Bastou escrever a historinha batraquial, um dos personagens, o poeta Rodrigo
Marques, me apareceu no escritório com um balaio de cururus debaixo do braço.
Despejou-os aos meus pés, aliás, em cima de um agravo de instrumento, da maior
gravidade, que eu, advogado, concluía.
– Veja, Coronel! [É assim que ele me chama, Coronel, por conta de “Salomão”,
um livro sem fim, mas nunca fui militar. Seria, digamos, um coronéu do
sertão.]
– ?
– Este aqui, o maior de todos, é para comemorar o nascimento de uma editora!
Edições Cururu. Os menores, cururus e “cururuas”, são os livros que vamos
editar, muitos, inclusive esse tal “Salomão” sem fim. Este outro, muito
magro, de três pernas, é para os feitiços de praxe!
– De três pernas?!
– Sim! Ele só tem três pernas, pode contar! A outra quebrou, nos solavancos
do carro.
– Poeta Rodrigo Marques, ninguém acredita mais em feitiços!
Ele garantiu que desacreditar dos feitiços não teria a menor importância.
Seriam despachados do mesmo jeito, sobretudo depois que lera, nos rascunhos
de “Salomão”, que o Coronel apaixonara-se (sem êxito, daí a urgência dos
feitiços) por uma jovem muito magra, do tempo de bancário em Quixadá. Ou,
pelo contrário, seria uma noviça, algo robusta, da época de estudante, em
Nova-Russas, na casa do Padre Leitão. Retruquei que aquilo era apenas uma
ficção muito distante, em “Salomão”. Ele rebateu que ninguém nunca sabe. O
destino seria mesmo pródigo em pregar peças, preferencialmente as mais
enlouquecidas. Por que não agora, na senectude?
– Isto mesmo, Coronel, quem garante que ela não esteja de volta e até já tenha
chegado?! A vantagem do cururu de três pernas é que ele, de andar às tortas,
por conta da perna faltante, faz tantas voltas que não acerta jamais o caminho
de casa! Fica lá, no terreiro dela, feitiçando. Escreva aqui, Coronel, o nome
dela!
– ?
– Isto mesmo, Coronel, o nome dela, neste papel. É colá-lo na boca do sapo,
pelo lado de cima, no palato, e pronto. Diga de lá, que eu escrevo daqui! Sim,
o nome, como é o nome dela?
– Poeta Rodrigo, o nome dela eu jamais o soube. Sempre que ela tenta-me a
ouvi-lo, corro com um tição de brasas e lhe apago os lábios. Beijo-os, em
bálsamo e afagos, para que não os esqueça, porque é assim que tem que ser.
Veja:
Não digas o meu nome.
Nomear-me
é prostituir o silêncio
e tu estás viva
como um altar profanado
filha de todas as vozes
impossíveis do universo.
Não digas o teu nome.
Vem
na obscura voz do tato.
[Vozes, Jaume Pont,
tradução de Casimiro de Brito.]
– ?!
– Claro que ela tem um nome, um nome doce, mas sempre o repudiei sob
infinitos apelidos. De manhã, digo-a pedra, cinzeis, pinceis. Antes do
meio-dia, é-me felinos de rua, seus sons de amar, telhados; também coisas
de olhar me apetecem-lhe como nome da tarde. E, pela noite, chamo-a sob
coisas da flora selvagem, árvores por entre a lua; milhos, vagens, bromélias
e as ardências do sol, um sol da noite; caniços e paciência.
– ?
– Bote nada não, poeta. Aliás, bote. Apenas isto: Ela!
– Só isto, Ela?
– Sim! Se for gorda, se for esbelta, tanto faz!
– Como é o nome desse “corte”, Coronel? Com que "facas"?
– Poeta, é bem no centro do peito. É daqui, ó!, que partem coisas, do centro
do peito, nomes, ou melhor, o nome. Veja, há este único, o nome dela. Eu sei
o dela; ela sabe o meu. Se ela for cega? Não tem importância. Meus olhos hão
de suprir… que… nos dela espio os meus.
