Relato de uma peregrinação adolescente

Fragmento de um questionário: Francisco, personagem de um poema longo, “Psi, a Penúltima Letra”, sai de dentro do poema e vem conversar com o autor, um certo SF, que também é Francisco.

64. Francisco: Você já peregrinou?

SF: Sim, várias vezes. No tempo do sertão. Morava nos matos, mas estudava em Nova-Russas, o terceiro ginasial. Ia fazer os exames todos os meses. Uma boa distância, sete léguas. Era um ano bom de chuvas; como dizemos por lá, um bom inverno. Havia um velho Ford F-5, da firma Carneiro & Veras Ltda, que fazia a linha Nova-Russas—Monsenhor Tabosa, carreando mamona. Na época das chuvas, as estradas muito ruins, o caminhão, já muito cansado, não tinha forças para enfrentar os atoleiros. Além do mais, a safra é para depois das chuvas. O problema é que eu tinha que ir aos exames, do contrário perdia o ano. Da primeira vez, fui a cavalo, mas o animal, um transtorno na cidade; eu não tinha onde abrigá-lo. Em vez de um pouco mais de tempo livre para me divertir, administrava mais uma preocupação além dos exames: cuidar do cavalo, à redobrada preocupação de que o animal não passasse fome, nem sede. As próximas viagens, enquanto o velho caminhão não retornou, fi-las a pé.

65. Francisco: A pé?

SF: Sim, a pé. De noite! Durante o dia, com o sol quente, é muito pesado. Insuportável até. Saía de tardinha. Aprontava um pequeno lençol, com umas poucas roupas e os livros já lidos. Um embrulho na diagonal. É o matulão. A gente o coloca no ombro, transverso com o quadril oposto, distribuindo o peso. Nos primeiros quilômetros, o bicho vai que é uma beleza. Depois, não há lugar para ele. Você muda de ombro, bota para a barriga, bota para a bunda, troca de um lado, vira para o outro, mas quem disse?! Depois resigna. Chega o vento da noite. As estrelas no céu. Um céu enxuto. Levei um grande susto quando li o poema de Kant.

66. Francisco: Kant? Filósofo, não?

SF: Também. Ele disse, lá com as palavras dele: “Nada me enche de maior assombro que o senso moral dentro de mim e o céu estrelado sobre minha cabeça”.

67. Francisco: Por que o susto?

SF: É que na cidade grande também já esquecemos os céus, estrelados ou não. Só quem andou de noite, nos matos, sabe o que é, ainda que não houvesse, no dia em que andou, estrela alguma no céu nublado. Mas lá, estrelas é o que não falta. De noite, naturalmente.

68. Francisco: Não era perigoso?

SF: Eu pegava um garrancho, um cipó, coisa leve, porque na proximidade das casas, os cachorros vêm de lá, com a gota serena, a acuá-lo. Não! Morder não, que os cachorros do mato não são treinados para morder. Mas a gente não pode facilitar. Falava com eles, amansava-os, de voz mansa, mas nem todos. Continuavam latindo até o final do pátio, de despedida ou de raiva. Eu também latia com eles, mas só de despedida. De raiva, não, porque noutra viagem, o bicho haveria de lembrar. Enfurecido! Cachorro lembra de tudo. Quando paravam de latir, jogava o garrancho fora. Lá na frente, na próxima casa, pegava outro, ali mesmo, na beira do mato. As casas eram distantes, naquele tempo. Fechadas, que todo mundo dorme muito cedo. Mal escurecia, deitávamo-nos. Em compensação, sequer amanhecia, todo mundo de pé, na labuta.

69. Francisco: Assim mesmo, sem companhia, a viagem inteira?

SF: Havia uma companhia fantástica: a solidão. E a intempérie, bem na cara. Sabe, o vento no rosto destampado dá-nos uma certeza de desamparo, mas, incrível, é também uma perfeita sensação de exterior, um mundo mais. Sete léguas, 42 quilômetros, os mesmos da Maratona, que tem exatos 42,195 quilômetros. Sem perceber, a gente se transforma num bicho da Natureza. Ainda que nunca tenha lido os versos de Kant, saberá perfeitamente o que significam. A noite é fresca, mas o tempo é seco. Sem maiores avisos, esbarrava-me no rio Acaraú, ainda próximo das nascentes, apenas um riachote, um filete magro, quase sem água, mas dá um banho. E que banho! Com tempo de sobra, um banho longo, botando o tempo para render, esticando-o além da conta. Esticava também o corpo inteiro. Era novo, mas a caminhadeira, a suadeira, de cansar! Os pés – a poeira fazia um pó grosso –, lavava-os, muito e muito. E a cara. Mas o estiramento era também de partes: pé, braço, dedo. Até os dentes, havia de estirá-los. Não é fácil, mas dá para estirá-los, desde que o cansaço seja intenso. Nesse ponto, você e a Natureza, um bicho único.

70. Francisco: Um bicho? E o medo?

SF: Medo de quê? Era um tempo calmo. Hoje, nem pensar! Medo de nada. Nem da outra cobra, a cobra-macho, da beira do rio Macacos, se é que ela existia. Devia existir, mas não dava para pensar. A que existia, estava morta, eu que matei. Por que haveria de ter medo de nada? Se aparecesse, era cacete para cima dela. Do mesmo jeito. A gente tem outro medo, mas só no começo. É o medo de desistir. Depois, passa. Lá adiante, você, a viagem e o cansaço: quem é quem? Nenhum medo.

71. Francisco: Uma boa peixeira, bem afiada, não?

SF: Que nada! Se não havia medo algum, por que haveria de andar com o instrumento do medo? Lá nos matos, sim, a faca não é do medo, é do serviço. Nem revólver, nem nada. No trabalho, nos matos, para cortar um galho de pau, desenganchar um bicho, cortar um cordão de umbigo, a faca, quanto mais afiada, melhor. Mas em viagem, se não há medo, para quê?

72. Francisco: Pelo menos uma boa lanterna, não?

SF: Lanterna, coisa nenhuma! Nunca tive lanterna naqueles tempos. Éramos modestos. Uns trocados, e comprei enxó na loja “O Gabriel”, e pua, trados, formões e outros ferros de carpinteiro, uma plaina e folhas de lixa. Verniz? Não! O dinheiro não deu para verniz. Conseguia-o na lixa, polindo, até brilhar, a madeira. Alisava com mucanã. Um brilho real. A beleza modesta, na madeira, a maciez do polimento, horas a fio. Assim Ela, do mesmo modo — os olhos, tintas nenhumas. Não deu para lanterna, o dinheiro, ou até acho que deu, mas havia de comprar pilhas novas. Desmantelou, descarregou, vazou. Os ferros, bastava amolá-los, eu mesmo, na pedra de amolar: água e paciência, pra lá e pra cá, assim, um fio sobre fio, a ponto de cortar rentes os cabelos do braço. Barba, não, que a barba era rala, só a penugem, 15 anos. Por outra, os caminhos, por mais escura que seja a noite lá no sertão, é sempre possível entendê-los. No sertão, não há aquela escuridão de breu, da serra. Na serra, de noite, nublado, você enfia o dedo no olho e não vê nada; só as estrelinhas, furando os olhos. No sertão, por mais escuro, a gente divisa o vulto das mãos. É suficiente! Lá, as noites são de uma penumbra que dá para saber da mancha dos matos e do contorno das casas. É a hora, antes de cansar, de soltar a mente. Depois que cansa, não precisa mais olhar para nada. Nem consegue.

73. Francisco: Antes de cansar?

SF: Isto mesmo! Antes de cansar, a mente é igual a um macaco na corrente, pra lá e pra cá, pulando, sem sossego. Nada melhor do que soltá-la para cima dos matos, das folhas, dos barrancos, das nuvens lá longe e das estrelas por todos os lados da cabeça. Soltá-la, mente, por cima das pessoas que ficaram. E de outras que estão por vir, mas você não sabe quem. Depois, com o cansaço, isto é fundamental, ela, a mente, cuida de chegar para perto do dono. Acho que vem acudi-lo, deve ser isto. Ou porque perde as forças, com o cansaço. Então, a mente o tange a uma outra paisagem, a sua paisagem. O lado de dentro. E, quando vem a encontrar, bem no futuro, aquela pessoa saltitada de sua mente cansada, já sabe quem... Ela, é claro. Mas esse sossego interior leva algum tempo. Tem que cansar primeiro. O ruim da viagem era o amanhecer.

74. Francisco: O amanhecer? Não haveria de ser a melhor parte?

SF: Sim, razoável que o fosse. É que aos primeiros clarões, os céus esturricando-se de vermelhos, dava para divisar a torre da igreja de Nova Russas, que a cidade é num baixio, no vale do Rio Curtume. Era ruim porque faltava muito mais de uma légua inteira. Bom pela certeza de que estava perto, chegando. Mas cadê?! Longe por demais, melhor que não avistasse nada! Avistar coisas de esperança muito larga é tentar-se ao desistir. Deixasse para avistar só bem de perto. Você anda e anda. E nada! O bom é que, de descida, uma descida leve, tudo ajuda, descendo. Mesmo assim, aquela visão nova, ressurgindo dos escuros da noite, trazia uma aflição nova.

75. Francisco: Uma aflição nova?

SF: Era da impaciência de chegar. De dar por concluída aquela tarefa, agora às claras. Veja, de noite, sem ver nada, a noite é melhor. Também é a hora da sede, de manhã, pela manhã, com o sol. A sorte é que as casas, nos matos, abrem muito cedo. A gente pede água. Oferecem café. É bom. Uns minutos de alpendre, sentado. Sai cuscuz com leite. Perguntam coisas, a gente vai respondendo. Perguntam se vai chover no ano que vem. A gente diz que sim, abaixo de Deus, tirando o chapéu, mas nunca andei de chapéu. É da lei que essas coisas sejam respondidas “abaixo de Deus”. Entristece porque, avistando a torre da igreja, ainda que de muito longe, você percebe que a viagem está no fim. No duro, a viagem é boa. Aliás, ótima. Mas há um perigo a mais, aborrecer-se com a passagem.

76. Francisco: Com a passagem? Outro rio?

SF: Não! Rio nenhum. Aliás, o Rio Curtume, outro riachote, depois que fizeram um açude grande, secou à jusante. Havia ponte dentro da cidade, entre a Rua do Progresso e o Centro. Falo de um outro obstáculo, um rito, como se fosse passagem: da noite para o dia; dos matos para a cidade. Entre aquele aparente nenhum, o sertão, e a pólis, há um salto fantástico, mas esse salto há de ser dado sem salto algum. Do silêncio ao burburinho, indo e voltando. Só assim, a viagem! O trânsito límpido entre o sertão e mar; mar e sertão. Assim as coisas também do coração. Não! No amor, não! Que haja a vertigem! Quanto mais alta, melhor. Mas fique claro: Nova-Russas, a mais de cem quilômetros do mar... Mas era Mar em relação ao Sertão, onde a viagem se fez de começo.

