Claudio Willer
Mar de de Dentro
Em um dos poemas deste Mar de
Dentro, há uma ilha submarina. Trata-se de algo
impossível conforme nossos parâmetros e categorias de conhecimento,
pois uma ilha submersa simplesmente não é ilha, deixa de ser o que
é. Quatro versos antes, é ilha continente, outra
impossibilidade: ou haveria um continente, ou então uma ilha. São
locuções contraditórias, e sua autora sabe muito bem disso: entre
uma e outra dessas imagens, menciona o segredo guardado/ no mais
perfeito oxímoro – valendo lembrar que os oxímoros são as
junções de antagonismos, de entidades contraditórias e fisicamente
ou logicamente impossíveis, a exemplo de ‘calor do gelo’ ou
‘escuridão do sol’.
E assim, nesta estréia em livro,
depois de já haver comparecido como autora em boas antologias e
premiações, Lilian Gattaz vai desafiando o princípio da identidade e
não-contradição, que é o fundamento da lógica e da interpretação do
real na tradição ocidental desde Parmênides e Aristóteles. Não sofre
do que Octavio Paz, em O Arco e a Lira, denomina de horror
ao “outro”, ao que é e não é ao mesmo tempo, ao observar que,
enquanto o mundo ocidental é o do “isto ou aquilo”, o
oriental permite-se afirmar, sem reticências o princípio da
identidade dos contrários. Exemplifica com esta passagem de um
antigo upanishada: “Tu és mulher. Tu és homem. És o rapaz e
também a donzela. Tu, como um velho, te apóias num cajado... Tu és o
pássaro azul-escuro e o verde de olhos vermelhos... Tu és as
estações e os mares.”
Trechos como este, e tantos outros, de
relatos míticos, livros sagrados de outras civilizações e poemas
contemporâneos, reiteram – ainda citando Paz – que a
oposição entre isto e aquilo é, simultaneamente, relativa e
necessária, mas que há um momento em que cessa a inimizade entre os
termos que nos pareciam excludentes.
Em sua poesia, Lilian Gattaz aspira a
não menos que isto: à superação das antinomias, ultrapassando
limites e chegando à liberdade plena: tu que me vês liberta;
e, nessa condição, sem tempo ou espaço sem roteiro/ sem segredos
ou filosofias. Por chocar-se com o real imediato, a busca de
superação das antinomias por vezes se expressa em um registro
dramático, como em Santo Seio: trago em meu peito/
uma agonia de último trago/ – a do último gole é a que trago
– / o desassossego de fundo de cálice/ em todos os gritos
calados; ou, em poemas como Desafeto I e Ruptura da
Estrutura, no modo irônico. Já em outras passagens, a poeta
percorre, volante versátil de passagem, um mundo antropomorfo
e sensual, sua ilha subjetiva. Vai nos oferecendo
representações do corpo como mundo, microcosmo de todas as coisas
existentes no universo: tu que me sabes toda/ que me vês
estradas/ pontes cruzadas/ abismos/ valas vales recibos, pois
sou sonhos sonhados – e assim vai abrindo um amplo leque de
possibilidades expressivas, um infinito no qual o sol se pôs em
mim/ e geramos a noite, e que contém o mar de dentro.
Muito desta série de poemas poderia
ser musicado, por seus evidentes valores prosódicos – mas a poesia
de Lilian Gattaz já é música: arranca do meu corpo já tocado/ o
som que esse meu corpo possa ter. Esses sons geram novos
sentidos através de permutas, pois, textualmente, escrevo porque
escrava da palavra: de um modo pessoal, assim parafraseia a
conhecida afirmação de Octavio Paz, O poeta não se serve das
palavras: é o seu servidor.
Poetas não usam a linguagem para
finalidades instrumentais, a serviço do útil, mas a respeitam;
querem-na plena. Os procedimentos de Lilian Gattaz, ao valer-se de
correspondências sonoras, permutações, recomposições anagramáticas
que geram duplos sentidos e subentendidos – e se a clareza do
marfim te polariza/ paralisa esse teu toque simplesmente –
correspondem ao que o ensaísta português António Cândido Franco, no
esclarecedor Poesia Oculta, chama de cabala fonética,
entendida como expressão do rumor subliminar, fonético mas também
semântico, que subjaz como diferença, alteridade e ocultamento.
Pertencem à ordem desse rumor subliminar, transmitido através
da poesia, as vozes que se ouve na ilha ao mesmo tempo submersa e
continental do Mar de Dentro. São os alicerces da construção
de uma nova linguagem – nova, e também arcaica, uma linguagem
verbal (novamente citando Poesia Oculta) em que a
palavra deixa de estar associada às práticas sociais secularizadas,
[...] para passar a estar associada a um poder mágico, refundador
imediato da realidade.
Essas vozes também correspondem
aos sons de uma festa, convidando o leitor à celebração da
conciliação entre linguagem e corpo através da poesia: sento-me à
mesa do teu corpo vinho. Caberia como epígrafe de Mar de
Dentro esta frase de Roland Barthes:
Não há outro significado primeiro da obra literária senão um certo
desejo: escrever é um modo do Eros. |