O fato é que o Rodrigo Marques converteu-se num grande cururuzista, por isto
mesmo eu lhe disse:
– Poeta Rodrigo, não é justo permanecerem intactas as fábulas contra nosso
compadre cururu, um bicho tão bom. E distinto! Como exemplo, meu caro poeta
Rodrigo, a historinha da festa do céu, com o nosso compadre cururu, vamos
mudá-la:
Em vez de se esconder na viola de compadre urubu, como se fosse um malfeitor
ou um velhaco que não paga ingresso, para uma badalada festa no céu; pelo
contrário, recebeu um honroso convite a embarcar na viola desse notável
“aviador” (e planador!), o compadre urubu.
No retorno, depois de muitas presepadas na festa do céu, em vez de jogá-lo
lá de cima a se espatifar num jabuti, quebrando-lhe o casco em muito pedacinhos,
compadre urubu é que quase morreu quando um “ai-ri-bus” (pronuncia-se como está
escrito: ai-ri-bus e não erbás) invade-lhe o espaço aéreo e, na maior
brutalidade, quase o tritura, com sapo, viola e tudo, nas turbinas, de
grande barulho.
Na aflição, a viola revirada em pleno ar, foi só a conta de se despencar de
dentro o nosso compadre, o cururu. Então, o batráquio gritou lá do alto:
“Desarreda, comadre pedra!” A pedra, com medo da pancada, saltou bem acolá,
e, no salto, por baixo do salto, o jorro das águas. Compadre cururu –
tibungo! – bem lá dentro!
– Ah, festa! Ah, céus! Viva nosso Senhor Jesus Cristo! – teria dito o sapo,
as mãozinhas para cima, quando leve e fagueiro já emergia do amplo mergulho
naquela água recém. Ao que o urubu, são e salvo, gritou-lhe bem alto, num
rasante:
– Viva, compadre! Mas perdi minha viola na queda do avião!
[…]
[…]
[…]
Esta historinha, de vinte anos, tudo normal, à época. Atentem que compadre
urubu, com o estrupício do avião, botou a aeronave a pique — “na queda do
avião”, assim foi, acima.
Uma nova Estética — a estética, sim, em primeiro. Já não temos dúvida: feio,
horroroso e repugnante botar um avião a pique, ainda que com todas as violas do
mundo.
Por isto mesmo, uma reformatação, que há de ser ao "em prol", Teoria dos
Jogos, agora um jogo em que ninguém perca nada, porque permanentemente “em
prol”. Não se trata de um jogo empate, morrerem-me dez meus, já te matarei
dez teus?!
Há de ser "em prol".
Em prol.
Ponto.
[…]
[…]
[…]
— Queda, compadre urubu? Pode não! O avião caiu?
— Compadre, deixei o “ai-ri-bus” cai não cai… mas o senhor está dizendo, vou
ver o que faço! Se tiver caído, trarei a pedaceira, disse ele.
Nem deu para ver nada, só o rastro nos céus, compadre urubu chispou, pra onde
não sei, um corisco da noite teria sido mais lento. E, muito rápido
retornou:
— Compadre, dei jeito! Todo mundo em casa. O bicho abaixou na pista que chega
fez gosto! E a minha viola, compadre? Você é advogado, vamos processar o Bush
para ele pagar!
— Compadre, vou ajuntar os meninos para fazermos outra, novinha em folha, às
próximas festas. Compadre cururu vai também, é claro.
— Compadre, me diga porque você, só agora, depois de tanto tempo, mandou
salvar o ai-ri-bus? Melhor tê-lo deixado espatifar-se, não?
— Compadre, há de ser tudo em prol!
— Em prol, o que é isto, compadre, o que é “em prol”?
— Compadre, depois conversaremos. Agora, vamos cuidar de sua viola. Enquanto
os meninos não chegam para ajudar, por favor me conte como conseguiu salvar o
bichão cheio de gente.
— Compadre, sufoco grande! O bicho já vinha “relando” o bucho nos jatobás e
oitis da Serra das Matas, cai-não-cai, compadre! Sufoco.
