Gêmeas eram as senhas das torres gêmeas
ou
O Homem limpo de coisas é a medida do Homem
Guardo no memorial dos olhos um velho trem, numa tarde de quase sol posto, entre
Senador Pompeu e Quixeramobim, Ceará, comigo dentro dele. Éramos eu, minha mãe e
tio (Adaucto), mais algumas centenas de passageiros e outro quase tanto de bichos
de vasta fauna. Num ranger súbito, lá s'estava o velho trem a se espatifar lá
embaixo, ali na curva: dez, os mortos.
Ah, meu caro leitor, se você estivesse aqui agora, veria com seus olhos o meu
arribar de beiço, fazendo o gesto: "ali", e, com as mãos, a virada do trem,
pei-pei! Contente-se pois com o meu descrever canhestro e amplie tudo com sua
imaginação, por favor.
Uma montanha de feridos, inclusive minha mãe, um galo de sangue na testa, do
tamanho de um limão, lá nela, tonta e zonza por quase um mês. Eu, uns 16 anos,
forte como um bicho bruto, ganhei apenas umas boas pancadas nas costelas — para
aprender a andar de trem! —, mangofava o tio, Adaucto, que ganhara só uns
arranhões, dizendo que a cerveja o salvara, no que a irmã (minha mãe)
recriminou:
— Foi Nossa Senhora, meu irmão, quem nos salvou! — E, ligeira, benzeu-se três
vezes e três vezes beijou os escapulários bentos. Também por três vezes,
exigiu ouvir, bem alto, a voz do filho (eu), dizendo que estava bem. Sim,
estava.
— Graças a Deus! — e três vezes se benzeu novamente — ela disse, dissemos.
Desordem plena no trem. E, em paralelo com o agora, como se o tempo fosse um
tempo-unitário — talvez até seja mesmo —, dois aviões entupidos de
trevor-suicidas: o ataque às torres gêmeas do nunca mais.
Lições? Eis o desafio: o que poderia haver de senhas comuns entre transportes
tão díspares e gentes tão distantes? Que julgados a elaborar? Dentro ou fora
dos autos, o quê?
Não, não havia terroristas dentro do meu. Era apenas um velho trem pacífico,
da linha Sul, entre Crato e Fortaleza, correndo no mormaço da tarde no
longínquo ano de 1960. A eles — o trem daqui e os aviões de lá —, comum
foi-lhes a morte. Também comuns foram-lhes coisas. Porque no trem daqui
e nos aviões de lá, as pessoas portavam e levavam coisas.
Já lhe conto como eram as coisas nossas, dentro do trem, naquele tempo. Havia
os vagões de primeira e os vagões de segunda. Na segunda classe, os bancos de pau
rústico, de conforto nenhum. Na primeira, poltronas estofadas e escamoteáveis
de um jeito que botávamos duas frente a frente, ótimas para conversar e olhar.
Em ambos os graus, de pobre ou de rico, janelas, amplas, fartas, cheias de
paisagem.
Um dia, noutras viagens, um menino chegara a se assustar com a estreitura dos
vergalhões das pontes altas, ainda lá de longe, à curva- precipício, de uma
certeza de quase não...
Por que o senhor engenheiro não botou estas pedras
bem pra longe,
as longarinas e as traves
da ponte
— no olho, a trave —
não as afastou?
Riu-se ele do susto:
— Não vai bater!
[foi o que ele disse,
malicioso, na ponta do lápis].
Não consigo confiar
— o olho —,
maldigo a régua
que poderia
ter chamado
bem pra pertinho
a paisagem, o cordeirinho,
para pousá-los
nos paus desta janela.
[Soares Feitosa - O trem e o cordeiro]
O problema não era o risco dos varões das pontes altas, calculadas de correto como
garantira o imaginário engenheiro-agrimensor. O problema eram as coisas. Surrões
de rapadura, sacos de farinha, bodetes devidamente engaiolados em cestos de cipós
trançados, chamados grajaus. Porcos, ditos bacorotes, desde que não muito taludos,
à mesma embalagem. Malas, caixas, caixotes, sacos de todo o gênero, achas de lenha,
caibros, ripas, carvão. Baforadas de cachimbos e cigarros de palha; cusparadas
ingênuas dos mascantes de fumo de rolo. Rezas, terços, cegos e cantorias. Tudo,
em suma, devidamente misturado com as gentes, porque aqui, ou pelo menos lá,
aquelas coisas eram uma coisa só: coisas & gentes — nós.