77. Francisco: Quantas horas de viagem?

SF: Começava a andar pelas quatro da tarde, mais um pouquinho. Chegava às cinco e pouco da manhã. Mais de 12, em torno de 13 horas. Sem puxar, esbanjando todo o tempo. Se fosse para fazer ligeiro, a média era de uma légua por hora, umas sete ou oito, por aí. Mas para quê? O bom daquilo era gastar o tempo, a insultar com o tempo. Se fosse ligeiro, acho que não aguentaria. Era jovem demais. Por outra, para que ir ligeiro? Administrava o chão, os meus pés em cima dele, comigo de dentro, em cima dos pés. Não administrava os passos de chegar ligeiro. Mas, se necessário, correria. No chouto, por longo tempo. Ou galope. Alternando-os.

78. Francisco: Não estou entendendo: você fala em peregrinação, mas a rigor era um dever, comparecer aos exames do colégio, sob pena de ficar reprovado. Peregrinação não pressupõe livre vontade?

SF: Sim, era um dever. Tinha que ir. Em dia certo, chegar na hora certa, comparecer aos exames e auferir as notas suficientes. Mas, iniciada a via-gem, tomando gosto pelo que fazia, o gostar eliminava o obrigatório. O prazer de fazer é que faz a diferença entre o cativeiro e a devoção. Ainda que o fruto seja o Mal. Só assim se explica a eficiência dos carrascos de Hitler, aliás, de quaisquer carrascos —, eles gostam do que fazem. Fazem-no melhor que o dono. Mas há quem faça o Bem. Sem paga alguma.

79. Francisco: E o cansaço, muito?

SF: Sim, muito, porque aquilo era uma doidice. Exatos 15 anos, toda a musculatura doía. Mas era bom porque havia um fenômeno muito estranho. Um excesso de energia, talvez mesmo por conta do excesso de cansaço. Assim que chegava à casa do padre, um banho ligeiro, que a água era pouca. Se a caixa d’água estivesse meio vazia, ainda tinha que dar umas bombeadas, se não o padre reclamava que haviam acabado com a água dele. O padre chamava, perguntando coisas, roçados, chuvas e os mesmos assuntos de sempre, andando. Quando nos dávamos conta, estávamos na sacristia, na hora da missa. Ele dizia: venha ajudar.

80. Francisco: Você ia?

SF: É claro! Com o maior prazer! Dentro em pouco, lá estava eu – pichelengo, pichelengo – tocando com toda força a campainha na hora do Sanctus, Sanctus, Sanctus [Isaías, 6]; que não tem outra mais bonita no lugar, mas, por favor, a segunda parte não é de Isaías, é do Humberto Teixeira e do Gonzaga e refere-se à missa do meu velho tio, o padre Leitão. Também as meninas do coro. Havia a voz em contralto da futura monja. E a outra, muito magra, uma alma-de-gato, uma voz tênue, os cabelos calmos. A missa era em latim. Voltava para o café, com o padre. Ia em seguida para o ginásio. Sem parar, que o cansaço, agindo pelos inversos, não deixava parar. Fazia minha algazarra com a turma. Os exames, fazia-os. Os meninos diziam que era mentira, eu, escondido na casa do padre, estudando. Eu lhes mostrava os pés. De tarde, desabava como um bicho bruto, a acordar só no outro dia. De noite. E as notas!

81. Francisco: Alma-de-gato, o que é?!

SF: Com o forro das casas, na cidade, perdemos mais esta informação. Seja uma coberta de telhas. Ou de palhas. Réstias, aqueles buraquinhos por onde entram o sol, a lua, a escuridão das estrelas. Pronto, se uma réstia de sol bater numa vasilha d’água, refletirá na parede uma mancha de luz. Com o vento n’água, ter-se-á uma luz tremida, ligeira, assustando, bulindo, mexendo. Era, de puro susto, sobre mim, os olhos – Ela.

82. Francisco: Vejo que tenho que fazer um curso de sertão. E a volta, outra vez a pé?

SF: Bom, aí eu esquecia os matos. Muito justo que os esquecesse. Era jovem, as meninas do ginásio, muitas, e a minha turma de adolescentes. Havia de voltar, mas só voltava quando encontrava um transporte que me deixasse na porta de casa ou, no mínimo, no Morro Redondo, no lugar Cruzeta, exatas duas léguas e meia (15 quilômetros) que eu tirava num chouto. Com um novo estoque de livros, uns oito ou dez, para não fazer muito peso.

83. Francisco: Livros, os do colégio?

SF: Não! Os do colégio já estavam em casa. Eram agora os livros que o juiz me emprestava. O doutor Bastos, Moacir Bastos, que Deus o tenha. Duas belas estantes da melhor literatura. Livros da Editora Globo, coisa de antigamente, ótimos. Edison Carneiro, lembro este nome. Ele conta que Zumbi tinha escravos. Muito estranho que um senhor de escravos tenha sido escolhido patrono do Movimento Negro. Joaquim Nabuco, não! Era senhor e não tinha escravos. Levava os livros de volta e trazia outros. De noite, a lamparina polmando fuligem. O dedo no nariz? Vinha preto! Fumaça da lamparina! Se fez algum mal? Acho que não! Passei dos sessenta e estou aqui novinho em folha, para outros vinte! Ou trinta. Ou mais!

84. Francisco: A peregrinação, uma coisa sofrida. Alguma vantagem?

SF: Ah, sim! Só vantagens. É quando você encontra o seu animal.

85. Francisco: Um saci, um duende. Crê nessas coisas?

SF: Nem um pouco. O animal, você o encontra quando peregrina sozinho, à noite, cansado, jejuado. Ele está dentro de você. O corpo sacrificial, o seu, os céus, estrelados ou não, que, ao mesmo tempo, chamam-no para cima e, com a mesma força, o repelem e o esmagam no rumo do chão, que também o puxa e empuxa. Você no meio, joguete de céus e terra. Não é fácil, creia-me. É quando o seu animal aflora, salta para suas mãos. É a hora de domá-lo. Ficam amigos, o animal e o dono. Acho que a peregrinação devia ser matéria obrigatória no currículo do jovem.

86. Francisco: Ainda que não fosse religioso?

SF: Religioso? Nada a ver! Não precisa ser religioso para peregrinar. Melhor que nem o seja. Veja, há um aterramento, ainda que o cabra não esteja descalço. Eu mesmo, questão de costume, nunca consegui andar descalço. Sempre andei em cima de minhas chinelas de currulepo ou das alpercatas de rabicho. Mas a terra está ali, nos seus pés, na poeira, no ar, na face. E a intempérie também, bem na cara. De tarde, quando a viagem começa, o vento é duro, abafante. No poente, o Sol, rubro de fogo, estatelando-se nos boqueirões da Serra Grande, lá muito longe, mas doendo na cara. Depois, à medida da noite, chega a fresca da noite. Você começa pelo pior, o sol quente nos olhos, o vento-mormaço, o calor. Tudo isso de ruim ajuda a abrandá-lo, fragmentando-o a rearrumar-se. A desejar que a noite chegue. E escureça! Lá pela madrugada, uns pingos ligeiros, coisa que não dá para molhar, apenas para, digamos, lembrar como é que molha. Mínimas gotas escorrem na face, mas o bom é não enxugá-las. Deixar que subam no vento, secando. Quando respinga um pouco mais, a gente bebe (não faz mal que beba), mas não pela sede. Acho que seria uma sagração das águas — bebê-las dos céus, direto na face. Os óculos. Sempre andei de óculos. Ficam manchados, mas de noite não precisa limpá-los.

87. Francisco: Não fica ruim para enxergar?

SF: Enxergar o quê? Tudo no escuro, a leitura é outra. Tem que aprumar o faro, as oiças, a pele, o corpo. Os dentes, a mordedura, se necessário. O vento às vezes se dana, rodopia nos paus, faz um barulho grosso. Era a hora de lembrar da jumenta de Jeremias esturrando no deserto. Você, ali, com certeza também é um jumento. Um retorno, uma grande viagem de volta. Não! Não tem que ser religioso. Melhor que nem o seja. Basta completar a quota. A quota do cansaço. Estou certo de que Jeremias errou, senão, de muito pudor, não contou que o esturro verdadeiro é do jumento e não da jumenta.

88. Francisco: Jeremias, o que ele falou?

SF: Veja, ele escreveu: Uma jumenta selvagem acostumada ao deserto, que no ardor do cio sorve o vento... [Jer 2, 24]. Não contou que o tirinete legítimo, em onda alta, é do jumento-de-lote. Do lote das éguas, o jumento garanhão. Assim o lá de casa, o “Meia Noite”. Eu também! Ele rasgava o vento, esturrando. Não! Nada a ver com relincho. Nem com zurrar. É um esturro de vento, nas ventas do bicho, espoucante, rápido e largo como um feixe de borrachas a sibilar sob grande pressão de um redemoinho feroz. Eu fazia do mesmo jeito. Esturrava na beira do rio, reinando. Ora, de jumento de lote, igual ao “Meia Noite”; ora, de touro, o touro “Fidalgo”, chifrando os murundus no pátio da fazenda, rodeando as vacas, brotando, zombando. Só quem é de lá, da noite, sabe o que é. Faz medo, mas é um medo grato, que a gente insulta com ele, para mais medo. Viajar na noite. Um medo bom.

89. Francisco: Medo?

SF: Um dia, de noite, fui pegar o “Meia Noite” para uma viagem ligeira. Ele rasgou o vento nas ventas, dentro de uma moita, bem perto de mim, que não o havia visto. Levei um susto medonho. Pensei que era a onça. Claro que tive medo, mas já saltei bem acolá, a postos. Arrepiado, um gato de assombro teria sido menos. O bicho correndo de lado, olhando para trás, ora de um lado, ora do outro. É bonito. Era de lua, no descampado, cheia. No trote ligeiro, a cara de banda, rasgando o vento, o jegue garanhão. Só os equinos correm assim, quando soltos. Acho que preparam as armas, que no boi é de frente; neles é atrás, os cascos, afiadíssimos, ao coice. Em nós é mais de frente, as mãos, os olhos. Os olhos, as mãos – armas, aqui, ó!, os pés. A palavra! O corpo inteiro, tudo é arma, homens (e vítimas!), uma arma só, o Homem. Garra, dente, unha! O olhar. Por isto é que olham de lado e para trás, equinos. Devia estar com medo da onça, o jegue garanhão, ou zombando dos outros jumentos. Eu também zombava dos outros meninos na beira do rio. Pois se o vento esturra com a gente, de noite, a gente esturra com ele. Fazia igual ao meu amigo, o jumento de lote, o meu compadre, o “Meia Noite”. O vento responde. Se o cabra for medroso, é o suficiente para mais se assombrar. Correr e cair. Ou paralisar, sem sair do canto, de medo, caído. Não tinha ninguém para ouvir, nem reclamar. Muito menos para acudir. Os cachorros latiam. Eu também latia. O vento esturrava outra vez. Eu respondia no mesmo trom. A garganta roncando até ficar rouca. Depois acalmava. Zombava de novo. O vento. Eu, os bichos de chão, o medo — reinantes.

