Bateram palmas, muitas palmas, ao soneto do poeta Jorge Tufic, menos o monge
cego, Jorge de Burgos, que fez uma careta, é claro, ao tema da prostituta.
Vejam, o Coronel, ele mesmo quem recitou:
Vênus
Dá-me, Apeles, o sangue dos teus dedos
e as cores deste mar, espuma ardente
em que Vênus ressoa e se reparte
entre deuses e bichos, céus e terras,
para que a louve, prostituta imensa
feita de orgasmo e sol. Pombos e cisnes
a conduzem nos braços da Volúpia
onde ela exerce, pleno, o seu domínio.
Mas, de repente, queda-se cativa
de um mortal como Adônis. Tão completa
me parece esta deusa que seu brilho
tem, sobre nós, a calma perspectiva
de uma fúria saciada: um simples nome
que a eternidade rútila consome.
— Um craque esse Tufic!, arrematou o Coronel.
Contou o Coronel que Jorge Tufic, nascido de pais sírios, no Acre (depois,
já homem feito, é que fora morar no Ceará), tinha um tio, Youssef, muito
devoto, cristão do ramo maronita, como a maioria árabe do Norte e Nordeste,
onde o islã é praticamente inexistente. Disse que "tio José", assim os mais
novos chamavam o velho Youssef, andava para cima e para baixo com uma bíblia
debaixo do braço, sempre a lê-la no intervalo de um cliente e outro, inclusive
no batelão do comércio.
O estranho era que o tio nunca permitia, a quem quer fosse, lesse aquele
bíblia, aquele exemplar especificamente, editado em árabe. Ele mantinha outras
bíblias, no batelão e em casa, de diversos formatos e traduções, para quem as
quisesse ler. Aquela, não; só ele a lia. Muito compenetrado, óculos na ponta
da venta, um lápis perfeitamente apontado, enganchado na orelha ou enfiado nos
cabelos; um canivete bem amolado no bolso para, se necessário, refazer o
apontamento do lápis... Então, o tio balbuciava as palavras que ia lendo,
mas, quase sempre estava a tirar a vista do livro como se treinasse aprendê-las
de cor e salteado, sem olhar. Ele, muitas vezes, sequer abria aquela velha
bíblia: recitava de memória, só nos lábios, sem som algum, parece que capítulos
inteiros. Abria o livro onde havia "lido"; lia novamente, agora "com os olhos",
ajeitando os óculos; relia "de ouvido", colocando a mão em trompa à boca como
se preparasse para um grande recital... E, mais uma vez, "lia" tudo sem livro
algum. Se chegava um freguês, não havia problema: ele pegava a bíblia,
colocava-a num embornal que trazia consigo, no justo tamanho a não deixá-la
exposta aos curiosos, despachava o cliente e recomeçava tudo outra vez.
Em determinadas passagens, o tio pegava o lápis e parecia anotar algo. Contudo,
o que ele anotava, ninguém nunca leu, justamente porque não permitia que alguém
tocasse naquele livro. Nem a esposa, nem os filhos, nem ninguém, em todo o Acre
pode dizer que um dia botou a mão em cima da bíblia particular do velho Youssef
Tufic.
Contou que tio José, por conta da preocupação pessoal com aquele livro, fez uma
cavilha no colchão, onde, cuidadosamente o colocava. Cobria-o, a nivelá-lo com a
superfície, com um coxim de fios de algodão. Antes de se recolher ao leito,
encerrava o dia com uma última e rápida leitura e, então, o colocava dentro
daquele buraco que fizera no colchão. Cobria tudo com um fino lençol de linho
e dormia, por cima, o sono dos justos.
No outro dia, a primeira tarefa, pegar a velha bíblia de volta, e sair com
ela por toda parte a lê-la, recomeçar todas aquelas anotações e comentar só
consigo as passagens mais bonitas.
Contou que ficaram muito alvoroçados quando o tio, morto, todos correram,
não a ressuscitá-lo, mas a levantá-lo da cama, para ler os segredos anotados
naquele livro tão bem guardado.