Claro que aquilo tudo não era permitido. O passageiro, da primeira ou da segunda
classes, deveria pelas normas da companhia de trens, despachar a bagagem.
Contudo, por não confiar no "despacho", nem querer pagar nada quando o peso
excedesse o limite permitido, ou ainda para desembarcar bem rápido, sem os
atropelos de esperar bagagens quase sempre extraviadas, ninguém despachava
(nem pagava!) coisa alguma. Sob um consenso mudo, ainda que pesasse em
desconforto contra todos, ninguém reclamava. Nem mesmo os fiscais do trem
diziam nada, eles também gente dali mesmo, compadres, comadres.
No trem da primeira classe não se chegava a ponto de embarcar bacorinhos, bodes
e cordeiros. Mas as malas, as caixas, os embrulhos, os pacotes, tal qual na banda
pobre do trem, lá estavam, em toda parte, no piso, por entre os bancos, em cima dos
bancos, debaixo dos bancos. Até mesmo os cabides, próprios para um chapéu ou uma
toalha, entupiam-nos com rapaduras, queijos de coalho, garrafas de
manteiga-da-terra, fardos de carne-seca, atilhos de avoantes, cestas
de ovos e alfenins.
Janelas!
E o trem no mundo.
Quando, senão quando, nessas mínimas traições do destino, o trem a se desmanchar
ao abismo. Lembro, sim — eu estava lá, dentro dele! — o bicho-trem girando,
virando, louco, manco, torto, virado, morto. Retorcido. No durante, um instante
só, de jamais apagar, eu vi uma quartinha. Sabe o leitor distinto o que é uma
quartinha? Pois já lhe conto, com sua licença:
Ora, a sede, porque afinal, somos da Seca! Naquele tempo não havia essa ideia
de vender água. Parecia-nos bíblica a obrigação de dar, gratuita, a água de
beber, de modo que soaria blasfemo cobrar dinheiro por um copo d'água. Logo,
se não havia água para comprar, quem não levasse a sua, é óbvio, ficaria com
sede. Daí a quartinha. Dita noutros cantos lusófonos moringa, bilha, bulhão,
aqui é quartinha. De barro cozido, vermelha, algumas com enfeites coloridos,
outras com o sinal do oleiro ou arabescos de santidade. Arte!, e cheias d'água,
uns quatro litros. Pesadas!
Então, por detrás de cada poltrona, tanto nos vagões da segunda como nos da
primeira, a prosaica quartinha, ali, de plantão, e um caneco de alumínio, de
uso múltiplo (para todos!) a lhe tampar a boca.
Primeiro, foi a chuva de canecos, com seus sons de chocalho. Como se os buscassem,
desesperadas por terem sido destampadas assim de surpresa — eu vi, conto que vi,
eu estava lá! — uma multidão de quartinhas aos emboleus, voando atrás dos
respectivos canecos, a se espatifarem rijas na cabeça dos viventes. As malas,
as caixas, os caixotes, e os caixões, como se subitamente enlouquecidos,
voando, caindo, ferindo, matando. Os animais de asas, também os de quatro pés,
súbitos papagaios, galinhas, araras, perus, pebas e teiús, em fuga por entre os
moribundos. Ah desassossego! Bodes, carneiros, porcos, ovos, farinhas, bolos de
feira e muita água a espoucar das quartinhas.
Contamos os mortos, dez, e socorremos os vivos, muitos. Ninguém esmagado. Os
mortos e os feridos foram-no sob a grossa pancadaria dos OVPIs, Objetos Voadores
Perfeitamente Identificados: coisas.