90. Francisco: Ninguém por perto?

SF: No fim da tarde, as pessoas retornam dos roçados; de noite cedo, das casas das namoradas. Um boa-noite – é de lei. Todo mundo cumprimenta-se, muito diferente da cidade grande, que quase ninguém responde um bom-dia no elevador. Até se espantam com a cortesia. Lá, depois das oito da noite, só o silêncio. Nem luz, nem carro, nem nada. Ninguém. Podia cantar. Cantava o Forró no escuro. Berrar um poema, também podia. Assum-preto. Ninguém reclamava. Podia berrar. Berrava. Só as aves noturnas, os coriscos da noite, os cachorros e o seu animal. E o Magnificat, que sabia berrá-lo de voz grave, em latim.

91. Francisco: Coriscos da noite?

SF: Sim! As estrelas cadentes, um risco no céu, rasgando o céu de cima a baixo, reto, ou assim na diagonal, ligeiro, quase de banda, bem inclinado, no fim do horizonte. Ninguém ouve nada, só a luz, uma luz azul, esverdeando-se. Era de lei que fizesse pedidos ao corisco. Eu os fazia. Pra cima dela, é claro, que sempre os fiz. Com o cansaço, presente o seu animal, todos os sentidos são um só, um bicho único, você mesmo, faiscando, pulsando, fremindo. Ora, se você negocia com o corisco da noite, ao nome dela, não precisa esclarecer sobre os deuses. Claro que eles estão de dentro.

92. Francisco: Nunca mais peregrinou?

SF: Não. Nunca mais. Sinto falta. Já marquei viagem, mas só de boca, com mestre Antônio fazendo o apoio, a camionete carregada com umas águas...! Rapadura, paçoca de carne seca e queijo de coalho. Sim, cerveja também. E castanhas daqui, torradas no sal. E vinho, que faz bem para o coração. Qualquer dia destes, meto os pés e vou. Mas acho que isto de ter apoio e comida à vontade, ali, bem próximos, ao alcance de um grito, inibe o seu animal de aparecer. Tem que ser coisa de só. Sob a certeza do não. O homem, se for de coragem, quanto mais sozinho, mais coragem.

93. Francisco: Esse tal animal, ele aparece só se for com o sofrimento?

SF: Não deixa de ser. Mas não há um sofrimento. É tudo suportável. Desculpe, quase. A técnica, se dói a batata da perna, é chamar a dor lá mesmo, na batata da perna. A gente pega a dor, vai rodando com ela, botando para cá e para lá, domando. Mas tem que estar só. Na noite, a pé, póco-póco-póco, alternando os trocânteres para cima das alpercatas, chega num ponto em que você diz: Vem, perna! Ela dói, mas vem para junto de si! A sua perna, agora bem de juntinho, que normalmente está a léguas de distância. Você sabe de suas pernas? Claro que não! Pois ali, em viagem, sabe delas. Deixa de doer. Com palavras mansas.

94. Francisco: Palavras mansas?

SF: Isto mesmo. Veja, o meu tio Vicente, amansador de cavalos. Um dia, ele montou um cavalo muito doido. O bicho dando pulos que não tinham tamanho. Ele ali, rijo e forte, mas dizia palavras leves. O que ele dizia, eu não sei. Não dava para escutar. Mas os sons eram leves. O bicho calmou. Ele deu a volta, botou as marchas que era para botar e disse, apeando-se, batendo levemente na anca no animal, até pareciam velhos companheiros: Está manso. Sim, a patente-mor de domador de cavalos, a mais alta de lá do sertão, um grau a mais sobre a de vaqueiro. Aquele meu tio, Vicente; o finado meu pai, também Francisco; Heitor, direto de Tróia, e também este seu criado, esta patente a todos eles: domador de cavalos! Aos esturros do vento: de noite, de dia, à beira-rio ou no pedregulho da mata seca, espinhos e bromélias –, reinando, somo-los.

95. Francisco: E trocânter, o que é?

SF: Também pode dizer trocanter, oxítono. Fica na cabeça do osso do corredor, na coxa (donde nasceu Dionísio, donde padeceu Jacó a cutilada após o vau do Jaboc), o alto do fêmur, um lugar bom de trincar quando o cabra fica velho, sobretudo nas mulheres, de osteoporose. É ali que cansa e dói quando o bate-pernas é por demais. É a hora de chamar o animal a acalmá-lo. Deixa de doer. Só dá certo se for só. Na certeza da solidão. De ninguém acudir. Nem a quem se queixar. Nem remédio, nem nada. As palavras calmas. Energicamente as palavras calmas. E o medo nenhum.

96. Francisco: Não dá medo da morte?

SF: Pode até dar. O cabra não pode voltar. Este, o perigo: não pode jamais pensar em voltar. Tem que ser sem volta, póco-póco-póco, em frente. Sempre! A pisada bem firme, eu não tinha medo de nada. Nem da morte. A gente sabe que não. O seu animal garante que não. Não se trata de confiar. Há uma única palavra: certeza! Era o que eu lhe dizia. Ela dizia que sim. A certeza!

97. Francisco: Um instante: 42 quilômetros? Há peregrinações muito maiores. Canindé, você disse, 120 quilômetros; Santiago de Compostella, quase 1.000. Por que essa sua, tão curta, seria tão proveitosa?

SF: Tem sido um mistério a mais para mim. Mas veja: começava de tarde, com o Sol bem na cara, no rumo do poente. A noite, que seria o pior, ao assombro da escuridão, pelo contrário, era refrigério. Há o achamento interior, desde que na solidão absoluta. Na estrada do Canindé, centenas de carros, indo e vindo. A luz que vem, a luz que vai. Vruummm! E um bocado de gente a lorotar. Claro que o seu animal não virá nunca. O dono ganhará apenas o cansaço. O melhor lugar para peregrinar, estou certo, vai da fazenda Catuana até Nova-Russas, iniciando pelas quatro da tarde, enfiando pela noite inteira, na mais absoluta solidão. Sem levar nada. Sequer livros ou matulão. Só a roupa do corpo, uma roupa leve e as alpercatas. Nem pente, nem escova, nem nada. Ou só os livros. Acho que sim, os livros. Os livros, sim! E um perfume para os cabelos dela, quando voltar. Sempre levei os livros. Dei-lhos todos. Perfume, não, que não tinha nenhum. Nem dinheiro. Da próxima vez que for peregrinar, levarei o incenso e a mirra. Aspergirei, com as minhas mãos, os seus cabelos calmos. A risca do rosto. Primeiro um, depois o outro, os olhos. Entre olho e olho, a única possível – viagem e morte –, os lábios. De ressurreição.

98. Francisco: Poderia ser o contrário, de Nova-Russas à fazenda Catuana?

SF: Não! A viagem tem que começar pelo pior, contra o Sol, correndo atrás dele, no rumo do poente. De manhã, quando você menos espera, ele o ataca por trás, nascendo, rasgando os horizontes, de tanta luz. Isto lhe dá a sensação de que ele, Sol, ganhou a corrida. É verdade, não tem quem ande com o Sol. Ele é mais ligeiro, muito mais. Amanheceu! Você se volta e o abençoa. Pede-lhe a “bênção”, que é um novo dia! É botar os olhos lá na frente... um limiar novo. Os seus olhos grandes, de nenhuma tinta, Ela. Perfil e silhueta, um tempo veloz. Iluminação.

 

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Este, o 24º capítulo de Poética, um livro vivo, aberto, gratuito, participado e participativo, cheio de comentários que, a rigor — esta, a proposta —, os comentários, mais importantes que o texto comentado: abrir o debate, uma multivisão.

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Comentários:

ABILIO TERRA JUNIOR: Prezado Poeta Soares Feitosa, esta conversa entre Francisco, o personagem de um poema longo, PSI, A PENÚLTIMA, e o seu autor, um certo SF, que também é Francisco, é, acima de tudo, um relato, passo a passo, de uma iniciação espiritual, psíquica ou psicológica, de acordo com a preferência e a formação de cada um, de um jovem sertanejo. Ele e a natureza, só e mais ninguém. O negrume da noite, que não é tão negro no sertão, as estrelas que pontilham o céu, os contornos das casas, espaçadas, das árvores, dos arbustos, os cães sorrateiros, zelosos dos seus deveres, mas respeitosos dos seus limites. E, dentro dele, a coragem que permanece como uma guardiã altaneira e amiga, a certeza da chegada, o cansaço que o impulsiona em vez de o abater, o prazer que se sente em uma comunhão íntima com a natureza e com o seu próprio ser e a descoberta de que ambos comungam juntos de uma transcendência última, além de quaisquer convenções. E o encontro com o animal, que salta como um raio dos estertores da alma e se apresenta, puro e luzidio, como o seu poder mais oculto e latente, um feixe de músculos, pelos compactos, olhos que tudo veem, ouvidos que tudo ouvem, um sexto sentido aguçado ao último grau, e, sobretudo, um senso psíquico que compreende as leis da natureza e as leis que regem a sua formação, dele, jovem sertanejo. E este segredo permanece guardado para sempre em cada célula do seu corpo e na sabedoria que ele leva pela sua vida afora. E o resplendor do sol o atinge e o traz de novo ao mundo das casas e do aglomerado humano. E ele sabe, intimamente, que nem a igreja e nem a escola lhe trarão sequer um dízimo desta sabedoria. Um magistral texto, Poeta SF, aceite o meu abraço. Abilio Terra Junior

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ADRILES ULHOA FILHO: Poeta Soares Feitosa, peregrinei com você as 7 léguas da Fazenda Catuana até Nova-Russas. Maratona completada sem cansaço algum, pois alimentei-me do muito do seu bornal de sabedoria e inteligência, bebi e tomei refrescante banho nas poucas e mornas águas do rio Acaraú. Não me doeram os pés, nem minha pobre coluna cheia de bicos-de-papagaio. Da questão 64 até a 98 andei silente, mas firme ao seu lado. Andei com você acompanhados da enriquecedora solidão da estrada, do bom do eu-sozinho. Andei, também, olhando o céu de milhões de estrelas (vi as cadentes, a quem fizestes pedidos, e acho que todos foram atendidos lhe dando tanta sabedoria e inteligência). Vi nascer a sentença seguinte, que ouso transcrever como poema, numa parceria ausente:

Da próxima vez que for peregrinar,
levarei o incenso e a mirra.
Aspergirei, com as minhas mãos,
os seus cabelos calmos.
A risca do rosto.
Primeiro um, depois o outro,
os olhos.
Entre olho e olho,
a única possível
– viagem e morte –
os lábios.
De ressurreição.

