Lima Trindade
5.5.2007
Armadilhas e fugas de Cajazeira Ramos
Uma celebração. Ao completar seus
cinqüenta anos de idade, o poeta Luís Antonio Cajazeira Ramos lança
o livro Mais que sempre, antologia que revisita três de seus livros
anteriores e traz 24 poemas inéditos. Em meio a fugas e armadilhas,
tentei que nos falasse sobre o seu ofício, a sua vida e o estar no
mundo.
Lima Trindade – Em seu livro anterior,
Temporal temporal, o tempo se apresenta como uma “angústia máxima”,
que “avança a volta sem volta”. Nesse sentido, Mais que sempre
poderia ser lido como uma resposta para as diversas mortes que
vivemos? Um retorno à infância e à renovação de velhos mitos por
meio da poesia?
Luís Antonio Cajazeira Ramos – Se o
dia “avança a volta sem volta”, “eu aguardo o pôr-do-sol”, para
fazer um “brinde ao crepúsculo” e ser surpreendido pela “noite
escura”. Estas são imagens de um de meus poemas favoritos daquele
livro. Não busco nem tenho respostas às mortes e perdas. Minhas
visitações ao passado são apenas turismo pela memória, e minhas
indagações não incluem futurologia, nesta minha vida subjetiva. Os
mitos não se renovam. Seu ciclo é ditado pelo dia: nascem com a
aurora, envelhecem e dormem. Estão lá, presentes, enquanto nos
debatemos em busca de sei lá o quê.
LT – Sua lírica, desde o
início, evita a armadilha da autocomplacência, convidando o leitor à
vertigem, à perda e ao esquecimento. A atemporalidade do título
estaria na total imersão no agora, na urgência do contemporâneo?
LACR – Não cabe condescendência
em poesia. Drummond proclama: “meu nome é tumulto”. Por isso e por
tudo, o tempo não basta. O agora, esse eterno, é, como tudo mais,
insatisfatório. Mas não busco verdades sentenciosas. Quero apenas as
versões poéticas. Não perco tempo com filosofia e psicologia: a
poesia transita em outro território. Ela não é a construção de uma
torre, um castelo, uma ponte, uma cidade. Não é superação nem
domínio. Talvez seja estranhamento e desencontro, conflito e
perplexidade, comoção e gozo. Se poesia é fuga, nisto é também
encontro, transitório e perene. Como em “Bolha de sabão”: vertigem,
perda, esquecimento. O título? O título de meus livros é, mais que
sempre, o mesmo.
LT – Nega então que em Temporal
temporal predomine a sombra da morte, enquanto Mais que sempre
afirma a pulsão da vida, a sede, o amor, o sexo e o gozo?
LACR – Eu me sinto como se
escrevesse o mesmo poema desde junho de 1995, a partir deste verso:
“Acordo para um mundo novo no jornal.” Meu texto vai crescendo como
um diário. Neste, as confidências estão impregnadas de
circunstâncias, tais como o estado de humor, a emoção de plantão e
as vivências recentes, mas é sempre o mesmo réu confesso. Já os
poemas, como aponta Gerardo Mello Mourão numa carta, são “um
memorial”, em que “a pura geometria do consciente rende-se à magia
caótica das intuições”. Temporal temporal vai de 1996 a 2001, as
circunstâncias e motivações foram muitas e variadas. É um livro
heterogêneo nos temas, na abordagem, nas soluções de linguagem. Nele
há também a questão da morte, mas não somente. Mais que sempre foi
um mês e meio em torno de uma coisa: o amor. O amor e suas vestes. O
desnudamento do amor.
LT – E como é a sensação de
comemorar cinqüenta anos, você teme a perda da juventude?
LACR – Fazer 50 é o caminho de
quem passa dos 49, não é, meu velho Dorian Gray? Agora, comemorar é
que é o bom. Inventei que gosto de comemorar meus aniversários. Se
decido dar uma festa, então, pareço um pinto no lixo, rindo à toa. O
cinqüentenário tem sua liturgia própria. Mais que isso, tem toda uma
retórica: meio século de vida, hein? Quanta experiência, não? E a
juventude que se foi? E o valor da maturidade? Voltemos ao “Brinde
ao crepúsculo”: da “pele lisa da aurora” às “rugas do fim da tarde”,
será que aquelas tolices enganam a solidão? Talvez eu pense nisso,
quando mergulhar noite adentro...
LT – Qual foi o critério para
seleção dos poemas dos livros anteriores?
LACR – O gosto pessoal. Dito
assim, parece simples. Mas foram meses de ansiedade, angústia,
dilema, sofrimento, delícia. Nesse processo, mexe numa palavra aqui,
burila um verso ali, corta um trecho, refaz um poema, mostra a uns
poucos amigos, volta às dúvidas, à atenção total, à dispersão do
resto do mundo, à vigília noturna, ao vai-vem de anotações, papéis
rasgados, impressora, nova leitura, decisão, indecisão, versão
final, ponto de partida, abandono, novos estalos, novos rascunhos,
redação definitiva. Tudo inconcluso. E por aí vai.