Depois, me mudei do velho trem para os aviões de carreira. Porcos, patos, bodes,
perus, não, nunca os vi na cabine de um avião. Contudo, um gato maracajá conto
que vi. Era um militar que retornava da selva numa época em que nem se pensava
em proteger bicho feroz. Trazia de lembrança ao filho pequeno aquele filhote de
fera. Solto. Era novinho, mas taludo o suficiente para uma boa unhada. Manso,
todavia. Ninguém lhe opôs um pio: o dono do gato, fardado de oficial, jovem e
garbo. Por cima, os tempos eram de chumbo.
Pecado meu, sou doido por gatos. Entre a repugnância do gesto em si — trazer um
bicho selvagem ali entre os passageiros — e a beleza mesma do gato, desempatei
pró fera. Acarinhei-o como se fosse a uma criança pequena. [E se fosse uma
serpente...? E... se a farda do oficial fosse falsa?]
Voltemos ao trem, por favor. Em poucos minutos, uns caminhões de carregar pedras
que trabalhavam no trecho, muitos, encostaram e subimos neles em direção à cidade,
Quixeramobim, uns 10 quilômetros, não mais. A cidade esperava-nos. Puxavam-nos à
hospitalidade. Os mortos, devidamente encaminhados em rezas; os doentes ao modesto
hospital; os demais, às casas da cidade. Tocou-nos uma casa de negros. Não, não
eram ricos. Gente modesta, não lhes guardo os nomes — afinal, eu era apenas um
adolescente —, e a quem poderia perguntar, mãe e tio, cum Christo sunt.
Um parêntese sobre as "coisas": basta proibir que os viajantes de avião levem
coisas. Nenhuma bolsa, nem maleta, nem frasqueira, nem estojos de barbear. Nada!
De mãos abanando. Nem livros, que dentro de livros cabem lâminas, revólveres,
pistolas. O homem limpo de coisas é a medida do homem.
Quem viaja de avião sabe o transtorno do monte de pacotes, maletas, berimbaus,
embrulhos que muitos carregam. É o sufoco de acomodá-los nos gavetões, sem caber,
que atrasa o embarque ou desembarque. Se o trem meu e o avião dos americanos
viajassem sem "coisas", não teríamos morrido tantos. Volto, agora, aos negros.
Qualquer descrição que tente fazer daquela hospitalidade será pura blasfêmia.
A água para lavar os pés, as mãos, o rosto, que esse negócio de banho à toa não
é coisa com que se gaste água assim sem mais nem menos. As redes e os lençóis,
modestos mas limpos. E o riso amplo. Alvar!
Desconfio que foi ali, naquela casa de negros, que me dei conta que os livros,
muitos, de Agassiz a Sílvio Romero, estavam completamente errados. O Homem é único.
Isonômico. Árabe, judeu, nórdico, nordestino, negro, mulher, tanto faz: Homem.
A isonomia absoluta. Não é apenas uma isonomia-perante-a-lei; é ela pura, total,
sem adjetivos: à face do Homem!
No dia seguinte, depois do café com tapioca, ali, quentinha, feita pela dona da
casa e filhas; o pai a nos animar em boa palestra — e palestra de nordestinos
obviamente passa pelas chuvas vindoiras — fomos todos levados à praça da cidade.
Lá, uma placa de loja que já nem lembro o que vendia. Guardo-a no memorial dos
olhos: um nome incomum nesta selva de Silvas, Oliveiras, Franciscos, Raimundos —
era Skeff.
Se ele, o dono da loja, é judeu, se é árabe? Peço até que ninguém nunca me conte.
Tanto faz! Se é ele parente do Bin Laden, primo do Saddan, sobrinho do Ariel?
Cunhado do Sharon? Pois o tal Skeff, que não lhe sei o primeiro nome, junto
com os cidadãos daquela pólis grega implantada no sertão, partilhavam, ali,
àqueles aflitos, aquela mesma sofreguidão de servir, dos negros, da noite
bem-dormida — eu, a mãe, o tio. Era a única possível... a face de Deus ...
no... Outro. Qualquer um, Deus, e todos ao mesmo tempo, Deus, incluso (e
sobretudo) o Não-Acreditado.
Ah, ia esquecendo: os livros e as revistas do avião já estarão lá dentro.