Parabéns, amigo
Um abraço do
Adriles Ulhoa Filho

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ALCKMAR LUIZ DOS SANTOS: Soares, que beleza, sô! Leio e releio, prazeroso das imagens e das palavras! Sem meias-palavras, gostei, imenso! Abraço grande, Alckmar

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ALDO DE OLIVEIRA JR: Muito bom, Feitosa! Bom mesmo! É de uma densidade impressionante. O Francisco tem realmente uma história, não uma “aparição”. Parabéns, novamente!!! Aldo

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ALFREDO FRESSIA: Poeta, o sertão está na gente. Nas cidades também, o mesmo susto, a mesma perplexidade. Eu escrevo minhas “Urbes de Papel”, você, amigo, o sertão (de papel, de sonhos, de desamparo, de lembrança, de tempo Retrouver). E continuamos na luta – há quanto tempo já? Mais um abraço do seu amigo Alfredo Fressia

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ALINE APARECIDA LAGES TOMÁS COELHO: Bom dia! Isso me fez recordar o tempo em que morava no interior, na zona rural, e estudava na cidade. A semelhança é ainda maior quando ia passar as férias no rancho do meu avó que era distante de tudo. Lá se ouvia só o barulho dos bichos. Me lembro que quando tinha um zum zum de avião bem distante, ficávamos loucos correndo pelo terreiro para vermos o avião no céu, só um pontinho bem pequeno. Tive uma infância e adolescência dos deuses. Sinto saudades deste tempo. Hoje, sonhei que estava de volta para meu mato na garupa do trem. Foi fantástico!

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ANA PELUSO: Para um certo Francisco, saído de um livro, é mesmo difícil compreender a peregrinação fransciscana do escritor. Aliás, um personagem nunca conhece seu criador o suficiente, para lhe medir as léguas caminhadas entre a casa e o saber que só a vida traz. Só depois de pronto, é que personagem e autor se confrontam, montando guarda (ambos) numa entrevista em que Kant é lembrado e redescoberto, pelo simples fato de contar a mais pura verdade. E de maratona em maratona, sem medo (é claro! isso lá nunca foi coisa de Franciscos!), vai Francisco, o criador, poeta, profeta, sem peixeira, sem lanterna, impaciente por chegar (chegar aonde, Francisco; chegar por quê? – ainda que se explique, a dor do poeta é sempre a questão). O que dizer quando se faz companhia na peregrinação? Quando se vê cada relva; sente-se cada espera? Quando se está em cada canto, até o momento em que a alma de gato confessa, salta e ganha tempo: ela(s) e os livros do juiz. E ganha-se o galope do cavalo “Meia Noite”, sem medo de intempéries, sem cansaço ou religiões. Ganha-se o mundo por perdê-lo em cada inspiração-expiração, em cada pulsar do meio-dia, em cada estrela cadente que nos lembra do fim de tudo(?). Existirá mesmo o fim? Existirão mesmo peregrinações como essas que Franciscos e mais alguns (e aí, talvez, eu inclua muitos outros) fazem dentro e fora de si mesmos? Não, não há de existir o medo da morte. Travessias curtas são ressurreições, porque, talvez, somente os ressurrectos tenham o direito à ligeireza de um momento-átomo. Porque apenas quem viu a morte cedo demais, sabe dos momentos longos de convivência com ela, como saudade, por toda uma vida. E quem se ilumina, pelas peregrinações pré-coroadas de coragem, não vai realmente de Nova-Russas à fazenda Catuana; o contrário é sempre mais atraente, e já se está iluminado demais para fazer outro caminho. Já se viu de tudo, muito, para voltar atrás. Já se fez coroa de ramos e lírios, já se embriagou de esperança até a última célula. E pelos poros, já se goteja toda a sorte de poemas que ainda não se sabem. Latentes, como o homem era latente no menino, antes de certo Francisco sair do livro e tomar a palavra, em forma de perguntas. Curioso, esse personagem, pois não? Um boa-noite – é de lei. E de quebra, a admiração que lhe faz companhia, nessa investida contramão que se chama vida. Ana Peluso

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ANGELA TOGEIRO: Oi Feitosa, embora preferindo, oi Francisco. É sua vida? Sua busca de ser e seu próprio encontro na sabedoria que se liberta na viagem? Bastante profundo, terei de ler mais vezes para alcançar a mensagem total. Parabéns, pela inovação, idealização e sobretudo pela descrição, que me fez viajar sua viagem, daí a releitura ser necessária. Angela Togeiro/ Belo Horizonte

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ANTERO BARBOSA: Vem de longes tempos a atracção pela peregrinação, viagem custeada em homenagem ao santo, de que a mais famosa talvez termina em Compostela, na Galiza. Mas o peregrinar invadiu as areias da literatura. Camões se achou sob os rios de Babilónia, Dante incinerou a descida ao Purgatório, Carlos de Oliveira colocou-nos nos enxofres subterrâneos “debaixo do vulcão”, Verne levou-nos até ao centro da Terra e Sena propiciou a visita (peregrinatio) ad loca infecta. Mas o maior romeiro de todos, em pátria portuguesa, vem de Alcácer-Quibir e chama-se “ninguém”, e a maior peregrinação de todas cabe a Fernão Mendes Pinto. Peregrinações domésticas, de interior, alpinismos, há vários e para todos os desgostos. Agora pude sentir esta, a todos os títulos indevidamente nomeada “peregrinação adolescente”. Porque essa peregrinação já vestiu várias peles, sendo hoje absolutamente adulta. Como tudo o que vivemos, ou do que vivemos o que mais apelamos, vai amadurando junto conosco. Envelhecendo, quase. Sobrando algumas réstias de amor e muitas de humor. Gostei de fazer essa viagem. Costurada das muitas menores que fiz. Retirei (retiramos) muito tempo de idade a nossas vidas. E muitos quilos. Fingindo de adolescentes. E, mão na mão, recuei ao tempo do sertão, monte em minha linguagem portuguesa. E assim pude suportar o peso do sol, vestir a roupa da solidão, esbarrar no escuro das noites, permitir as carícias e os safanões do vento e apertar o medo na concha da mão. E agarrar o pau que amedrontava os cães guardadores de casas, e pedir água para beber café, e esmagar cansaços em águas de ribeiros. E no livor da manhã poder visionar de cima o campanário de Nova-Russas. Como um bálsamo no físico e na alma. Novas Russas!, nome estrangeiro, que me faz lembrar a Rússia e com ela nada tem a ver decerto. Mas no mais tudo provoca osmose em função de uma língua comum. Matos não será composto dos arbustos daqui, eu depreendo tojo, urgueira, giesta, mas o que importa é o que o léxico nos transporta em idênticos terrenos mentais. E isso nos permitiu, a nós dois, obter vivências e hoje reminiscências, que erguem de sempre um resplendor só imaginável por quem um dia não foi urbano. E que nos proporcionou as circunstâncias únicas de poder defrontar o animal que habita dentro de nós, poder acariciá-lo, bebê-lo, o domar porque nasceu selvagem, usar porque é nosso aliado. E concluir que, por maior desejo de rigor ou ânsia de acerto, nenhuma rememoração evita ser adúltera, sobretudo esta porque utiliza o material da escrita, o mais duradouro mas também o mais frágil e o mais infiel. Meu caro Soares Feitosa: permita-me o egoísmo de acreditar que escreveu este texto de propósito para mim. E acredite que nenhumas distâncias impedem duas pessoas de por vezes esbarrarem de forma irreversível. Grande abraço, Antero Barbosa

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ANTONIO CARLOS SECCHIN: Muito obrigado, caro Feitosa. Você adivinhou ao falar de viagens: vou ao Recife esta semana e a Paris na próxima! P.S.: Mas, certamente, serão peregrinações menos aventureiras do que as descritas na bela entrevista! Secchin

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ANTONIO SEIXAS: Viagem ao “haimi”. Amigo Soares Feitosa, sua experiência é bastante interessante. Lendo-a lembrei-me de Bashô, o eterno peregrino, a ensinar-nos o “haiku-dô” (“O caminho do Haicai”). Todo haicaista realiza sua peregrinação por tortuosas trilhas, buscando o verdadeiro “haimi” (espírito do haicai).

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ASTRID CABRAL: Peregrinação Feitosa. Meu querido amigo Soares Feitosa. Grata pelo convite de refazer via-leitura sua peregrinação adolescente. Foi um verdadeiro prazer viajar na garupa de linguagem tão fascinante. Confesso que tive até uma pontinha de inveja, pois bem que sonhei na adolescência pegar uma canoa e sair pelo mundo peitando o desconhecido. Mas, sendo mulher, sempre fui protegida e impedida de muita coisa. Primeiro o respeito ao avô, que perdi pai aos quatro. Depois o zelo do marido e em seguida cinco filhos na barra da saia. Só agora na velhice me deparo com a solidão, que como você diz (e já disse Pierre Brassence ou George Moustaki, não me lembro bem qual, naquela canção “Non, je ne suis jamais seul avec ma solitude”) é companhia fantástica. Agora não disponho mais do vigor físico para enfrentar uma peregrinação. Imagine a humilhação ou o sacrilégio, fui a Compostela em ônibus turístico!!! Tenho pra mim que a peregrinação se distingue da viagem por propiciar a descoberta de limites e forças pessoais, isso que você chama de o animal que mora na gente. Mais que o encontro com o novo de longínquas paisagens e pessoas, a peregrinação leva ao encontro da gente mesmo, o que está dentro de nós, mas escondido. É conquista mais do interior que do exterior. Uma espécie de desafio. Concorda? Ao longo de sua narrativa há reflexões inesquecíveis: é andando até doer que você se dá conta das pernas. Outra: “O prazer de fazer é que faz a diferença entre o cativeiro e a devoção”. Isso é pura sabedoria, amigo. Obrigado por repartir comigo experiência tão enriquecedora, o testemunho desse sertão conhecido tão pela rama e por isso mesmo preservado da poluição do turismo. Com a saudade.