LT – Qual a razão de não ter
incluído nenhum poema de seu livro de estréia?
LACR – Logo vi que Tudo muito
pouco foi só uma viagem. Eu tinha largado Engenharia Elétrica no
finzinho. Fim dos anos 70, fiquei um ano e meio por aí. Fui do
desbunde à macrobiótica. Me mandei para a Agronomia no interior, em
Cruz das Almas. Os anos 80 avançando, e eu numa casinha no meio do
mato, bosta de boi à vontade... Achei que estava suficientemente nu,
inventei de fazer poesia a partir dos gritos dentro da cabeça.
Depois, imprimi num volume todos os garranchos que escrevera, mas
era tudo muito pouco. Rasguei quase mil livros e toquei fogo nos
restos mortais, no quintal de casa, numa manhã nublada. Fui ler
Pessoa e Drummond, e por dez anos tudo acabou.
LT – Uma década sem escrever. O
que aconteceu nesse período? Fiat breu remete a esse momento?
LACR – Aconteceu um piscar de
olhos. Dois anos de retorno à casa paterna, como um Buendía renegado
num quarto dos fundos. A aproximação inaugural com meu pai e sua
morte. Os 30 anos, o ingresso do jovem coroa na geração saúde dos
adolescentes e o curso de Educação Física. A docência. Uma espiada
de um ano em Medicina. O despertar, não para o trabalho, mas para a
sobrevivência: concurso público, cargo público. O curso de Direito.
A vidinha de todos nós misturada com o singular que é só meu. Sexo,
que ninguém é de ferro. O descompromisso amoroso de toda a vida se
alternando com paixões leoninas. Menos de um poema por ano em dez
anos. E a avalanche poética a partir de junho de 1995. Agora, sim,
poesia. Fiat breu.
LT – Essas vivências mudaram a
noção que você tinha de poesia? Como você julga a qualidade de um
bom poeta?
LACR – Vou dizer algo em
linguagem direta: “Tentei fazer um poema, não consegui.” Agora vou
dizer a mesma coisa (ou quase a mesma coisa) de outra forma:
“Escavaquei o chão dentro de mim, lavrando em busca do cristal dos
versos. Toquei no nervo lírico e senti a erosão evasiva do
silêncio.” Mudou? Poesia é forma: ritmo, composição, metáforas,
sugestão de imagens, pluralidade de sentidos, rigor de linguagem.
Todo e qualquer tema. Conteúdo? Em poesia, o conteúdo é a forma. A
fôrma é só circunstância: versos livres, medidos, rimados são
escolhas por afinidade, não determinam o caráter poético do poema. A
linguagem é a poesia. E não há o mau poeta. Há sim o não poeta,
quase todos o são. Mas há bons e há melhores.
LT – Você é um exímio sonetista.
Há explicação lógica para essa afinidade?
LACR – Havia um louco, um
mulato jovem, gordão, em farrapos, com um furúnculo no abdômen, que
vinha e ficava por muitas horas sentado à porta da casa de minha
mãe, até que em certo momento defecava e ia embora, tudo em completo
silêncio. Fizemos de tudo, mas nada o abalava. Pensamos em chamar o
poder público. Meu irmão psiquiatra demoveu-nos da idéia: criaríamos
um vínculo legal e, quem sabe, uma responsabilidade para com ele.
Mesmo porque, um dia, sem que esperássemos, ele iria sumir, meu
irmão nos garantiu. Pois assim foi. Assim sou eu. Sentei-me ao lado
do soneto, estou ali. Ninguém entende idéias fixas, nem seu louco
dono, não é mesmo? Um dia acaba.
LT – Qual o papel da educação
escolar na sua formação de escritor? Acredita que o ensino de
literatura nos dias de hoje piorou, que ele é responsável pela atual
falta de prestígio da poesia, ou tudo continua como sempre foi?
LACR – Meu pai sofria de prisão
de ventre, passava horas sobre o vaso, lendo livretos de faroeste e
outras coisas. Todos os filhos pegaram a mania de ler. Fui com
Monteiro Lobato, enciclopédia Conhecer em fascículos, super-heróis
em quadrinhos, Jorge Amado, Hermann Hesse, bíblias e gitas. No 2º
grau, uma visão das escolas literárias e seus autores, além da
grande dúvida existencial do professor: quem é o melhor, Gonçalves
Dias ou Castro Alves? Depois veio Dostoiévski, etc. Eu não sei o que
é que a escola teve a ver com isso. Por outro lado, com o shopping
center aberto até nos domingos e feriados, você não acha que está
perdendo tempo falando de poesia? Ela está bem, onde sempre esteve,
e não vai sair de lá.