— ?
— Pior, uma “récua” de urubus atrás, no maior frege, por certo garantindo-se à
carniça, assim que o avião despencasse no paredão da serra, do outro lado da
serra. A fedentina, muito grande, o urubuzal atrás, pega-não-pega!
— ?
— Tive que botá-los para correr, meus colegas… Não dava para salvar o
“ai-ri-bus”, ordens suas, com eles atrás, no rabicho, agoirando… “O que é que
você quer aqui, urubu-ladrão? Este bicho é nosso, a nossa janta…!”, gritaram
contra mim.
— ?
— Gritei com os meus colegas que não sou urubu-ladrão, que estava ali por ordem
do senhor Coronel.
— Coronel? Da polícia? Temos medo não! Estamos na nossa lei… bicho morto, quanto
mais fedido, mais nosso. Fora daqui, colega! Ou venha com a gente. O avião
terminar de cair, a festa é nossa, janta farta para nós todos!
— Turma, estou aqui por ordem do senhor Coronel, se ele é da polícia, isto eu
não. Sei que é gente do Conselheiro… Ele estava dentro do trem que virou no
Quixeramobim, mas escapou. Acho melh…
— ?
— Nem deu tempo, Coronel, chisparam, não ficou um. Então, o bicho já se
espatifando nas ponteiras dos paus, oitis e jatobás da Serra das Matas, vi
que o jeito era aplicar-lhe uma “bicicleta”, assim por debaixo, na tromba,
lá nele, pra mudar o giro, ganhar altura e nos safar.
— “Bicicleta”?
— Sim, compadre. Eu aprendi com o finado Pelé. Mas a minha, com os dois pés…,
eu, pendurado na tromba do ai-ri-bus, como se fosse um morcego, “bicicletando”,
empurrando o bicho pra cima… Ufa! Levantou a tromba, agora subindo — o
suficiente, dos jatobás mais altos, escapando.
— ?
— Compadre, problema inicial resolvido, fui à vidraça do ai-ri-bus falar com
o piloto, pedir desculpas, também sondar se ele se oferecia para pagar minha
viola…
— ?
— Quem disse?, compadre! Chispou! De medo. Fedido! Compadre, você sabe que a
nossa gente tem costume com catingas mas, a do senhor piloto e do avião
inteiro, paciência!
— ?
— Disse ele aos passageiros que o avião estava sob o comando de um ai-ri-bus,
aliás, de um urubu. Compadre, apesar de o avião agora aprumado, longe dos
jatobás e dos bicos de pedra da serra, cada qual o mais pontudo, gritaram que
o pobre piloto, todo fedido, bebera. Um bêbado! Que isto de urubus guiando
aviões, muito normal desde que no campo da alucinação. Ofereceram Haldol a
ele.
— ?
— O piloto, para dar uma de machão, voltou à cabine. Eu disse: Senhor piloto,
não tema! Estou aqui, ordem do senhor Coronel para levar este voo a bom termo.
Vamos tirar direto para Nova-Russas, casa do padre Leitão, tio do Coronel, onde
ele peregrinava quando adolescente, o senhor pode ler… para sossegar o seu
juízo, aqui está o panfleto… “E o meu avião, senhor?”, perguntou o piloto,
trêmulo de medo.
— 'Xá-comigo, que este bicho eu tanjo, com motor ou sem, tanto faz! Todo mundo
tomar banho, jantar e dormir, na casa do padre. De manhã cedo, ajudarei a
missa.
— ?
— A cor do piloto, se era branco se era preto? Coronel, a mãe dele deve ter
cruzado com um pé de algodão mocó, só pode ter sido, o cabra era grande, bem
amarelinho porém, flor de algodão, sangue nenhum.
— Quer dizer que o senhor é um… um… um… a… a-rubu? - perguntou. Eu disse:
— Sim, sou. Um urubu! Faço a linha da fazenda Catuana (quando chove) no Ceará,
até o ceu, transportando o meu compadre cururu. Toda festa por lá, ele vai,
dentro da minha viola. Na próxima, posso levar o senhor também. “Deus me
defenda”, disse, de mal-agradecido.