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CARLOS FELIPE MOISÉS: Caríssimo Feitosa: Gostei demais da peregrinação adolescente do seu Francisco, no encalço da vida plena a que temos direito, na idade em que chegamos e tendo feito o que fizemos. Parabéns! Abraço fraterno do seu Carlos Felipe

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CARLOS ROBERTO LACERDA: Caro Soares Feitosa, li, com prazer, “Do relato de uma peregrinação adolescente”. É literatura de alto nível. Se concluiu, publique. Exclua, se achar conveniente, o “perguntador”. Não haverá prejuízo para a literariedade do texto. Um forte abraço. Carlos Roberto Lacerda

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CARMEN CINIRA:
Soares:
Li seu texto com certa curiosidade.
Agradou-me uma espécie de intermitência do dentro-fora/
de sombra-e-luz. É preciso reler.
Carmen Cinira

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CECILIA QUADROS: Parece que todos nós temos, em algum momento da vida, que viver um encontro com o céu em noite estrelada ou não para sentirmos sua magnitude e a sensação de pertencimento. O universo como que nos abraça, céu, terra, tudo que nos rodeia, aguçando nossos sentidos e sentimentos mais profundos. Você teve sorte de viver esse encontro aos quinze anos, quando se desperta para a vida e se tem o resto dela – um longo tempo – para lembrar os fatos marcantes vividos, como a caminhada longa e solitária noite adentro por uma estrada do interior nordestino, entre a fazenda Catuana e Nova-Russas. Com sensibilidade e competência você a descreve em “Do relato de uma peregrinação adolescente”, nos deliciando com a exposição de costumes, estórias e paisagem característica do lugar. Parabéns.

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CECY BARBOSA CAMPOS: Meu “jovem” amigo Feitosa, Do alto dos meus sessenta e seis, sinto-me no direito e com dever de protestar contra essa história de velhote. Poeta iluminado, mestre da palavra, como você e o Ascendino, não têm idade. São donos do tempo! Quanto a “Estudos & Catálogos”, que privilégio receber tanta beleza concentrada em tão poucas páginas. É preciso mais, que esta beleza se expanda em muitos livros e publicações. Também não posso deixar de citar a iconografia transcendental — Ticiano, Dürer... Imagens que se unem às imagens do texto lançado ao leitor em estado de ansiedade que só será aplacado (ou aumentado?) com um segundo número da série. Agradecimentos fervorosos. Cecy B. Campos

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CIDA SEPULVEDA: Que entrevista gostosa. Engraçado que me identifico muito com várias passagens, o meu sertão infantil e adolescente é o interior do sp, mas eu poderia dizer que sem peregrinar tantos quilômetros, peregrinei como você em busca do “animal”. Concordo que deveria ser um rito de passagem a todo adolescente, uma peregrinação. Problema é que os sertões estão povoados de paredes e imagens e os carinhas e as carinhas se deitam nas poltronas e fazem as viagens sem nenhum esforço – morte prematura da alma? E do corpo? Só fiquei ressabiada com a história do jumento em vez de jumenta? Oras, oras, “seu” Feitosa! Abração, Cida Sepulveda

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CISSA DE OLIVEIRA: Soares Feitosa, que interessante e curioso, desde a ideia, esse questionário que ao final é um relato recheado de poesia. Se tivesse o título de “Pretexto à Poesia” – talvez que parecesse óbvio – seria justo. Ao menos foi o que me ocorreu. Que viagem! Abraços, Cissa de Oliveira

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CLAUDIO WILLER: SF, que beleza! O texto é fluente como a própria caminhada! Prossiga, continue o trajeto e publique tudo em livro. Abraxas, Claudio Willer

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EDNA OLIVEIRA DE SANT'ANA: Poeta Soares Feitosa! Comovi-me com a sua caminhada por uma região que, lamentavelmente, conheço tão pouco e, à proporção que avançava na leitura, transportei-me e fiz a peregrinação junto com você. Fiquei imaginando sensações do tipo: frio, medo, fome, dor, cansaço, desconforto, desânimo, prazer, deslumbramento e, por fim, a sensação do dever cumprido. Vislumbrei no seu simples ato de andar a pé por uma região tão inclemente, uma aventura fantástica, onde o herói é um idealista e, em busca desse seu ideal, enfrenta todos os obstáculos. Parabéns, poeta! Você tem uma trajetória de vida como poucos e não é à toa que tem tanta coisa para nos relatar em forma de prosa e verso. Edna Oliveira de Sant'Ana

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EDSON BUENO DE CAMARGO: Caro SF, tenho viajado muito tempo, de um lado para outro sem saber exatamente para onde estou indo. O de bom é que encontramos grandes amigos, companheiros de viagem. Muito interessante aquela constatação da máxima de Kant, do céu estrelado, o sertão tem destas coisas de filosofia, tem mais verdade em paus e pedras, pele de lagarto, fogo fátuo, do que em muitas univer(c)idades, onde pomposos professores e doutores se reúnem para discutir o nada. Lembra também o poeta John Keats, andando a pé pelos caminhos pedregosos da Escócia. Caçando fantasmas e sombras secas, o sertão da Escócia e o sertão dos Cearás, são um grande nada às vezes. A diferença é que na Escócia chove. Falaste da companhia da solidão. O negócio estranho estar em companhia da danada. Nunca larga a gente, nem nos mais remotos rincões, nem em reuniões abarrotadas de gentes. Outra grande constatação é a da figura histórica ilibada de Joaquim Nabuco, esquecido até de seus pares, e um grande construtor não só para a causa do fim da escravidão, como deste país que é nosso. Edson Bueno de Camargo

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EFER CILAS DOS SANTOS JR: Caro poeta Feitosa, tive muita satisfação e alegria em ler esta “Peregrinação”; é uma escrita invejável e uma viagem de crescimento moral, físico e intelectual; está bem próximo de Wilhelm Meister. Percebe-se como literatura é uma linguagem universal. A mesma frase de Kant que consolava Beethoven em sua aflição, guiava o jovem sertanejo... Mais uma vez nos brinda com um texto de grande valor e beleza. Forte abraço. Efer

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ELIDIA MARIA FRANZIN : Querido poeta, me perguntas quando volto. Mas se nunca saí?! E não só. Meu coração lateja aí por dentro, no peito do JP. Outro dia, os três goianos contigo e eu, juntos duas vezes, mais de uma hora cada vez, que gosto devagar. Depois peguei-me no Zé Alcides, de coração pendido, acho que os dois, e ficamos em ménage à trois, bastante. E tem que te falo a todo mundo, essa oferenda que me transborda e passo adiante. Te louvo a poesia, homem-poema inusitado, cinquenta anos sob sete chaves até explodir assustado, fagulhas por todos os lados. Hoje, emocionada, fiz a noite de Catuana à Nova-Russas. De início, receosa, enfrentara o sol, tua poesia, depois, a bagagem, imaginei teu peso interior. Não tentei mudar de ombro. Resignei. E então caí em grande espanto ao ver que tuas estrelas não tinha pontas, só muita luz nos olhos e boca. Seguimos. Tentei prolongar a noite, ou o caminho, que fosse, sem preocupar de encontrar meu animal. Estava abismada num rei, teoricamente reinava nele, com posse de sua água, com tempo de sobra no Rio Acaraú, um banho longo. Foi nesse instante. Poesia e poeta, um ponto único. Nem aves noturnas, nem estrelas cadentes, nenhuma palavra mansa. Em voz grave, solo, o Magnificat! Meu querido poeta, tem sim quem ande com o sol. Ou o sol, te vai no rasto? Grande beijo. Elidia

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F. SILVEIRA SOUZA: Soares, que coisa bonita sua “Viagem”! Lendo, perdi até o sono. Viajava-se a pé na maior tranquilidade, não importava a hora. Agora, de veículo, é assalto a qualquer hora. Creio que o culpado de tudo é o dinheiro (naquele tempo não havia). Aliás, o dinheiro é o causador de toda essa celeuma na TV. Só fala em CPI, Delúbio, Jéferson, Zé Dirceu, correios, mensalão, Marco Valério et coetera caterva de corruptos... Como era bom no tempo do Pe. Leitão! Só se respirava estudo, saber, cultura. Um grande abraço do Silveira

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FATIMA LEAL: Meu caro poeta, até bem pouco tempo eu imaginava que só “euzinha” tinha vindo “lá do sertão”. Porque em cidade (mais ou menos) grande, são poucos os que têm coragem de revelar suas origens. Ou porque sentem vergonha ou porque têm medo da descriminação, das chacotas, dos apelidos etc. Eu já enfrentei todo tipo de brincadeiras, maledicentes ou não, mas nunca reneguei o meu rincão onde passei minha infância e que hoje eu sei, foi o tempo mais feliz da minha vida. Lá o matuto é livre para ser autêntico. Não se preocupa ou melhor, nem sabe o que é, o tal do traquejo social. Lá todo mundo fala o que pensa sem mais aquela e sem nenhum receio de ser considerado grosso, pouco sociável, ou coisa do gênero. Muito pelo contrário, lá nos matos o que mais se ignora é a desonestidade e a hipocrisia. Não há nada que o sertanejo deteste mais do que hipocrisia, falácia e salamaleques. Por essas e outras é que eu lhe agradeço muito pela matéria que enviou. Parece que voltei no tempo enquanto lia. Um retrato fiel da minha infância/pré-adolescência quando eu também fiz muitas “peregrinações” em busca da tão sonhada educação. Claro que não andava sozinha à noite, mas caminhei extensas léguas também. Talvez essas caminhadas forçadas de outrora sejam as responsáveis pelo meu vigor e disposição de hoje. Abraços, Fátima

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FLORIANO MARTINS: O diálogo da andarilhagem, delicioso. Abraxas. Floriano