Ora, o tio nunca comentava o que anotava, de modo que muito razoável supor
segredos espetaculares, quem sabe, fórmulas e patentes de grande valor, ou,
até mesmo mapas de tesouro, castelos e princesas encantadas.
Então, ele, Jorge Tufic, que, adolescente, já lia perfeitamente em árabe — os
mais velhos estavam sem os óculos de perto — abriu o livro, página por página,
e nele nada havia escrito. Crescente decepção, só na última folha porém,
naquele canto em que as gráficas antigas davam uma notícia de como aquela
edição havia sido feita — o colofão — lá estava, em letra miúda, em árabe,
o manuscrito do tio Youssef Tufic: Ma fi Allah!
— Ma fi Allah?!
— Sim, isto mesmo, traduziu o jovem Tufic: «Deus não existe!»
— Como que não existe? — berravam todos ao mesmo tempo, o adolescente Jorge
Tufic incluso. Além da decepção de nada encontrarem anotado naquele livro,
pior, a certeza da condenação do parente.
Comecei achar que essas conversas nada teriam mesmo a ver com a Biblioteca
deste presídio. O problema, ou a solução, é que o Profeta, dito Camundo,
perguntou ao poeta Tufic se o lápis do tio tinha borracha.
— Sim, é claro! Os lápis, inclusive no batelão do tio, eram vendidos com a
borracha, uma venda casada, de modo que se o menino perdesse só o lápis
haveria de comprar o conjunto inteiro, mais caro, naturalmente! Naquele
tempo não havia Lei do Consumidor.
O Profeta Camundo indagou se o poeta Tufic não vira naquele livro marcas ou
fragmentos de borracha. Tufic cofiou os bigodes, pensou um pouco e disse que
sim, tanto que a borracha que havia no lápis do finado, agora lembrava,
estava bastante desgastada.
— Então, meu caro Tufic, seu tio está salvo, direto de Boca do Acre para o
seio de Abraão! — disse o Profeta Camundo.
Confesso que fiquei sem fala ante o embuste do Profeta. Como seria possível?!
Aquele indivíduo passara a vida enganando a família e os amigos como sendo um
grande devoto, para, no fim, descobrirem que não passava de um reles incréu!
E agora o Profeta estava a salvá-lo?! Foi demais!
— Por favor, senhor Camundo, explique-nos como o tio do poeta, um incréu,
salvou-se!
Ele disse que o falecido tio do amigo do Coronel viajava na dúvida e na
pesquisa. E, nos momentos da aflição, tomava daquela borracha e apagava
a partícula negativa «Ma», com o que a frase correta passava a ser Fi Allah! —
Deus existe! Quando porém retornava-lhe a fartura, já no grau de
aborrecimento, que nada aborrece tanto quanto a fartura em excesso, ele
pegava do lápis e refazia tudo a caminho da expressão negativa, tal qual
estava no livro, antes de morrer — Ma fi Allah!
— Só na angústia da tribulação é que surge, sem dar tempo para reescrever
coisa alguma, a súbita mudança do bem para o mal ou do mal para o bem: a
hora da nossa morte, amém! — disse o Profeta. E se benzeu.
— ?
— De fato, se a frase antes escrita era a má, quando a angústia da morte o
afligiu, muito natural que a tivesse mudado ao bem — desde que lhe desse
tempo o Tempo. Assim o homem bom a blasfemar ante um pequeno temor, enquanto
que aquele que já está no mal, ante um novo mal-maior, tem tudo para se
reescrever da frase velha.
— ?
— Quem corre o risco de se perder é aquele que se acha achado, enquanto que
o perdido só corre o risco de se achar! Isto mesmo! O Tempo! Quem disse que
dá tempo a nada?! O arrependimento, é claro, vem antes do agitar-se à morte!
Não deu tempo ao tio do poeta reescrever coisa alguma.
—?
— Deus existe! — disse, tenso e grave, o Profeta. E, minimizando com a
unha do polegar por sobre a ponta do dedo indicador, concluiu:
— Há um tempo, no esgotar do Tempo, em que não dá tempo escrever. Nem falar.
Nem nada. Só um cla...
