficou vazio?
Em qual abraço eu vou guardar meus medos,
se hoje estou em todos os degredos,
se fui deixada ao sabor do vento,
amargurando a cara do meu tempo,
mortificando a dor todo o momento?

Responda, mãe, de onde estás agora.
Dê-me o sinal que eu te pedi outrora.
Se não existe nada além da morte,
entrego a minha vida à própria sorte.
Responda mãe, o que eu pedi um dia,
em nome da esperança que eu perdi,
em nome do poeta e da poesia.
Por cada ideal, cada utopia,
faça os meus versos ter algum sentido,
faça vibrar o eco universal.
Atenda mãe, meu último pedido.
Responda mãe, num gesto maternal.
Valeu ou não, um dia ter nascido?
Valeu ou não, um dia ter vivido?
A morte é o começo, o meio ou o final?


 

 

 

Um esboço de Da Vinci

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03/05/2006