Há dias
não conseguia ler nada, não por
mandriice ou fastio das letras, mas por
obra de um vírus não-letal, que me
deixou quase cego. E cadê tua Maria
Kodama? – perguntarão os desconfiados.
Para não lhes dar resposta indecorosa,
dou um passo adiante.
O primeiro
livro lido por mim após o arremetimento
do pequeno ser é de meu amigo Caio
Porfírio Carneiro. Não um amigo do
peito, porque pouco nos vimos, sobretudo
porque moramos em cidades bem distantes
uma de outra. Ele sempre em São Paulo
(“sempre” é exagero de linguagem), para
onde se mudou em 1955. Naquele ano eu
não o conhecia ainda, como não conhecia
nenhum escritor, a não ser os dos livros
célebres, como José de Alencar, Machado
de Assis, Alexandre Herculano, todos
mortos antes do meu nascimento. Enquanto
Caio morava na maior metrópole
brasileira, eu sobrevivia em Baturité
(até 1961), depois em Fortaleza e
Brasília. E nunca o via, embora lesse
seus livros. Lia por sabê-lo
escritor de alta linhagem, além de ser
meu conterrâneo. Vi-o pela vez primeira
numa tarde do início do século XXI, em
Fortaleza, para onde voltei em 2002.
Apresentou-mo (ora, eu já o conhecia dos
livros, desde os anos 1970) o jovem
Pedro Salgueiro, que conhece de perto
quase todos os grandes escritores
brasileiros nascidos no século XX.
Frequenta ou frequentava casas e
escritórios – onde toma ou tomava chá,
come ou comia biscoito, cochila ou
cochilava nos sofás – de nomes eminentes
como Dalton Trevisan, José J.Veiga e
Rachel de Queiroz. E eu me encantei com
Caio, sua prosa nervosa e galopante.
Sua simplicidade, sua simpatia. Recebe
jovens e velhos sem pedantice, em todo o
tempo a brincar.
Toda essa
digressão poderá parecer enfadonha ao
leitor. É que quero deixar de lado a
pretensão de ser crítico literário. Ou
escrevinhadeiro de resenhas ou
comentários. Serei apenas um cronista
que lê (desculpem-me os cronistas se os
ofendo, eu que nem consigo escrever
crônica) e se serve das leituras para
rabiscar frases engatadas a frases.
E aqui
começa de fato a crônica da leitura do
novo livro de Caio. O título é
simpático, embora simples: O copo azul (Scortecci,
São Paulo, 2009). Pequenos contos, de
uma a cinco páginas. De tão curtos, são
poucos os narradores ou protagonistas
com nomes explícitos. Mas não é por
serem concisos que os nomes são
omitidos. É porque Caio escreve
alegorias, parábolas, como em “O ponto”.
Caio escreve metáforas. É um filósofo.
Quando há nomes, como Maria Viviane, o
nome não é do narrador ou do personagem
central. Maria Viviane é apenas uma
lápide.
Alguns
desses contos se aproximam perigosamente
da nova tendência do chamado “realismo
urbano” e destoam do conjunto, como “E
daí” e “Capuz”. (Outros escritores muito
conhecidos têm se perdido nessas ruelas,
como Dalton Trevisan.) Outros relatos de
Caio se abeiram da brincadeira
literária, como “Pois é”, construído à
maneira de peças teatrais. “A travessia”
segue esta linha. O melhor do livro está
no pintar a alma do homem, perdidos em
si mesmos. Seres angustiados,
desiludidos (ou ainda iludidos) com
sonhos, amores, novidades. Homens velhos
à procura do passado. Ou de mulheres que
somem, desaparecem, se esfumam nas ruas.
E o que
dizer da linguagem, sempre esmerada,
tratada com cuidado de ourives, como se
cada frase surgisse após longo
alisamento manual, como o fazem os
artesãos de pequenas peças de barro?
Dedicação de artista, de escultor, de
apaixonado pela própria obra. Quem
escreve com raiva, ódio, vontade de
ferir, maltratar, não alcança a arte.
Mas falar disso não cabe aqui, pois
muito já foi dito a respeito do que seja
arte.
Caio
Porfírio Carneiro escreve com arte. Até
quando brinca, ele brincalhão por
natureza, quase menino ainda aos 80
anos. Escreve certo por linhas retas,
sem parecer jornalista. Sua linguagem é
clara, como se conduzisse o leitor, lado
a lado, em conversa franca, por caminhos
estreitos ou largos, sob sol forte ou
chuva. Ou ao luar. Não quer enganar o
leitor, levá-lo a atalhos que vão dar em
abismos. Não se embrenha pelos cipoais
ou pela caatinga. Não é um regionalista
típico. Também não é discípulo cego dos
antigos. Caio é Caio. Pra todo tipo de
leitor.
Fortaleza,
15 de agosto de 2009.