A senhora mãe do Coronel tentou enfiar a história de "Os últimos serão os
primeiros", mas, ante o espanto geral que a "teoria" do Profeta causou, de
que os condenados correm um risco maior de se acharem do que os bons de se
perderem, saltamos, com este tesoiro na mão, para outro assunto. Nem eu me
atrevi a perguntar ao senhor Profeta se ele quis dizer clarão ou clamor...
.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.
Este, o 6º capítulo de Poética, um livro vivo, aberto, gratuito,
participado e participativo, cheio de comentários que, a rigor — esta,
a proposta —, os comentários, mais importantes que o texto comentado:
abrir o debate, uma multivisão.
— Livro vivo, como assim?
— Porque em permanente movimento, espaço aberto a quem chegar, tão amplo
como o espaço àqueles que aqui estão desde os séculos, todos em absoluta
ordem alfabética. Seja bem-vindo!
Estimado Poeta Soares Feitosa, a começar do belo poema de Jorge Tufic, que nos
lembra tempos e arquétipos ancestrais, quando a deusa Vênus reinava absoluta sobre
céus e terras e espargia seu amor sobre pobres mortais, e, assim, dava seu exemplo
e permitia a estes uma sexualidade plena e liberada de preconceitos, traumas e
complexos, que só viriam a surgir quando os Sínodos, Bulas e Dogmas proclamados
pelo corpo temporal, rico e opulento da Igreja, entraram em vigor, nos impondo
um inexorável sentimento de culpa, o seu vibrante e envolvente texto vai muito
além.
Ele toca naquela pergunta que, volta e meia, nos atinge e aflige, a nós, mortais,
cujo precário estado é o de um imanente conflito: Deus existe? Ora, “tio José”, o
velho Youssef, se permitiu, durante sua longa e lúcida existência, uma dialética
e filosófica perquirição íntima (isto, de acordo com os dons dedutivos do Profeta,
dito Camundo), só acessível aos mais nobres espíritos, e que o conduziu, sem dúvida,
aos generosos e amplos braços de Abraão.
Esta vital e longeva tese/antítese se exprimia em “Ma fi Allah”, Deus não existe e
“Fi Allah”, Deus existe, ao passe e repasse de lápis e borracha, levando-o, no
momento da Grande Iniciação, a uma gloriosa síntese.
A luz e as trevas nos acompanham sempre, nobre Poeta, e oxalá possamos alcançar,
ao fim da nossa constante lida, à conquista do velho Youssef, ou à de Victor Hugo,
cujas últimas palavras foram:
– Eu vejo a luz negra!
Um grande abraço. Ao gosto da verdadeira poesia, ou da arte poética,
Soares Feitosa.
.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.
ANTONIO FERNANDES PALMEIRA: Caro Poeta, tenho que ser, devido à profissão de
engenheiro calculista, um matemático por excelência e, com o raciocínio matemático
posso te dizer que a existência de Deus é como um ponto impróprio: Na geometria é
onde encontram-se as famosas paralelas, ou onde a assimptota zera. Mas na vida
(essa mesma onde fomos lançados) pode ser uma simples anotação em um velho livro
e com significado alternado, de acordo com o estado de espírito de quem escreve,
e isso corresponde também a um ponto impróprio. É só analisar os dois “pontos”
que chegaremos a tal impropriedade.
Mas vamos deixar esse assunto complexo e dar uma volta a cavalo ou mesmo a
camundongo (“mouse”, como querem os gringos), e quem sabe a gente encontra
alguma propriedade desse ponto impróprio, perdida entre as linhas dos poemas
ou entre as moitas das margens das estradas.
.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.
JUAREZ LEITÃO: Chico, tu tens muito fôlego para escrever. Este enredo está
muito bom. Que engenharia, que meticulosa invenção!
.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.
LUIZ PAULO SANTANA: Poeta, sobre a lição de centauromaquia mandei-lhe um
comentário que você já incluiu. Esqueci-me de comentar os quadros: o de Blake,
como sempre impressionante, vitorioso, utópico, e o de Victor M. Vasnesov, este
último evocando, a mim me parece, o “Ser ou não ser...”, de Shakespeare, ou, o
homem diante de sua morte. E se Hamlet encarna o poder e a dúvida diante do nada,
numa perspectiva de fuga, o cavaleiro armado e seu belo cavalo de batalha decaem
impotentes diante das caveiras e lápides, numa perspectiva de fim.