Escrevo uma ficção (Salomão) em que um prisioneiro do Carandiru (em cima de
fatos reais) funda uma Biblioteca a ser inaugurada na noite do Século Cem, de
Ésquilo. Os livros do senhor Bibliotecário Djalma, meu caro Skeff, esperam por
ti — sob todos os nomes e raças que possas ter, porque Todos é o meu nome,
porque Todas é a minha raça — na noite súbita do Século Cem, de Ésquilo!
Fortaleza, Ceará, Brasil,
16.9.2001, 5º dia a contar da queda das torres gêmeas
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Este, o 2º capítulo de Poética, um livro vivo, aberto, gratuito,
participado e participativo, cheio de comentários que, a rigor — esta,
a proposta —, os comentários, mais importantes que o texto comentado:
abrir o debate, uma multivisão.
— Livro vivo, como assim?
— Porque em permanente movimento, espaço aberto a quem chegar, tão amplo
como o espaço àqueles que aqui estão desde os séculos, todos em absoluta
ordem alfabética. Seja bem-vindo!
POÉTICA: Capa, prefácio e índice poemas e poetas comentaristas
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Próximo: Nunca direi que te amo
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Comentários:
ANA LUISA PELUSO: Depois do Hélio, do Willer, do amigo Di Cavalcanti, entro
eu com meus devaneios ao que me remeteste.
Se eu falar de sua obra como um todo, passarei a tarde sentada aqui, escrevendo,
porque para mim, de longe é o único escritor também presente na web, com uma
proposta (não seria bem esse termo) nova. Talvez o correto seja “colocador de
palavras e situações”. Ontem meu irmão e eu lemos juntos “No céu tem Prozac”
(eu pela enésima vez, ele pela primeira) e nos arrepiamos com seu canto.
Ele pela primeira vez, eu pela enésima o que me fez verter água dos olhos.
Ele jogou o corpo para trás na poltrona do escritório (coisa que ele sempre
faz, quando algo atinge seu coronário).
É isso, seus escritos são cantos! Como o teatro do Zé Celso. Com Bacantes e
Dionísio vindos de todas as partes. Vi uma Bacante despencar das gêmeas
gritando às cabras do pasto que Dionísio vencia a guerra. Vi um infante no
trem, sabendo que os deuses são ímpios.
Vi um teatro de realidade cantado, porque em cada verso de seu texto há o
que encanta, cantando.
Você, Francisco, meu amigo, meu poeta, é mais do que escritor. É escultor
de cenas.
Digo das torres, o que senti: contemporâneo no acontecimento, antigo na
intenção de homens que não prestam muita atenção ao que fazem da vida.
Para isso há de existir um certo Francisco, dito Feitosa, pelos feitos e
pela glosa, que nos mostre, senão caminhos, mas nos conte dos atalhos que
homens tomam em favor da própria preguiça/inércia diante de fatos sociais
arrasadores.
Sim, há de ter. E calo-me, pensativa diante da narrativa do susto e dor
diante do choque do trem. Diante dos choques anormais de gente contra
gente, nesses novos tempos, que sequer em número não são novos. Lá se
vão dois mil e um anos, fora os incontáveis pelos cristãos, e Nero ainda
tasca fogo em Roma.
Com o respeito, o carinho e a admiração de sempre,
Ana Luísa
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CLAUDIO WILLER: Feitosa, esplêndida prosa. A abordagem mais original,
menos cabeça de jornalista ou de professor universitário, de tudo o que
foi escrito a respeito. Quando eu digo que não é coisa de jornalista,
sociólogo, politicólogo, qualquercoisólogo, é que é o único texto que
situou isso tudo em uma perspectiva propriamente humana, escrevendo feito
gente e não feito profissional que domina algum repertório especializado.
Abrs,
Claudio Willer
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FLORIANO MARTINS: Gosto muito dessa maneira autorreferencial do que escreves,
esse grande achado do estilo, de estar por vezes remetendo ao já escrito por
ti mesmo, um fragmento do já escrito, dando circularidade à escrita.