— ?
— Direto para Nova-Russas, a mesma rota em que você peregrinava, da fazendola
Catuana até a casa do padre Leitão. Apontei-lhe o panfleto em que o senhor
conta essa historinha. Se ele leu? Claro que não, a aflição era por demais.
Eu disse-lhe: “Segure essa geringonça aqui em cima que eu vou descer para
falar com o padre”.
— ?
— Compadre, desci. O padre disse: Olhe aqui, quem é você? Eu disse: Estou
olhando, padre… Ele disse: Já sei quem é! Você é gente do Chico José, meu
sobrinho, que me imitava assim mesmo. Cadê ele? Ou você é ele disfarçado de
urubu?!
— Compadre, me conte mais nada não. O padre velho, de só-saudade, devo tudo
a ele… Já chega! O meu reino por um lenço fedido, por mais fedido que
esteja! Por favor.
Eu disse: Padre, “olhe aqui”, esse bicho que está roncando aí em cima, cheio
de gente, todo mundo desarranjado de medo, o bicho caía-mas-não-caíu na
Serra das Matas…, querem um banho longo, querem jantar e querem dormir…
duzentas pessoas… mais um pouco.
— Ele disse: “Olhe aqui, banho, um banho longo? O senhor enlouqueceu? Aqui
não tem água sequer para lavar as mãos, muitos anos que não chove. Janta?
Também não. Nem café, que ainda não aprendemos a fazê-lo a seco”. — E, sem
mais, desmaiou. Fedeu.
— Compadre, me dê o lenço novamente. Conte mais não, compadre, já chega!
Dê-me o lenço outra vez, por favor.
— Então, compadre, subi de volta ao ai-ri-bus, o piloto já desesperado,
a maior fome. Disse-lhe: Aqui na casa do padre, deu certo não. Não tem
água, nem janta, nem lugar para este bicho descer. No lastro de secar
feijão, cabe não. Vamos chispar!
— Pra onde?! Fortaleza, dá certo não. As serras ao redor, este motor
pifado com a viola quebrada lá dentro; o outro já pifando, a Serra da
Aratanha? — e se benzeu — o finado Edson Queiroz, a aeronave espatifou-se
nas pedras; tem o Pico Alto, o Caga-Fogo, tudo repleto de raposas doidas,
mortas de fome, parece que de uma cantoria do Coronel — disse o piloto.
— ?
— Compadre, eu me lembrei do Piauí, cantoria sua, o nosso compadre Sol
rasgando a Serra Grande, um cânion imenso, belíssimo. Mostrei ao Piloto:
“O Sol também com sede
corria espavorido lá pras bandas do Piauí, também de sede,
ralava a barriga desta vez
espremido dentro do boqueirão por onde também passava
tonitruante o Poti,
[…]
Esticava o pescoço,
cansado e fumarento,
quase também fugindo,
de medo passava
um trem de poeira e ferro,
de cimento e tralhas,
um velho trem de cinzas,
anunciava-se num apito rouco.
aboio rasgado no chifre do marruá,
despedia-se, tristonho;
arranhava o bico das pedras...
carícia ligeira,
de quase”.
— Compadre Urubu (ele agora, de medo, a me chamar compadre!), nessa cantoria,
o Sol, um bicho super-magro que se mete em qualquer frincha e faz uma réstia,
a inutilizar total a escuridão, ralava-se todo no tal cânion (a não ser que
este seu Coronel-cantador seja um fino mentiroso… deve ser!), como é que esta
aeronave, tão larga, de uma asa a outra, envergadura de não sei quantos metros,
vai passar?! Cabe não! Passa não!