Foi um prazer ler Ma fi Allah! o velho tio do poeta Tufic, afinal de contas, com
um simples “Ma”, transgrediu o óbvio, ele que tanto pensava (lembrando Lya Luft)
sob o seu secreto e particular modo de revolver dúvidas, ou dúvida, mais
especificamente, pois acabou por lançá-la tanto nas hostes familiares como entre
os convivas da famosa biblioteca, Tufic sobrinho incluso. De propósito? Ou não deu
tempo? Lembra Saramago em seu “História do Cerco de Lisboa”, quando o revisor
acrescenta um “não” a uma única frase e muda toda a história. Ficção ou história?
História ou ficção?
Que diria de Jorge Tufic? Primeiro, uma figura muito simpática, algo ancestral –
babilônio e sutil, conforme o soneto? Segundo, basta-me citar fragmentos do
parágrafo final da carta que lhe enviou o poeta, agradecendo o recebimento de
“Réquiem em Sol da Tarde”, sobre versos de “Femina” (“Não lavei as mãos/pois
tinham os sons/do teu corpo”): ... simples relâmpago de azulados e carnais
reflexos, nos confins desta tarde e deste sol que nos banha, redime e fortifica.
Aqui ambos têm meus olhos, meus ouvidos e minha alma. Forte abraço,
LPSantana. BH/MG
.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.
NESTOR LAMPROS:
Caro Soares,
Poeta do lado da noite. Poeta que encruzilha as faces da lua nos
ascendentes Leoninos. Poeta que recruza as falhas de um cavalo no
salto sem varais, mas com as moças e serviços. Você que viu a noite e
vive nela criando na alta dela seus textos, que nos afogam...- e
precisam ainda falar? Não estão todos lá, pra lá do salto e do assalto
dos seus olhos que com vidros permanecem atentos. Olhos de fogo de uma manhã cancelada.
Poeta, revi e reli seus parabelos, em cristas de ondas frescas. Me
admira o seu interlocutor com asas. Me admira o seu tudo com as
capitais no Nordeste, no puro apelo dos Castro Alves, em contornos
avermelhados de sangue fresco. Sem medir esforços, mas com a gana do
poeta que mergulhou na alma da América. Nós Ameríndios que suportamos a fome de eras. Nós que nascemos incertos. Você tem tudo ao seu favor, Poeta. No encanto crescente das figuras dos quadros, na imagem que permuta a fome de sabê–la. Às três e meia da madrugada... Ouço cavalgadas dispararem nos senhores do tudo. Tudo está por vir, Poeta.
Permanece a fome e o minério de sê–lo e esta noite o cansaço das manhãs amanhecidas no pão que comemos. Neste ou nesta fome que temos de ver o invisível. E fazer da fome da Bíblia um mais formoso Homero, na planta que nos vestimos, dos dedos da aurora nos bóreas estenóides de lírios.
Talvez Jó ainda tente ver no redemoinho uma outra poesia atenta, do estado de esquecer a dita. Ou o que deitemos fora. Ao ler nas
entrelinhas dos clássicos a pena alva de viverem filhas e filhos. No
lume. Na antena das raças esquecidas.
Sem nome algum, Deus existe!
Atibaia, 08 de maio de 2006
RICARDO ALFAYA: Caro Soares, valeu pela inclusão de meu comentário na “lição
de centauromaquia”. Sobre o outro texto, relativo ao poema de Tufic, gostei do
poema, que, no contexto geral, lembrou-me a tentadora hipótese de que Deus poderia
ser mulher. Aliás, seria muito mais fácil amá-lo se assim fosse. Todavia, nada mais
inusitado do que imaginar que a existência ou não de Deus pudesse ser determinada a
partir dos oscilantes caprichos de uma borracha, nas mãos de um indeciso
poeta/profeta ou vice-versa. Parabéns a ambos pelos belos escritos. Abcs,
Ricardo Alfaya