Abraxas. Floriano
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GUILHERME NETO: Questiono-me, no primeiro registro da coluna, por que os
amigos me querem cantando novamente. Agora, “arengo” comigo mesmo por
permanecer escrevendo. É que acabo de receber “Gêmeas eram as senhas das
torres gêmeas” ou “O homem limpo de coisas é a medida do homem” – prosa e
poesia – de Soares Feitosa. Leio e releio as cinco laudas e meia.
Envaidece-me a distinção do amigo.
Há que se ser teimoso para continuar presente neste espaço. Meus
agradecimentos, caro amigo. [“Diário do Nordeste”, 30.9.2001]
.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.
HELIO POLVORA: Parábola. Feitosa, li com agrado a sua parábola sobre a destruição
das torres do capitalismo predador e o desastre de trem em que viajava um menino
imaginoso, no Ceará de 1960. E comprovei que de fato o homem é isonômico, tanto
faz o Mr. Bush quanto o Bin Laden, o Gandhi ou o judeu da prestação.
.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.
ILDASIO TAVARES: Poeta Feitosa. Danado, tu, danado, captando as analogias,
construindo e reconstruindo o real quer seja Ceará, quer seja NY, buscando lá
no fundo o seu sentimento comum à Humanitas de Cícero, de Sêneca; tu é o cão,
Poeta Feitosa! Abraços. Ildásio
.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.
IVO BARROSO: Caro Soares Feitosa, desculpe o atraso com que falo de sua
admirável prosa, mas o entusiasmo ainda é o mesmo ao fazê-lo agora. Não
poderia deixar de cumprimentá-lo pelo estilo ao mesmo tempo enxuto e sensível com
que você escreve sobre assunto tão difícil. Abraços do Ivo Barroso
.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.
J. ROMERO ANTONIALLI:
REMOENDO… “AS SENHAS DAS TORRES GÊMEAS”
Poeta amigo: Um convite teu seria intimação... É com prazer, é com
zelo, é com cuidado, que o acolho. E tomei a mim o desafio. O Hélio
Pólvora (haja senha no nome!) acendeu o rastilho. Parábola, disse
ele.
E pus-me a averiguar. Mas, antes, umas palavras mais ... íntimas.
Intimantes. Não sou psicômetra. Sinto, entretanto, em tuas palavras
parcas e fartas, um halo de algo não dito e muito profundo. E aqui as
palavras falecem. Ah! as senhas!
Chamaste-me Romero amigo. Caminheiro amigo. Companheiro de jornadear.
Sou-o. Fui-o. Sou-o. Somos amigos antigos, muito mais antigos do que
permitem, permitiriam, supor as barreiras do cartesiano tempo. Senti-o,
num momento de insight-comoção. Assombras-te, como eu, diante da
inesgotabilidade do Verbo! Viajas, mais desimpedido do que eu, nas
cascatas de luz! Comoves-te, como eu, na fímbria dos abismos de caos!
Glorificas o UM, como eu, na contemplação dos torvelinhos de sombraluz!
A emoção, quando é grande e autêntica, a tudo se impõe. Precisava falar-te
nesses termos. Hoje. Voltando ao trem, às torres. Para além do teu jeito
gostoso de falar-escrever, em que não me deterei (não hoje), gostaria de
fazer algumas reflexões tíbias sobre o que li e reli... Uma e muitas
vezes. Senti-me o caçador das senhas perdidas. Perdidas? Veladas...
Distribuídas fartamente. Holograficamente. A partir desse entendimento,
pode-se fazer uma tabela analógica, unindo o trem e a ponte de um lado
e os aviões e as torres do outro. De um lado o singular, o simples.
Do outro, o plural, o complexo.
E isso impresso em um vívido painel unificado pelo tempo-unitário.