— Compadre Piloto, muito pior foi levantar este bicho pela tromba, já caindo,
rasgando-se nos paus da Serra das Matas, poôol — lá embaixo… Eu consegui na
“bicicleta dupla”, melhor que a do finado Pelé que era com uma perna só. Agora,
no boqueirão do Poti? Você me avisa, quando estiver pertinho, pego esta
geringonça, boto pra avoar de banda, assim, ó! Aqui, a minha mão… espie,
assim, os dedos esticados, o polegar para cima, a mão na vertical, lá e cá,
como quem pesa um porco…
— ?
— Compadre Piloto, só a conta! Arraste pra lá! Ligeiro, compadre, garanto, por
mais espremido que seja o tal cânion, farei este bicho virar um cangulo.
— ?
— Pedi ao compadre piloto desse um aviso aos amigos do Coronel no Piauí, o
Herculano Moraes, o Lusbell (Luiz Belo), o H. Dobal, a Adriana Lustosa e o
Dilson Lages Monteiro — li os nome deles nestes livros, Poética e Psi. Parece
que vivo ainda, somente o poeta Dilson. “Ainda?” — espantou-se o piloto. Eu
disse: “Ainda”, sim, que todos vivemos pendurados no “ainda”, mas isto, aqui
nesta historinha, não tem a menor importância. Os seus amigos, Coronel, com
“ainda” ou sem, já estavam lá, esperando, na maior alegria. Perguntaram pelo
Coronel. O piloto disse: Veio não, mas mandou um procurador muito ilustre, o
meu com… comp… compá… com… compá… padre urubu!
— O que, senhor Piloto, estás a brincar? — De fininho, sumiram, não ficou
ninguém.
— ?
— Um carro-pipa, na porta do ai-ri-bus, pacotes muitos de bucha de
melão-são-caetano, cacos de telha e galões de pinho-sol… Os passageiros e
compadre Piloto pensavam que era para refrescá-los do calorão de lá… Queriam
me dar um banho. Dispensei. Despedi-me de compadre Piloto. Ele garantiu que
na próxima festa no céu, irá. Garanta a vaga dele, por favor.
— ?
— Compadre, o cânion do Poti, rasgando a Serra Grande de ponta a ponta,
bonito demais! O senhor já esteve lá muitas vezes?
— Nunca, compadre urubu. Sequer na calçada.
— Como é que o senhor consegue?
— Compadre, escrevo de ouvido; aliás, já expliquei, aqui mesmo: “Se ela for
cega? Não tem importância. Meus olhos hão de suprir… que… nos dela, espio os
meus”.
— Vixe!
— ?
— Compadre, e pra voltar?! No calorão de lá, as minhas forças sumiram! A sorte
é que ainda tinha dois!
— Dois o quê?
— Compadre, eu vou lhe contar. Não se zangue comigo não, por favor.
— ?
— Compadre, um dia, na cidade do Recife, um poeta antigo foi a sua casa
bisbilhotar os seus livros. Saiu contando que só tinha um Castro Alves e
almanaques do Super-Pateta. Fez o maior alarde. Você tirou de letra mas,
de fato, vi pela janela, alguns livros a mais: apenas um monte de bíblias,
debaixo de sua rede, o senhor a brigar com os “traductores” dos “varapaus de
Mateus”.
— ?
— Compadre, no seu aniversário, uma de suas noras, a professora Cláudia Mota,
casada com o seu filho mais novo, o Cristiano, lhe deu um Almanaque do
Super-Pateta!
— ?
— Do lado de dentro, fizeram uma cava, de modo a caber um pacotinho, sabe o
senhor de que? De amendoins. Os amendoins do Super-Pateta! Retirei-os para
não caírem, foi o que me salvou.
— ?
— Lá, no calorão “pioizeiro”, os outros urubus amofinados, sem poder voar,
sufocados, engoli dois amendoins, efeito instantâneo, pronto, cheguei! Agora
me conte o que é o tal “em prol”. E, por favor, não se esqueça da minha
viola!
— Compadre urubu, contarei depois, prometo; quando a gente se mudar deste
livro para o Salomão. Você e compadre cururu estão convidados. O Piloto,
pode convidá-lo, será um prazer. Pronto, os meninos chegaram, vamos cuidar
de sua viola, no poço nascido com o salto da pedra, o jorro das águas,
recém.