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FRANCISCO CORDEIRO: Mestre Chico, pouca gente hoje em dia sabe o que é isso, fazer uma peregrinação a pé. Peregrinação de pagar promessa, ou mesmo de tanger o tempo do nosso dia-a-dia, prumode se aprumar no futuro. Andar de chouto, fazendo a vez de tropeiro, acompanhando a tropa carregada dos apetrechos de sobrevivência: farinha, rapadura, feijão de corda, feijão de moita, carne de jabá, café da Serra Grande e tantas outras coisas que falta desta convivência em leva ao esquecimento. Lá pelos meus 13 anos, algumas vezes ia passar as férias com o meu tio Cãindo Torres. Em junho de 1958 (Seca do Cinquenta e Oito), ele estava construindo o Açude Aroeiras, devia ficar a umas 4 léguas de Nova-Russas e tinha umas cinquentas pessoas diretamente trabalhando com ele, fora outras turmas independentes que estavam agregadas na construção do açude. Estava quase faltando comida. Chegou a noticia de que um trem carregado de comida estava chegando em Ipueiras. Daí meu tio preparou uma tropa para ir comprar mantimentos em Ipueiras, num total de 30 animais. Por sorte ele permitiu minha ida também, principalmente porque eu sabia ler, estava fazendo o 3º ginasial – depois fiquei sabendo disso – a ordem era ir a pé tangendo os animais pra eles não cansarem. E lá pelas 3 horas da manhã, eu, meu primo Simão Torres, Chico Sobral e o baiano Gó de Xote saímos tocando a tropa, o caminho estava simplesmente lindo com o clarão da lua, deixando tudo muito iluminado, nem rodagem era. Era um caminho mesmo. Existia quase nenhum caminhão ou qualquer outro tipo de jipe ou coisa semelhante rodando por aquelas paragens. Pois bem, chegando em Ipueiras às 7 da manhã, o trem já tinha arribado pra Nova-Russas e a carga que abasteceu o mercado de Ipueiras já tinha sido toda comprada pela gente de lá. Na mesma pisada que chegamos em Ipueiras, nos despachamos no giro de Nova-Russas, a pé tangendo os animais no chouto, ainda alcançamos o trem em Nova-Russas fazendo o descarrego da preciosa carga. Conseguimos comprar tudo que se precisava do fumo de rolo baiano a carne de jabá, farinha, arroz, rapadura, feijão tudo enfim. Carregada a tropa, já era umas 3 horas da tarde quando saímos de Nova-Russas para o Açude Aroeiras. Até hoje não me esqueço de quando chegamos à beira de um rio lá pelas 5 horas da tarde, em suas margens frondosas e centenárias oiticicas, somente areia seca com aquele forte cheiro de água de cacimba – tinha duas providenciais cacimbas e um cocho enorme feito de mulungu, onde os animais mataram a sede e nós também. Se bem que aqui e acolá a gente matava a sede com um caneco d’água em uma ou outra casa perdida naquele meio de mundo. O sol ainda estava se pondo com aqueles raios encarnados bem escuros quando a gente estava chegando de volta no terreiro da casa grande. Saindo do Açude Aroeiras para Ipueiras e depois Nova-Russas, este percurso faz um triangulo, onde caminhamos a pé constantemente em chouto uns 90 quilômetros, ou 15 léguas. Foi a maior viagem da minha vida até hoje, entre Ipueiras e Nova-Russas descobri que ainda faltavam 42 anos para chegar ao ano 2000 e comecei a divagar expandindo as ondas do tempo... Como estarei neste ano??? O que estarei fazendo e onde??... Inté mais vê. Chico Parnaibano

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JOÃO ARLINDO CORREIA NETO: Comecei a ler a tua entrevista e não consegui parar... não queria parar! Embevecido, tive que ler novamente. Penso que todo nordestino deveria lê-la. Na verdade, trata-se de um esturro lírico, um mergulho profundo no passado. Pena que nunca tenha feito tal peregrinação. O meu pai fez, meu avô também, de chinelas de currulepo, de alpercatas de rabicho. As minhas peregrinações cingem-se ao interior da alma, embora possa sentir o sol no cangote e o vento batendo de leve no rosto; alguns salpicos de chuva, na verdade gotas de orvalho. Obrigado, poeta, pelo presente. Obrigado por essa viagem deslumbrante. Um fraternal abraço. João Arlindo Corrêa Neto – Marquês do Bessa

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JOÃO SOARES NETO: Meu caro Soares Feitosa, li de um chouto só a sua peregrinação-entrevista-poema. Li com alegria. A alegria que dá ao sentir que uma pessoa capaz pode sair da sua fazenda e na Fazenda ser douto. Li com pena de não ser o entrevistador e de ter sido menino de cidade, sem o sacrifício que dá o tutano que sai dos ossos do duro ofício de peregrinar por toda a vida. Li e vi que um domador de cavalos se metamorfoseou em domador de palavras, ajustando-as em seu natural saber, sem precisar enfeitar. Elas estão no seu matulão. É só ir tirando e dispondo no papel imaginário que é a tela. Li que sua trajetória é tão rica que a inveja que tem sofrido por seu poetar é até, se possível, desculpável. Li que “avistar coisas de esperança muito larga é tentar-se ao desistir”. Mas, não desistir é ser um Camões da terra braba dos sertões e isso você o fez: “Dar novos mundos ao mundo”. Parabéns e respeitos do João Soares Neto

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JOSÉ ALOISE BAHIA: Você já peregrinou? Tudo começa com a simples pergunta. Envolvendo realidade e ficção na vida de um dos mais fecundos escritores brasileiros. O mais interessante: ele se reinventa a partir da entrevista, um gênero direto da modernidade. E, do outro lado, temos uma outra palavra: peregrinação, jornada longa e exaustiva. Eis a intertextualidade plena e genuína nas mãos de um peripatético. O diálogo criativo e imaginativo caminha com passos filosóficos. Realiza-se, noutra fonte, na sua forma, ação e metafísica: Aristóteles. Pois o colóquio dos dois Franciscos é uma aula daquilo que Aristóteles ensinava caminhando. Na moral individual aristotélica todo ser tende a realizar a sua natureza. E a sua natureza é a razão. A virtude nasce do exercício desta razão do ser e tem como morada/passagem a inteligência e a vontade, outras duas palavras que pululam no bate-papo e encontro de um homem/ menino com a sua imagem: transpor em livros uma fiel representação de si mesmo. Nisso, a razão esclarecida se encontra com o ser e o homem/menino realiza a sua natureza humana e intrínseca: torna-se um escritor. O inquilino das letras peregrinador, caminhante com prazer, faz uma reflexão incisiva sobre o início, o meio e o fim (até parece reverberar a música de Raul Seixas). Transcendental. Não tem como escapar, o seu texto é metafísico. De uma sabedoria tamanha. Grandioso como o sol, frondoso como a mangueira carregada de mangas amarelinhas. As idas e vindas de Nova-Russas, uma Maratona, desperta uma noção de tempo muito lindo. Tempo vivido, memorial, não esquecido, aquecido, relembrado e sagrado. A devoção é a jornada. E a jornada, um diálogo. O diálogo, o caminho. Não é moralista. Pelo contrário. Parece fazer questão de nos chamar a atenção, de uma maneira sutil, às iluminações/ sombras do mistério, que muitos teimam em esquecer: as origens e raízes de uma árvore verdejante. A origem como ponto de partida. Vital no envolvimento com suas histórias. Com suas leituras e viagens aflitivas. Palavras de um poeta singular: “O gostar eliminava o obrigatório”. Desta fonte brota uma juventude lúcida que dá um banho em muitos marmanjos contemporâneos metidos a bestas. Tudo isso para dizer: – Vai, Francisco, vai escrever as suas memórias. Pois o homem tem muito para nos contar e nos relata nesta entrevista acontecimentos de uma maneira maravilhosa. No sertão existe uma voz. Galopante, engenhosa, magistral e simbólica. Pétala nordestina e brasileira. Anima Mundi. Uma voz de só ares feito rosas....

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JOSÉ FELIX: Caro Sr. Feitosa, foi um prazer ler essa viagem pela infância de modo a não esquecermos as estrelas; elas existem, mesmo, apesar de a vida sedentária nas grandes urbes nos cegarem de tanta luz artificial. Todo o texto é sublime mas destaco alguns pontos:

“(...)
78. Francisco: Não estou entendendo: você fala em peregrinação, mas a rigor era um dever comparecer aos exames do colégio, sob pena de ficar reprovado. Peregrinação não pressupõe livre vontade? SF: Sim, era um dever. Tinha que ir. Em dia certo, chegar na hora certa, comparecer aos exames e auferir as notas suficientes. Mas, iniciada a viagem, tomando gosto pelo que fazia, o gostar eliminava o obrigatório. O prazer de fazer é que faz a diferença entre o cativeiro e a devoção. Ainda que o fruto seja o Mal. Só assim se explica a eficiência dos carrascos de Hitler, aliás, de quaisquer carrascos –, eles gostam do que fazem. Fazem-no melhor que o dono. Mas há quem faça o Bem. Sem paga alguma"(...)
(...)
85. Francisco: Um saci, um duende. Crê nessas coisas? SF: Nem um pouco. O animal, você o encontra quando peregrina sozinho, à noite, cansado, jejuado. Ele está dentro de você. O corpo sacrificial, o seu, os céus, estrelados ou não, que, ao mesmo tempo, chamam-no para cima e, com a mesma força, o repelem e o esmagam no rumo do chão, que também o puxa e empuxa. Você no meio, joguete de céus e terra. Não é fácil, creia-me. É quando o seu animal aflora, salta para suas mãos. É a hora de domá-lo. Ficam amigos, o animal e o dono. Acho que a peregrinação devia ser matéria obrigatória no currículo do jovem. (...)
(...)
98. Francisco: Poderia ser o contrário, de Nova-Russas à fazenda Catuana? SF: Não! A viagem tem que começar pelo pior, contra o Sol, correndo atrás dele, no rumo do poente. De manhã, quando você menos espera, ele o ataca por trás, nascendo, rasgando os horizontes, de tanta luz. Isto lhe dá a sensação de que ele, Sol, ganhou a corrida. É verdade, não tem quem ande com o Sol. Ele é mais ligeiro, muito mais. Amanheceu! Você se volta e o abençoa. Pede-lhe a “bênção”, que é um novo dia! É botar os olhos lá na frente... um limiar novo. Os seus olhos grandes, de nenhuma tinta, Ela. Perfil e silhueta, um tempo veloz. Iluminação.
(...)
O texto é lúdico e reflexivo. Dois ingredientes que fazem, seguramente, com que um texto seja para “comer”. Um forte abraço José Félix

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JOSÉ PEIXOTO JUNIOR: Vaqueiro véio. Fui contigo nessa imensa crônica poema-em-prosa, na classificação de Afrânio Coutinho. Tenho a perguntar-te, a leitura foi a criadora da pergunta: naquelas idas, acorria à tua cabeça alguma visão do teu futuro? Isto é, já vislumbravas o que perseguias? Outra pergunta: Fazenda Catuana, nome sonoro, nascestes ali? Tens ideia do significado desse nome? No item 89 chamou-me a atenção “no mesmo trom”. Esse “trom” é trom mesmo, ou é “tom”? Não, porque lá em nós, palavras tomavam outras formas. Peixoto Júnior

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LUIZ MANOEL PAES SIQUEIRA: Feitosa, li a tua entrevista e me emocionei. Eu fiz tudo aquilo ali que descreves, muitas vezes também. Varei madrugadas andando a pé, inclusive em situações muito delicadas de minha vida. Algumas vezes me arrepiava – e não sabia por que. Às vezes sentia que alguém caminhava ao meu lado, embora eu mal avistasse um metro diante dos meus olhos. Conheço isso tudo, amigo. E essas experiências me causaram uma transformação interior profunda, a ponto de me sentir perdido numa cidade grande, seja ela qual for. Aquela estória do animal... Sabe, Feitosa, não penso mais em repetir essas caminhadas. Não serão mais as mesmas. Elas estão todas, muito bem cristalizadas dentro de mim – e fazem toda a diferença do homem que sou hoje! Um abraço. Luis Manoel