LT – E você, também, não
estaria perdendo tempo (risos)? Rimbaud se aproximou da poesia
graças ao banco do colégio e a disposição de um professor. Não
acredita na importância do ensino na formação de leitores e
escritores?
LACR – Mas eles dois não
trepavam? Ou melhor, foi o contrário! De tanto treparem com a
poesia, sua relação virou uma trepada. Não creio que Rimbaud tenha
chegado às musas via colégio e preceptor. Ninguém ensina poesia a um
poeta, ninguém aprende poesia e vira poeta. Ainda mais se for um
Arthur Rimbaud! Tenho um amigo que defende um currículo tão-só com
três disciplinas: Letras, Números e Teatro. É o suficiente:
representação. Ou seja: ler. Quiçá escrever.
LT – Quais os autores da
tradição que mais aprecia? E contemporâneos?
LACR – Adoro essas coisas:
classificação, ordenamento, taxonomia, cartesianismo. Nada igual a
nada, mas tudo comparável. Valoração. Listar em ordem, do primeiro
ao último, do general ao soldado, ou ao contrário, em direção ao
clímax, ao poder, à glória. Não é uma delícia? Isso é alimento, que
vai do ovo à maçã. Serei cronológico e bem avarento ao listar:
Camões, Gregório, Bocage, Cecéu, Pessoa, Drummond. E Augusto dos
Anjos desmedido. Todos eles contemporâneos. Há outros, claro: no
penúltimo andar há bem mais moradores do que na cobertura. Se
começar a citá-los, posso esquecer algum. Mas os vivos são poucos.
LT – A ordenação não implica
uma adesão ao cartesianismo ou hierarquização. Se não há diferenças
entre a produção canônica e a contemporânea, qual a razão de se
negar a falar dos poucos vivos?
LACR – A poesia canônica é a
contemporânea. A poesia contemporânea é a canônica. A poesia fundada
não afunda, é perene. Petrarca é hoje, Baudelaire é hoje, “pois na
poesia estou destacado do tempo.” Os contemporâneos ainda vivos são
poucos mesmo. Mais de um poeta num século é exagero! Acho mais
lógica a idéia de vários séculos sem um poeta. Tá legal, tá legal,
não quero deixar você assustado com meus critérios, por isso faço
uma concessão: o século XX, nesta avaliação, posso dizer que foi
meio exagerado, tá legal?
LT – Bem, esqueçamos os
relógios e nos voltemos para o espaço. Pensa que a literatura
produzida na Bahia fica a dever aos demais estados brasileiros?
LACR – A poesia é tão rara, tão
incomum, que nós termos Gregório de Matos, Castro Alves e Sosígenes
Costa já é um assombro quantitativo. E poetas não surgem do nada.
Essa tradição, associada a mestres de outras províncias, é garantia
de continuidade. Baiano tem lábia, verve, imaginação, cartola de
mágico, coelhos e pombas à vontade. De vez em quando me chega às
mãos um livro. Há cearenses, pernambucanos, cariocas, nunca deixará
de haver baianos. Na Bahia, apesar da cultura ágrafa que ganhou
nossos becos, ladeiras, avenidas, lares e corações, ainda há quem lê
e escreve, abrigado nas trincheiras do lirismo. Imagem batida de
resistência? Creio mais que seja imagem de sonho.
LT – E que cultura ágrafa é
essa?
LACR – Não digo nem sob
tortura. Em minhas leituras enviesadas de livros e tudo, aprendi
marotamente com o Tao Te King que o governante não deve alimentar o
espírito do povo, mas os ossos. O Mestre deve ter pretendido dizer
outra coisa, coitado, mas o que eu quis entender é que corpos
nutridos e cabeças ocas são um resultado apetitoso. Para que
contrariar?
LT – Se fosse convidado para a
Academia Brasileira de Letras, aceitaria?
LACR – Aceito ser qualquer
coisa tirada a bacana: presidente, rei, papa, síndico, líder da
turma, capitão do time, animador de auditório, mestre de cerimônia,
bobo da corte. Só não serei destaque de escola de samba: apesar de
baiano, exposto a toda sorte de barulho, eu detesto batucada. Mas
não espere de mim, em tudo, grandes resultados. Nada além de
canastrice. A não ser que eu esteja emocionalmente tomado. Nesse
caso, minha ligação com a coisa passa a ser compulsiva, frenética, e
consigo convencer como o canastrão-mor. Claro que aceito a
imortalidade! Mas a fila é sempre grande. Tem muito escritor,
historiador, professor, inventor, compositor, ator, imitador,
enganador, bajulador, sem falar em governador, senador,
desembargador, comendador, administrador, consultor, assessor,
monsenhor, cardeal, general, maioral e o coisa-e-tal. Onde caberia o
poeta? De Homero para cá, há um vazio que me cabe preencher...
Lima Trindade é mestre em letras pela
UFBA, editor da revista eletrônica Verbo21 e autor dos livros Todo
Sol mais o Espírito Santo (contos) e Supermercado da solidão
(romance).
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