[…]
[…]
[…]
Refeita a historinha da festa no céu, completemos com o que estava escrito
antes da queda da aeronave.
Eu disse: Mestre Rodrigo, era naquele poço do sapo que Ela tomava banho
todas as manhãs. Eu, lá de longe, amoitado por trás dos canapuns… Com uma
luneta de fundo de garrafa e talo de jerimum, contava um a um, todos os
sinais… Um, bem aqui, na perna, lá nela, assim, mais em cima…!
Rodrigo disse que os meninos, convidados pelo sapo, se ajuntaram e fizeram
viola nova para compadre urubu. Bom, dessa parte eu não lembrava, mas desconfio
que ajudei na viola do batráquio. Aliás, do urubu. Eram os restos de uma gaiola
quebrada, saída de dentro de um certo livro: Salomão. Leitor, ainda te falo
nele, Salomão.
Agora, por seu favor, uma pausa ligeira nos batraquiais para lhes contar a
entrevista com três jovens poetas de Goiás. Em tempo: muito extensa aquela
entrevista aos goianos, os homens da gráfica exigiram: texto curto! Então,
estas duas outras, com o André de Sena e com a Eleuda Carvalho.
[…]
[…]
[…]
— Um instante, senhor Coronel, um instantinho, sou eu, o seu compadre urubu!
— Diga, meu compadre. Bom-dia! Disponha.
— Compadre, o você disse que nunca andou no cânion do Poti, uma das paisagens
mais bonitas deste planeta.
— Verdade, compadre, nunca fui lá.
— Eu, tomando conta do avião, botando-o para navegar de banda, desviando as
passagens mais estreitas, tangendo-o como se fosse um cangulo… (Não é cângulo,
é cangulo mesmo), espie como o bicho é magro de banda, achatado, passa até no
"frinchal" das portas mal fechadas… Não vi quase nada…
— ?
— Estive pensando, Coronel, quero me estabelecer poeta. Escrever sobre o
cânion do Poti… Quero convidá-lo para gente ir lá, bater fotos com o meu
celular novo, anotar tudo… O senhor, então, que nunca foi lá…
— Compadre, nunca fui nem quero ir. Quem escreve de anotações, fotos,
quadros e relatórios… como é o nome disto? “Caderneta de Campo…” De quem?
Do senhor Agrimensor. Todos os poemas: um, a cara do outro… Replicam-se. A
Natureza é assim mesmo: replicação. É bom que assim seja. Deveras, se você
plantar um caroço de milho, não há de vir um amendoim nem um abacate… Vou
não, compadre! Posso até dar um passeio, desde que, sem máquina, sem nada,
de mãos abanando, sequer papel para anotar. Compadre, escrevi há muitos anos,
espie:
ao poeta,
o gesto;
no máximo, a sílaba…
ou, melhor,
o silêncio,
explosivo e indisfarçável silêncio, amor.
Botão e rosa:
róseo ou rubro,
o convite à flor.
(Convite à flor)
— Vixe!
— Compadre, no livro para o qual estamos de mudança, o Salomão, o Salo, isto
será discutido: os posicionais, algo anterior às… Sei os nomes agora não, 80
anos. As ideias em “pré” que, sequer são ideias, assim como neste…
— ?
— Escrevi nas Torres Gêmeas: “O homem limpo de coisas é a medida do homem”.
Compadre, conto com a sua presença.
— Compadre, desculpe a insistência, muitos amigos seus a me perguntarem:
Onde o senhor Coronel aprendeu essas doidices?!
— Compadre, acho que tem sido na brutal solidão… “peregrinação adolescente”,
e mais e mais e mais, não sei. Andar com uma caderneta debaixo do braço?!
Melhor contratar o Salgado para sair batendo as fotos… Se eu for escrever
encarando pinturas e fotos, ficarei preso debaixo delas… igual ao Agrimensor…
que não poderá fugir de sua Caderneta de Campo, todas as plantas, baixas ou
altas, estritamente idênticas.