O mesmo drama, os mesmos motivos, a mesma explicação: o coração ácido
do homem. Antes de começar, alguns momentos, algumas maravalhas de
sombraluz. – “tempo-unitário” – “dois aviões entupidos de trevor-suicidas:
o ataque às torres gêmeas do nunca mais.” – “Lições? Eis o desafio:
o que poderia haver de senhas comuns entre transportes tão díspares e
gentes tão distantes? Que julgados a elaborar? Dentro ou fora dos autos,
o quê?” – “Não, não havia terroristas dentro do meu.” – “ – no olho,
a trave –”
– “Não consigo confiar – o olho – maldigo a régua” – “Por cima, os
tempos eram de chumbo.” – “Se o meu trem e o avião dos americanos viajassem
sem 'coisas', não teríamos morrido tantos.” – “Era a única possível... a
face de Deus... no... Outro. Qualquer um, Deus, e todos ao mesmo tempo,
Deus!, incluso o Não Acreditado.” O tempo unitário! Que rege peças
diferentes (?) com um mesmo moto: as “coisas” por detrás... As mesmas
coisas, as mesmas cousas, as mesmas causas, travestidas a caráter, para
diferentes mesmas tragédias... “Se o meu trem e o avião dos americanos
viajassem sem 'coisas'...”.
“O homem limpo de coisas é a medida do homem”. O homem sem acúmulo de coisas,
de causas que se agregam a si e que buscam uma explosão em efeitos. A causa,
as coisas: “Porque (o grifo é meu) no trem daqui e nos aviões de lá, as
pessoas portavam e levavam coisas”. “Que julgados a elaborar?”. A causa, e
então o juízo, e o julgado (a coisa julgada) e o efeito. E o juízo é justo,
equânime, equalizador. Isonômico. X = X. Dor = Dor. Dor como causa, dor como
efeito. Morte = Morte. Morte recebida? Morte plantada. Terror recebido? Terror
semeado. O depois buscando inexoravelmente o antes no impulso espontâneo da
justiça. Da Justiça. Não há inocentes. Não há culpados. Não há ofensores. Não
há ofendidos. A vítima é o terrorista; o terrorista é a vítima, só que ambos
se esqueceram disso. Desse pacto trevoso. Não há inocentes. Não há culpados.
Há as “coisas” e a senha universal e intransgredível da coisa: a mesma coisa.
Nada mais, nada menos. Em verdade. O homem, isonômico. Regido pelas mesmas
leis. A lei de um é a lei do outro. Não há tergiversar... A lei do bandido
é a lei do herói: o bandido é o herói; o herói é o bandido. O palco muda,
mas conserva a senha básica, a peça a mesma, os papéis se alternam, numa
tendência à perpetuação... “Quousque tandem”, POTESTAS, “abutere patientia
nostra?” Não há tergiversar. Ninguém pode se eximir. Ésquilo deu a senha:
o sofrimento humano traduzido como responsabilidade total e inarredável
do homem, que pela culpa (hybris) (= o ter sido causa) atrai o castigo
divino (o efeito correspondente à causa). Esse tema da responsabilidade
total em tudo, por tudo, explicaria muita coisa que passa por nebulosa na
existência do ser humano. “Ele era tão bom... Por que tanto sofrimento?
Onde está a justiça divina?” Quem o pergunta, já o diz. Essa a lição da
responsabilidade. Ela nos diz que todo ser é responsável por tudo que lhe
acontece. E por mais ainda, se maior é a envergadura do espírito em ação...
Mata toda tentativa de autojustificativa. Pela raiz. Mas difícil coisa é
deixar de dar impulso à roda da alternância cármica... Mais fácil é promover
uma cruzada, dar uma de herói. Quixotesco. Como todo herói... desse jaez!
Mais fácil é escandalizar-se pelas coisas do outro e (tentar) ocultar as
mazelas da própria alma... CAUSA —» EFEITO TERROR TERROR Hiroshima, ETC.
WTC, ETC. O ETC (e Hiroshima), ainda à espreita. E atuará, se não for
lavado pelo perdão, pelo gesto de misericórdia! CAUSA —» EFEITO
O pavor-porta – O pavor do desastre consciência coletiva do menino.
“Não, não havia terroristas dentro do meu (trem)”.
Mas havia o susto, o pavor, o terror (profético) do menino...
E há o carma coletivo, e há o carma individual, e ambos se conjugam
no desdobrar-se do efeito... que chega envolto em alienante amnésia...
No sertão, holograficamente transplantada, uma amostra do mundo, do mundo-cão,
do mundo-são. O trem e o seu carma. O homem bom, lhano, e o seu coração.
Mas o sertão é diferente. O sertão, o deserto do coração do homem, é
diferente: nada tem a ver com WTC...