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MARIA A. S. COQUEMALA: Francisco, oi, bom-dia, acabei de ler seu texto, gostei muito, me remeteu à própria infância, quando eu andava uns três quilômetros pra acompanhar meus irmãos que iam pegar o ônibus rumo à escola, e eu ficava olhando, com inveja, queria aprender a ler, mas só tinha 5/6 anos, então voltava sozinha pra casa, no sítio, trazendo o jornal do meu pai, passando pela ponte, por trechos de mata fechada, vendo bois nos pastos, uma infância também muito rica nos contatos com a natureza, daí que me enfronhei na sua pele, podendo imaginar o que o garotão de 15 anos sentia... E como você, me espantava o céu estrelado, queria saber o que era uma estrela, perguntava a todo mundo, ninguém sabia, até que numa noite inesquecível uma amiga mais adiantada na escola me explicou o espantoso tamanho, o sol, uma estrela de apenas quinta grandeza, tanta coisa... Jamais esqueci a emoção daquela noite, daí que estou sempre estudando o universo, vendo-o em maravilhosas imagens televisivas, querendo saber mais e mais... Gostei muito de conhecê-lo (nas entrelinhas do seu texto), sensível, culto, inteligente, emotivo, sou sincera, nos elogios, quando não há o que elogiar, eu apenas me calo. E gostei da sua linguagem, do seu estilo, nada de modernidades macaqueadas de G. Rosa, Clarice e que tais, ou carregadas de enigmas que cansam, ou até mesmo afastam o leitor. Pude ler seu texto com todos os sentidos, tateando, vendo, ouvindo, sentindo os cheiros, as expectativas, tudo fluindo no devido ritmo, se repetindo na oportuna enfatização, uma verdadeira peregrinação juvenil, pois você caminhava mesmo para o mais sagrado da sua vida, a sua instrução, os livros, a revelação que eles lhe traziam.... Haveria muito mais a dizer, mas não sou crítica literária, me faltam ferramentas para isso. Minha especialidade é Linguística. Um grande abraço, Maria.

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MARIA DA CONCEIÇÃO PARANHOS: Entre o Francisco e o SF havia de ter ocorrido a peregrinação: de homem mítico para homem cotidiano, do animal para o homem, do homem para o animal. Pobre de quem não quis se encontrar com seu animal e seus ensinamentos geofágicos. Sabe, meu amigo, algo tem de muito doer para se chegar à Escola, esta, digo, da vida. Sua peregrinação era para esta, você certamente o sabe agora. E conviver com a dor! Amestrá-la ao corpo e à alma. É a alegria dos tristes e o júbilo dos criadores. Para você, sempre, a mais profunda amizade, a mais doída saudade, de você, alegria. Maria da Conceição Paranhos

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MARIA DE LOURDES HORTAS: Caríssimo Poeta. Essa sua viagem é deslumbrante. Dá vontade da gente seguir o seu exemplo e botar o pé na estrada, descobrindo “o nosso animal”, tendo esses alumbramentos todos que você tão bem descreve, viagem em nossa própria companhia, debaixo do céu pesado de estrelas, varando a noite do mundo. Muito obrigada por não me esquecer. Quero-lhe bem. Abraço grande. Maria de Lourdes Hortas

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MARIO CEZAR COIVARA:
Sertão a dentro.
qualquer labareda
estancada na virga da
palavra aqui
exposta se amola
na crônica de tus
noites
repartidas

Sim, Soares. Como aclamar seus pés andantes? A raiz dos calos dizem melhor do que esta fugaz escrita porque em teu sangue está todo pó da estrada. Sim, Soares. Tua caminhada é um ensinamento porque presenciado pelo sol se pondo.

Sim, Soares.
Mando um abraço
e
continue.
Imprescindível. Os escombros já são tantos.
Mario Cezar

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MARINA LEITÃO: Meu querido Amigo Poeta! Você me surpreende cada vez mais! Você entra e sai de suas personagens, com uma habilidade extraordinária, se desdobra, se multiplica... Adorei muito “do relato de uma peregrinação adolescente”, gostei muito especialmente quando você fala: “O homem, se for de coragem, quanto mais sozinho, mais coragem”, concordo plenamente, porque é quando estamos sós, diante do perigo, do desconhecido, que nós sabemos se somos fracos ou fortes e, é só aí que o homem de coragem sabe quem ele é na realidade, porque sendo de coragem ele vai enfrentar a fera... Abraço grande para um grande POETA. Marina Leitão

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MAURO MENDES: Caro amigo Feitosa, não só espiei mas gostei demais até! Um (São) Francisco de chinelas de currulepo, saído, poeticamente, de “PSI”, entrevistando um outro SF (este, digamos, nem tão santo assim...) de sandálias de rabicho e levando um banho de sertão, como eu levei e levará quem quer que leia, é uma profecia de Isaías! Currulepo, currulepo! Só nordestino conhece isto, não há onomatopeéia mais perfeita! E o Psi grego, o candelabro? É a explicação “clássica”, definitiva, do mandacaru! Quem puder me mostre outra! Mas não é só divertida a “entrevista”, não. Apesar da linguagem jocosa, você faz um mergulho profundo no passado, uma análise psicológica de experiências difíceis da infância. A “entrevista” parece apenas brincadeira, mas não é só a perna que dói por causa do caminhar, não; há outras dores (bem superadas), escondidas nas entrelinhas... Aos 15 anos, eu também ajudava missa lá pelo Barro Vermelho e me lembro do “Sanctus, Sanctus, Sanctus, Dominus Deus Sabaoth” (Santo, Santo, Santo é o Senhor Deus dos Exércitos). Não deixa de ser desconfortável refletir sobre isto, hoje: um Javé guerreiro, belicoso, sanguinário, para o qual, inocentemente, a gente tocava a campainha... Pichelengo, pichelengo! E a estrada de Canindé? “Centenas de carros, indo e vindo. A luz que vem, a luz que vai. Vruummm! E um bocado de gente a lorotar. Claro que o seu animal não virá nunca”. Eu já imaginava isto, mas, por saudosismo, continuarei a me lembrar apenas daquela estrada onde “quem é rico anda em burrico e quem é pobre anda a pé”, como, há pouco tempo, alguns matutos contaram ao poeta Virgílio... Será que ele acreditou? Da próxima vez que for peregrinar, leve, sim, o incenso e a mirra, mas não se esqueça do turíbulo, para espalhar... E não se esqueça também do hissope, para aspergir... Você, verdadeiramente, fez a passagem do sertão para o mar! Um grande abraço! Mauro Mendes

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NEI DUCLÓS: Amigo poeta: Que radicalidade boa é entregar-se, deixar-se levar não pelas palavras (que essas exigem sempre atenção absoluta), mas pela vida, e recolher o fruto plantado arduamente na manhã fria com a pachorra da sesta obrigatória (esticando a mão a partir da rede e mais acariciar o que é colhido do que colher verdadeiramente). Deitas na cama construída com a maestria do ofício e dá o bom conselho para quem procura e não costuma achar. Lembro Quintana – ser poeta não é ler poesia, é ler os classificados, ou algo assim (citar de memória é a verdadeira citação, citar corretamente é cópia). Lembro também que costumo estocar a meninada que vive dizendo que quer estudar o que gosta. Estudar o que gosta não é estudar, provoco, isso chama-se lazer. Estudar o que não gosta é o verdadeiro desafio. Estudar latim, geometria. Ler o que dá trabalho. Ser a poesia e não o poeta. Há fartura de poetas e escassez de poesia. Sorte que tua messe é o excesso. Dele nos beneficiamos, vivemos do que podemos ser nas tuas páginas, da nossa gratidão e da amizade verdadeira que constróis ao vivo (tua noção de eternidade). Tu que és o poeta da inclusão no país da exclusão absoluta. Tu que fizeste a Bíblia da poesia em português, o grande Livro virtual onde todos nos deitamos numa fila infinita de redes. Na maior comodidade, esticamos a mão e acariciamos os frutos generosos do “Jornal de Poesia”. Um abraço do amigo Nei Duclós

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NESTOR LAMPROS: Caro Soares,
Poeta do lado da noite. Poeta que encruzilha as faces da lua nos ascendentes Leoninos. Poeta que recruza as falhas de um cavalo no salto sem varais, mas com as moças e serviços. Você que viu a noite e vive nela criando na alta dela seus textos, que nos afogam...- e precisam ainda falar? Não estão todos lá, pra lá do salto e do assalto dos seus olhos que com vidros permanecem atentos. Olhos de fogo de uma manhã cancelada.
Poeta, revi e reli seus parabelos, em cristas de ondas frescas. Me admira o seu interlocutor com asas. Me admira o seu tudo com as capitais no Nordeste, no puro apelo dos Castro Alves, em contornos avermelhados de sangue fresco. Sem medir esforços, mas com a gana do poeta que mergulhou na alma da América. Nós Ameríndios que suportamos a fome de eras. Nós que nascemos incertos. Você tem tudo ao seu favor, Poeta. No encanto crescente das figuras dos quadros, na imagem que permuta a fome de sabê–la. Às três e meia da madrugada... Ouço cavalgadas dispararem nos senhores do tudo. Tudo está por vir, Poeta.
Permanece a fome e o minério de sê–lo e esta noite o cansaço das manhãs amanhecidas no pão que comemos. Neste ou nesta fome que temos de ver o invisível. E fazer da fome da Bíblia um mais formoso Homero, na planta que nos vestimos, dos dedos da aurora nos bóreas estenóides de lírios.
Talvez Jó ainda tente ver no redemoinho uma outra poesia atenta, do estado de esquecer a dita. Ou o que deitemos fora. Ao ler nas entrelinhas dos clássicos a pena alva de viverem filhas e filhos. No lume. Na antena das raças esquecidas.
Sem nome algum, Deus existe!
Atibaia, 08 de maio de 2006

Observação:
Este comentário refere-se também a
Ma fi Allah! e Uma pequena lição de cavalaria

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NILTO MACIEL: Soares Poeta Feitosa, li a sua conversa com Francisco. Li e ouvi. Ouvi e imaginei o jovem em sua peregrinação pelo sertão. Gostosa conversa, rememoração. Para quem tem bom ouvido. Um forte abraço deste seu admirador de sempre. Nilto Maciel

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PAULO GONDIM: Meu caro poeta Soares: Rapaz, muito bom esse RELATO. Quem não conhece o SERTÃO há de fazer um curso sobre o Sertão, não tenha dúvida. Agora, essa da alma-de-gato é demais. Fazia muito tempo que não ouvia essa expressão. É Sertão puro! Parabéns. O poeta escreve muito bem. Abraços. Paulo Gondim, São Paulo