— Vixe!
— O filósofo Rodrigo Rosas Fernandes disse: “O Poeta chega antes do filósofo,
que, por sua vez, chega antes do cientista!”. Aguardo você, o compadre
Cururu e o senhor Piloto, na Biblioteca do Djalma, noite do Menino, Século
Cem, de Esquilo. O filósofo Rodrigo Rosas? Também irá. O outro Rodrigo, o
Marques, o nosso cururuzista em chefe? Já disse que sim. A turma toda que
se manifestou, também. Quem não se manifestou, irá na anterior.
— Irá, no futuro; na anterior, no passado — como é isto, Coronel?
— O poeta Lorca quem ensinou, em “Esto es el prologo”, reclamem com ele,
ele sabe:
El poeta comprende
todo lo incomprensible,
y a cosas que se odian,
él, amigas las llama.
[…]
— Compadre, espere aí. Foi muito bom ter participado do resgate do ai-ri-bus, que
eu havia botado abaixo com a minha viola. Compadre Piloto me falou de um outro
avião, aliás, de vários. Um, em especial, gostaria de salvar, dos coreanos, cheio
de gente a caminho de casa…
—?
— Compadre, peça a sua nora comprar outro almanaque do Super-Pateta,
conferindo, é claro, o saquinho de amendoins, eu irei salvar o avião coreano,
compadre Piloto me falou nele, até me disse que irá também…
— Ah, compadre, este outro aí não é fácil. O seu, facílimo porque você
convenceu-se que botar o ai-ri-bus abaixo havia sido feio. Com a ajuda dos
amendoins, as suas habilidades de bicicletar o bicho para retirá-lo do bico
das pedras; depois, de espremê-lo para caber no cânion, como se fosse um
cangulo, o peixe mais estreito do mundo, ah, compadre, fácil demais.
— Qual a diferença compadre, deste daqui para aquele outro, dos coreanos?
— Compadre, aqueles que mandaram derrubar o ai-ri-bus cheio de coreanos acharam
correto, por isto mesmo, belo e heroico, encheram-se de medalhas… Teríamos que
convencê-los que, pelo contrário, feio e repugnante, imundo mesmo, dinamitar um
avião cheio de gente.
— Muito fácil, compadre, faça um panfleto, mande para eles, compre o almanaque
com os amendoins, o resto, "xa'comigo"!
— Compadre, tem jeito não… eles são velhos. Só as crianças.
— Mandar os nossos meninos para lá, compadre? Posso levá-los!
— Não, compadre. Tem que ser pelos meninos deles. Só os jovens!
— ?
— Compadre, tem outro panfleto, Uma pequena lição de cavalaria… a explicação,
nada a ver com religião: “Este, outro segredo, ainda maior, por favor: O que
nos faz humanos, a misericórdia. Aos jovens? Porque neles..., a esperança. Com
reticências?! Não são reticências. Pausas porém, como se as selás de um
'psalmo'..., uma dicção pausada — muito pausada —, desta 'Uma pequena lição de
cavalaria', assimilação”.
— ?
— Compadre, enquanto eu cuido dos amendoins da sua próxima viagem, veja o
panfleto da cavalaria, parece que nada a ver mas, tudo a ver. Um instante,
compadre, terminou de chegar uma reclamação contra compadre Cururu. Preciso
chamá-lo.
— Pronto, senhor Coronel. Estávamos, Sapolândia inteira, na maior atenção às
conversas de compadre Urubu. Bom-dia!
— Compadre Sapo, bom-dia. Neste instante, da ONG das Pedras Secas, a cobrança
de uma indenização milionária porque o senhor teria gritado contra uma
associada, assédio moral, exigindo que ela saltasse lá longe… O que nos
diz?
— Compadre, verdade verdadeira, gritei mesmo. Quando caí da viola de meu
compadre urubu, direto no rumo do cocuruto da senhora pedra, com mais de
mil, vi que ia-me arrebentar, de tão seca aquela pedra! Pedi para ela sair.