Ali, o negro, de coração puro, de gestos lhanos, fraternalmente acolhedores...
Ali, o oriental (de que banda do Oriente? Da do Sharon? Da do Sadam? Da
do ...? E isso importa?) com “aquela mesma sofreguidão de servir”...
Ali, o Oriente e o Ocidente iluminados por uma mesma luz... Onde isso?
No sertão, no deserto do coração homem, limpo de coisas, de cousas, de
causas. Pesadas. Pesantes. Pesares. Causas, só as leves: as do sorriso,
as da acolhida, as da simplicidade, as da sofreguidão de servir. Nunca
no brilho tredo dos ouropéis! Nunca no burburinho enceguecedor dos
cifrões! Nunca no espírito tacanho da vindita, da retaliação! Nunca
na face satânica do PODER, do póDER!... Fico a pensar se as torres
não ficavam, uma a oeste, outra a leste... Seria isso uma bruta duma
senha, não é, meu caríssimo Feitosa? Agora, arrematemos essas
considerações sobre o teu instigante conto-crônica-poema: “GÊMEAS ERAM
AS SENHAS DAS TORRES GÊMEAS”
ou
“O HOMEM LIMPO DE COISAS É A MEDIDA DO HOMEM”.
Aí, magistralmente, tu guardas as senhas identificadoras...
e a carta de navegação... O título é a chave. Não pode haver
maniqueísmos, não pode haver parcialidades. Para o cronista do
tempo-nenhum, para o cronista do holotempo. Torres duas. Torres
duais: feitas de corações limpos (que em todo lugar os há); feitas
de cifrões, que comandam torpemente o mundo. Não há heróis. Não há
bandidos. Só há heróis. Só há bandidos. Eternamente alternantes. Para
arrematar: A questão do olho! A trave no olho. O olho travado. O olho
limitado, ultralimitado. O olho relativo, sujeito às leis da perspectiva...
amesquinhante. Hora de alforria! Agora ou nunca! Agora ou... agora!
(Estou aprendendo, meu caro amigo, ainda que canhestramente, navegar
nos teus [desafiantes] mares... Estou!, não?) Do amigo e admirador de
sempre, Romero.
.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.
LUCIANO MAIA: Poeta, obrigado pelo envio do teu ensaio-conto-ponto crítico.
Bin Laden? Ariel Sharon? Pouco importa, como tu bem referes. Porém muito importa
o registro – variado, rico – que fazes dos eventos trágicos (e rotineiros...) da
vida. Abraços do Luciano Maia
.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.
JOÃO BATISTA SILVA: Caríssimo poeta SF, “Nova Iorque e Quixeramobim“,
só a isonomia absoluta e sua poesia surpreendente para tornarem semelhantes
os humanos de lá, de cá e alhures. (O homem limpo de coisas é a medida do
homem).
.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.
JOSÉ P. DI CAVALCANTI JR: Caro amigo. Comovente. Um texto mais que necessário,
quase concreto porque construído como escultura. Quisera receber sempre
“zonzeiras” assim. Primeiro, obrigado pela deferência e pela generosidade de
incluir-me entre os destinatários. Em seguida, não deixe, por favor, de mandar-me
sempre textos assim, belos, comoventes, essencialmente bem escritos. Há trechos de
fazer com que, mais que marejados, a gente traga olhos de sol-pôr com pássaros
exaustos mas felizes pousados nos bordos. Noutros, eu pensei perceber o quimérico
lugar do encontro do sol e da lua. Ansiei o tempo todo pela conclusão; fiquei
apreensivo porque queria ver como você concluiria. Valeu a pena. Parabéns e
obrigado. Um grande abraço; perdão se não respondi imediatamente, mas li e reli,
e reli, e reli... (o que farei novamente, tenha certeza). Di
.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.
NELLY NOVAES COELHO: Caríssimo e sempre lembrado Poeta. Há quanto
tempo não tinha notícias suas! Há pouco voltando de mais uma das milhentas
viagens que fiz neste ano, encontro o seu texto sobre o acidente vivido na
adolescência e o comparando com a catástrofe mundial da destruição das
Torres Gêmeas, símbolo maior do poder do Dinheiro, que tanto bem e tanto
mal vem fazendo no mundo. E o que é mais terrível: aprofundando cada vez
mais as diferenças entre os homens! Tens razão: “O Homem é único. Isonômico,
árabe, judeu, nórdico, nordestino, negro, mulher, tanto faz: Homem.