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PAULO ROSENBAUM: Salve, Feitosa dos mares. Guimarães Rosa certo do formato da linguagem falada como via da narrada te saudaria. Eu apenas registro teu talento certo de que no tempo linear fará diferença. Muita. Vai de volta uma verdadeira constatação. Paulo Rosenbaum

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PAULO DE TOLEDO: Olá, meu camarada, como tá? Infelizmente, estou mais pra Mário do que pra Oswald. Sou caseiro. Por enquanto, por pelo menos. Mas tento “viajar”, a despeito das pedras pesadas, também chamadas de realidade, amarradas aos pés. Bonita essa tua peregrinação significa! O sol realmente está na nossa frente, mesmo quando atrás. Afinal, a luz, a velocidade dela, é ele na sua mais perfeita tradução. Enfim, obrigado por me levar junto na tua caminhada. Abrações! Do companheiro de viagens, Paulo

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RAQUEL NAVEIRA: De navegação e poema. Caro amigo Soares Feitosa, uma delícia navegar sem bússola por esse diálogo poético entre os Franciscos impregnados de memória e noites estreladas. Abraço fraterno, Raquel Naveira

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RAY SILVEIRA: Caro Feitosa, estou perplexo. Cada vez mais me surpreendes. Conheço-te como um dos grandes poetas da língua portuguesa. Agora me vens com onze páginas de Memórias (que poderiam muito bem ser transformadas num belo conto), em forma de literatura de alto nível. Não preciso te dizer nada que não sinta. Nunca disse a “seu” ninguém. Sabes disso. Se ainda não publicaste, transforma isto num CONTO. Será uma obra-prima que perdurará tanto quanto “A Cartomante”, “Fita Verde no Cabelo”, “O Homem que Sabia Javanês”, “Baleia”, “Famigerado”. Se preferires deixar como está, tudo bem. Não ficará nada a dever a trechos do “Baú de Ossos”, “Balão Cativo” ou “Beira-Mar”. Do Mestre NAVA. Isso é ouro puro. Ouro de lei. Parabéns, meu amigo! Muito obrigado por me proporcionar tanto sertão (o teu é igual ao meu) em forma de Arte, nesta tarde de domingo. Um abraço. Ray Silveira

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REGINE LIMAVERDE: Como sempre, me encanto com seu texto. E estou aqui abestada, pensando em Monsenhor Tabosa e no cavalo que você levou para escola. E nos atoleiros e no cachorro latindo no pátio e no riachote, um filete magro. E nessa tal alma-de-gato! Que coisa! Regine Limaverde

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RENATO SUTTANA: Soares: Li o seu escrito (sobre a viagem) e gostei muito. Sempre achei que é necessário não só uma vez na vida, mas muitas, empreender essa jornada. Você captou bem (e, sobretudo, o expressou magistralmente) o sentimento e, por assim dizer, o espírito da viagem, e o fez até no sentido físico da palavra: a noite, o deserto, a aproximação do animal e os consequentes abalos. Quem é que pode ficar inerte? Lembrei-me do filme “Náufrago”, de Robert Zemeckis, que interessa não tanto pela figura do homenzinho ali, na ilha, a comer coco, a descobrir o fogo e depois a se lançar sozinho no mar vasto, sobre uma jangada rústica, em companhia só da baleia e do seu medo, mas pelo final realmente perturbador – em que o vemos lá, outra vez sozinho, parado sobre um cruzamento de estradas no meio de uma paisagem deserta, em pleno lugar nenhum. É pelas paisagens desertas que o homem começa? Vai para onde, para Onde, para o Lugar. Atravessar os ermos ensina. Vai o abraço do Renato Suttana

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RITA BRENNAND: Francisco MEU, estou há dias com seu texto... remoer, reler, ruminar e me emocionar... é um menino ainda! Não se fazem mais meninos como antigamente. A receita para se fazer um MACHO... Mas para se fazer um macho desse calibre tem que ser escolhido a dedo e que more nas brenhas... que ande a pé com alpargatas ou pé no chão... que conheça as sombras na escuridão, o canto de algum pássaro noturno, que mesmo com o coração batendo diz que é de alegria... nega que seja de medo... macho não teme nada... repete para si mesmo... Vai respirando a força do mato seco, a poeira já adormecida, macia, acaricia os pés. Assim se faz um macho. O estudo não atrapalha o gozo da caminhada, da proeza, da aventura, que vai sendo arquivada, pelo tato da sola dos pés... pela descoberta das estrelas... no contar das léguas vencidas. Êta cabra da peste. Depois... muitos e muitos anos depois, despeja de uma tacada só, como se fosse num filme ainda em preto e branco... bem ao jeito de antigamente, como as mulheres fortes as mães as FÊMEAS sabiam. Ah, como sabiam ! Meu beijo... amo você. Rita

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RODOLFO LOPES: Soares, voltei no tempo, meus 7, meus 15, meus 17 anos. O interior de Minas, Sul, a Mantiqueira, roça, sem luz, matas, luz de lamparina de querosene... E as longas caminhadas por trilhas, só, pé procurando o outro pé sem nunca se acharem, carimbando o solo empoeirado com a marca dos pés descalços, ou poucas vezes calçados, que o vento se encarregava de ir atrás apagando, ou amassando o barro formado pela chuva, atravessando as poças d’água, os riachos, talvez uma pinguela com um bambu na horizontal servindo de corrimão, mas indo sempre em frente por longas distâncias, indo de lugar nenhum a nenhum lugar pois que os povoados eram insignificantes. A noite de lua cheia, clara que até dava para ler alguma coisa, ou então noite de lua nova com o céu tão cheio de estrelas que não havia nele espaço para colocar sequer a ponta do dedo. Mas havia a noite escura como breu, céu nublado, muitas vezes chovendo muito, a cântaros que por aqui chove assim, sem poder enxergar nem um dedo colocado bem na frente do olho, mas caminhando sempre, carregando os pertences, alguma compra... Sempre chegava ao destino. E se voltava, inteiro, de alma lavada, pronto para outra caminhada. Os de hoje não sabem o que é isto. Muitos nem sabem que o leite que tomam em casa saiu das tetas de uma vaca, de uma cabra... Abraços! Rodolfo

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RONALDO COSTA FERNANDES: Caro Feitosa, que maravilhoso texto este seu “Do relato de uma peregrinação adolescente”! É obra memorialística, é obra de ficção da melhor cepa. É no Ceará que também se produz uma das expressões mais contundentes da poesia brasileira do momento. E você é um grande artesão e mestre das palavras. Ave, Feitosa!

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RUY ESPINHEIRA FILHO: Belo texto! Grande Feitosa: Rapaz, que beleza de texto! Fiquei comovido, pois também já andei pelo sertão, tanto de dia quanto de noite, não viajando – mas caçando perdiz. Do que me arrependo hoje, mas naquele tempo eu achava caçar muito natural. Enfim, o bicho homem é mesmo um animal predador... Em compensação, às vezes faz coisas belas – como o seu texto. Muito obrigado por tê-lo enviado a este seu amigo. Um abraço grande, Ruy

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SANDRA BALDESSIN: As suas palavras têm gume, poeta... Penetram o meu imaginário e vão iluminando algumas regiões dentro de mim que sequer sabia que existiam. O resgate dessa sua peregrinação, a lembrança de uma solidão que se fazia companheira, um tempo de ver estrelas – inclusive aquelas que nasciam dentro de você, também me conduz a uma espécie de viagem, onde reencontro o meu eu-menina. Toda essa saudade não é somente sua: é minha porque você a partilhou, porque ela encontrou eco nas minhas próprias lembranças. Talvez porque seja uma saudade transmudada em palavras. Tenho uma clareza: as estrelas ainda estão lá... e aquele menino também. Especialmente para você:

Refletindo estrelas

Gosto das estrelas.
Gosto mais ainda da palavra estrela.
A estrela não cabe onde eu possa guardá-la.
A estrela-que-se-diz cabe inteira,
desliza na língua... Se digo:
estrela,
a noite vaza céu da boca afora,
ilumina a imaginação.

Um beijo carinhoso.

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SÉRGIO DE CASTRO PINTO: Poeta Soares Feitosa: que bom ter sido ciceroneado por você nessa viagem epifânica, cheia de descobertas! E que bom ainda compartilhar com quem sabe que “a poesia é a infância amadurecida”! Sei que você começou a escrever já cinquentão. Mas tinha que ser assim para quem, durante todo esse tempo, foi sazonando os sentimentos e as palavras para servi-los ao leitor que os percorre com a alma em riste e o coração aos pulos por suas descobertas. Muito obrigado, mais uma vez, por ter me feito companheiro do seu itinerário lírico. Abraço amigo do Sérgio de Castro Pinto

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VERA QUEIROZ: Meu caro poeta, não tem como seguir seu mapa (nem mesmo sei o que seja espigato ou cancão), tem de ter um rumo e a palavra que o siga, tem de ter essa imensidão de histórias e de vida que você acumulou e recria pra gente se encantar. Como é bonito seu percurso, poeta, estamos todos lá pegando na sua mão pro medo sumir e olhando assim encantados aquele céu de astronauta e fazendo pedido pra estrela cadente. Que ela continue com você, poeta, e conosco também, nesse presente que nos deu. Um forte abraço, Vera Queiroz

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VICENTE FRANZ CECIM: Compadre Francisco, já fui: só não sei se incluo entre os “Diálogos”, de Platão, ou em “O Peregrino”, de John Bunyan, ou na “Conversa de Bois”, do nosso mano Rosa. Com afeição, teu Franz da Floresta

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WILIS SANTIAGO GUERRA: Poeta, adorei essa sua autoentrevista!! E já “capturei” uma frase de lá para um trabalho que meu filho está fazendo para a PUC, sobre peregrinações – nem precisa dizer qual, né?! Acho que você mostra ali claramente como está indo “diretim” para o mesmo lugar de onde hoje sai a melhor poesia brasileira, a meu ver, dentre a que é feita pelos vivos: a de Manoel de Barros. Outro dia falei isso de público no Rio, numa palestra de filosofia, e foi um alvoroço – só que me contestavam citando poetas mortos – claro que sua poesia está cada vez mais viva, mas eu insisto nesse fato de estarmos aqui debaixo do mesmo sol ainda, e não da mesma terra... Sabe que agora tem no Rio uma Academia Brasileira de Filosofia cheia de poetas, a começar pelo Carlos Nejar? Coisas do Rio, esta nossa velha capital imperial. E obrigado por lembrar que o Kant era poeta, sendo versos o que tem de melhor da pena dele. Por fim, não me canso de dizer como estou agradecido por você ter disponibilizado na internet os meus quase poemas, pois agora eu os tenho comigo praticamente em qualquer lugar – daí, outro dia, enquanto meu filho me mostrava os (primeiros) poemas dele, eu pude mostrar para ele os meus também, e foi muito lindo. Abraços líricos, Willis

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