Ela, com certeza, viu o "cururuzão" lá de cima, feito o meteoro que destruiu
os dinossauros… Saltou! No salto, compadre Chico, as águas presas saltaram
para cima, sob a grande pressão de antes…, o poço mais lindo que vocês podem
imaginar. Agora, com as águas, bichos muitos, tudo verde. Comadre pedra, não
é mais pedra-seca, mas pedra-molhada, uma pedra-de-vida… O certo, compadre,
em vista dessa fartura, em vez de pagarmos o desaforo, pedirmos uma
indenização.
— Compadre Cururu — disse o Urubu —, começo a entender a conversa do senhor
Coronel…, esse tal "em-prol". Quer dizer, com o seu "Desarreda, comadre pedra",
temos agora um verdejante, d'águas?!
— Compadre, isto mesmo, onde sequidão absoluta, agora vida absoluta, nunca vi
tantos cururus (e "cururuas"!), plantinhas de todo o gênero. Mais sapos
houvessem, lá de cima, "cavando poços" na queda, “desarredando” outras
pedras. Vi que vocês aprontam o salvamento do avião que, cheio de gente,
botaram abaixo. Eu, por baixo, nas águas; compadre Urubu, por cima, nos
ares - já daremos jeito!
— Compadres, só falando com os meninos de lá. Vou mandar compadre Urubu com
os panfletos a convencê-los de que derrubar o avião, pode até ter sido
"heroico-retumbante", mas foi, antes de qualquer outro julgamento, feio e
horroroso, porque não-em-prol, isto é, foi pró-morte, mataram.
— Por que essa insistência com os meninos?
— Por que neles a esperança. Os recordes não sejam mais de matança…
— ?
— Com os velhos, nada feito, eles não acreditam. Se acreditarem, em pouco
esquecem. Só as crianças.
Fortaleza, Ceará, de noite alta, 16.4.2005
e 4.6.2023
.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.
Este, o 22º capítulo de Poética, um livro vivo, aberto, gratuito,
participado e participativo, cheio de comentários que, a rigor — esta,
a proposta —, os comentários, mais importantes que o texto comentado:
abrir o debate, uma multivisão.
— Livro vivo, como assim?
— Porque em permanente movimento, espaço aberto a quem chegar, tão amplo
como o espaço àqueles que aqui estão desde os séculos, todos em absoluta
ordem alfabética. Seja bem-vindo!
2. O Sol brigando com os paus, no crepúsculo da tarde; depois me mudei para a
aurora, os mesmos paus, agora manhãzinha, a briga para não deixar compadre Sol
passar: ANTÍFONA, no livro PSI, A PENÚLTIMA LETRA.
3. O Sol rasgando o canion do Poti, junto com o velho trem de ferro, também em
ANTÍFONA.
6. Padre Leitão, “olhe aqui”, prefácio da biografia do padre,
Os órfãos, do poeta Juarez Leitão, a quem ambos, SF e Juarez, primos, devem-lhe
o encaminhamento da educação.
CRISTINA BITTENCOURT: Lindo de novo, leitura deliciosa da continuação! Adorei, lá pelo fim, do “quero me estabelecer poeta” e das “ideias em pré”. Conforme disse seu amigo, os poetas vêm antes mesmo dos filósofos que vêm antes dos cientistas, está certo!
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ELEUDA CARVALHO: Que delícia de leitura! Este Coronel Feitosa é turuna! Esta história com final feliz pro Cururu da Fazendinha, um aço! Quero meu pedaço do bode!
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JOÃO BATISTA SILVA: Caríssimo SF, Rosa flagrou-me gargalhando entre o poeta, o coronel e o batráquio de três pernas. Como foi cedinho, o riso ficou por conta dos "felinos de rua e seus sons de amar" em riba da casa. O bom humor continuou com o vocábulo ai-ri-bus e a significativa expressão “lá nela”. Ainda era manhã e o “jorro das águas” aguçou a lembrança do poeta. Belo, meu poeta, muito belo!