A isonomia absoluta. Não apenas uma isonomia-perante-a-lei; é ela pura,
total, sem adjetivos: à face do Homem!”. Na verdade, estamos tendo o
privilégio de viver numa época em que é facilmente percebido o fim de
uma Era que foi fantástica e abriu amplos espaços para a inteligência
do homem... E deu tão certo que criou um outro homem que já não cabe nos
limites em que foi criado e está abrindo novas veredas, a torto e a
direito... Como será o homem do futuro? Minha imaginação não ousa
pressenti-lo... O que se sente é que estamos entrando numa grande bolha
de realidade virtual... que se passa a impor como realidade concreta. Só
os poetas podem falar. Podem falar, agora e durante muito tempo ainda.
Com o abraço amigo da Nelly
.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.
PEDRO NUNES FILHO: Caríssimo Poeta Feitosa: Ao retornar do trabalho,
como de costume, apanhei a correspondência e subi. Não havia ninguém em casa.
Jantei sozinho. Galinha de capoeira ao forno e arroz branco, bem branco mesmo,
como eu gosto. Depois, sem me levantar da mesa, peguei sua correspondência.
Não foi preciso abrir porque o envelope já estava aberto. Creio que para não
assustar ninguém. Ávido como quem abre uma lata de goiabada Pesqueira,
retirei do envelope seu texto. Foi a sobremesa. Li-o com sabor. Sem parar
nem para refletir. Tudo que você escreve é muito original. Do vocabulário
utilizado à construção do texto. Impressiona-me a capacidade de perceber
o que há de singular no mundo. Coisas que aparentemente não têm importância
ganham um significado profundo no seu texto. É justamente essa maneira
diferente de perceber o mundo que lhe faz um escritor. A espontaneidade
com que fala das coisas do dia-a-dia torna sua linguagem simples, bonita
e de leitura prazerosa, muito agradável mesmo. Há um aspecto que me encanta
em você, como escritor: a capacidade de ligar e interligar fatos e universos
distantes.
No mundo tudo foi sempre interligado. Por isso, as escolas hoje estão tentando
juntar os conhecimentos que nunca deveriam ter separado. É preciso fazer uma
tentativa de preservar o fenômeno humano profundamente ameaçado no labirinto
da alienação existencial, na separação do saber especializado, no egoísmo das
atividades progressistas e produtivas. É preciso a escola esboçar uma reação
à fragmentação do saber para resgatar uma visão interdisciplinar do mundo. A
fragmentação separa as partes do todo, de uma forma brutal.
Você sabe juntar o trem velho que descarrilou serra abaixo com o episódio
das Torres Gêmeas. Aparentemente uma coisa não tem nada a ver com a outra.
Mas é só aparência. Tudo tem relação com tudo. Basta ter capacidade de
enxergar o TODO. No fundo, o que atrapalha mesmo o homem são as coisas ou
o arraigado apego às coisas. Não há dúvida de que é necessário o homem se
libertar das coisas para viver melhor e ser um pouco mais feliz.
O que está acontecendo no mundo é uma prova de que há algo profundamente
errado. É preciso resgatar as coisas do pé da serra para compreender o
mundo. Você sabe fazer isto melhor que ninguém.
Sim, ia esquecendo de dizer que texto bom é como doce de coco. A gente lê
e fica querendo mais. Terminei de ler o capítulo que me mandou e fiquei
procurando se não continuava no verso. Quando percebi que tinha mesmo
terminado, aí parei para pensar. Fiquei quase uma hora sentado à mesa,
sozinho, pensando em tudo que você havia dito. Texto bom é aquele que
provoca reflexão no leitor.
Parabéns! Pedro Nunes
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TERESA RIVERO: Soares Feitosa, gostei das janelas amplas, fartas de
paisagem. Aí se resumia o mistério do trem. Obrigada!
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