Noite, dois excertos

“Noite igual por dentro ao silêncio, Noite
Com as estrelas lentejoulas rápidas
No teu vestido franjado de Infinito”.
[Álvaro de Campos, “Dois excertos de odes”]

1.
Bromélias

Um retrato distante,
mostrei-lhe a efígie:
uma moça distinta, muito bonita.
Parece com você — disse-lhe.

Ela disse: Parece não, é muito séria.

Eu disse: “É não! Ela é
uma poeta dos aurorais,
os sóis do pântano”.

Ela perguntou se tinha bromélias.

Eu disse que bromélias, com muito
espinho e muitas
abelhas e seus ferrões,
todo o tempo, eram-lhe
[as bromélias, os espinhos, as abelhas],
eram-lhe os olhos.

Não reparei
se enrubesceu — uma liminar —,
essas banalidades do “pncd” —
o pão nosso de cada dia, o cliente ao telefone;
e então a noite tomou conta outra vez.

 

 

2. Desenhos

E todos os desenhos eram prévios.
Até mesmo o gesto:
pegar uma xícara, coisas banais,
riscar um risco, o dizer que sim,
levantar da cadeira; eram prévios
todos os desenhos.

E bebíamos e nos ríamos às coisas fúteis,
e nos dizíamos duma casinha
bem branquinha,
como se a mata, os regatos
já rumorejassem a nossos pés.

     — Que mais queres, leitor ávido de coisas?

Uma montanha? Exiges uma montanha,
que eu te fale da montanha?
Pois havia montanha,
sim; o horizonte encurvava-se ao nosso olhar,
profundamente
às coisas de que aos olhos...
                                         E eram
excessivamente prévios todos os desenhos.

Agora,
este triturador de papel.

 

Fortaleza, 13.11.1999, noite alta

 

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Este, o 23º capítulo de Poética, um livro vivo, aberto, gratuito, participado e participativo, cheio de comentários que, a rigor — esta, a proposta —, os comentários, mais importantes que o texto comentado: abrir o debate, uma multivisão.

— Livro vivo, como assim?

— Porque em permanente movimento, espaço aberto a quem chegar, tão amplo como o espaço àqueles que aqui estão desde os séculos, todos em absoluta ordem alfabética. Seja bem-vindo!

POÉTICA: Capa, prefácio e índice poemas e poetas comentaristas

 

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Comentários:

ANIBAL BEÇA: A cada dia você se encorpa às coisas da poesia. Faz do cotidiano, sonhos; e dos sonhos, poemas. Tudo com sintaxe e dicção, próprias. O prosaísmo assume ritmo plural, na cadência imposta pelo regente, que é você, nessa dança de palavras. O resultado convida-nos, a todos, a entrar e dançar sem cerimônias. Dessacralizando o solene, flechando com o aparente ordinário do dia a dia, as sobras sem importância. Tudo é matéria de poesia. Concordo. Difícil, em toda obra de arte, é reciclar a matéria poética. Mas em você, essa habilidade tem se assumido constante. Parabéns. Grande abraço.

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ANDRÉ SEFFRIN: Meu caro amigo Feitosa: E cá estou eu, “leitor ávido de coisas”, fruindo seus dois novos poemas. Não tenho o que dizer. Que dizer? “As bromélias, os espinhos, as abelhas”. O resto é silêncio. Abraços de seu fiel leitor, André Seffrin.

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ELIZABETH LORENZOTTI: Soares, vejo que o poeta continua esbanjando inspiração por essas noites altas. Muito lindas poesias, melhor ainda lê-las ao chegar num plantão dominical deste vetusto órgão de imprensa do qual sobrevivo. Poesia, salve a Poesia, só ela, sabemos, pode nos salvar.

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FLORA FERREIRA: Soares, brilhante essa noite alta em Fortaleza. E essas bromélias que fazem enão fazem parte da Flora nesse seu enredo me enredaram até o fim. Valeu poeta, parece que Fortaleza tem um veio lírico muito intenso e vasto. Já conheci dois poetas extraordinários daí. Até me apaixonei por um [pelos poemas]. Isso aí deve ser um paraíso tanta inspiração. Sete anos de pastor Jacob servia a Labão, pai de Raquel, serrana bela... Será para tão longo amor tão curta a vida? Então curta... Um abraço de bromélias pra você.

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GIZELDA MORAIS: Que bonito! Adorei os poemas, em especial o segundo – Os desenhos. Gosto também da expressão – noite alta – com que você os conclui, pois criam o clima perfeito para que as palavras se soltem e saiam por aí, buscando as almas que estão à espera delas. Gostaria de devolver a mensagem com um poema meu, mas já vai longe o tempo em que deixei de criá-los. Ao optar por ser professora de Literatura (sou advogada por formação primeira) meu cotidiano encheu-se de tantas belas poesias que passei a sorvê-las ao invés de criar outras. Porém, continuo sentindo enorme felicidade sempre que vejo alguém escrevendo, seja lá o que for, principalmente poesias. Tenho alunos jovens e maravilhosos, sonhadores, temos tardes inteiras de poesia. É muito belo ver a luz brilhando nos olhos deles, quando descobrem algum novo poeta.

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HILTON DEIVES VALERIANO: Poeta Soares Feitosa, escrevo para saber como andam as coisas. Mesmo sem ter obtido resposta do e-mail anterior. Relendo seus panfletos poéticos lembrei de sua grande atividade de divulgação de poesia. Em um mundo utilitarista como o nosso seu amor pelas letras torna-se heroico. Estou cursando o mestrado na Unicamp, sempre divulgo seu trabalho e seu nome. É uma pena que a academia na maioria das vezes é míope para a poesia e trabalhos como o seu. “Noite, dois excertos”: a poesia como desvelamento. As exigências do cotidiano (o maldito funcionalismo!) como ruptura dessa dimensão. Lírica moderna sem abandonar a tradição: eis sua poesia. Lendo sobre a biblioteca Cururu, não pude deixar de pensar no Mindlin. Se você ainda estiver publicando esses panfletos não esqueça de mim, pois tenho muito carinho e sinto grande prazer em lê-los. Eles possuem lugar especial em minha modesta biblioteca. Seu amor pela poesia me causa grande admiração, poeta. Estou cursando uma disciplina sobre Baudelaire. Trata-se de um estudo sobre a leitura de Walter Benjamim a respeito desse grande poeta. Através dessa disciplina conheci os “Cantos de Maldoror”, do poeta Lautréamont. O que você acha desse poeta francês? Estou também lendo Garcia Lorca. Grande poeta. Muita coisa se passou desde a última vez que conversamos, entre elas o nascimento de meu filho. Um abraço.

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ROSEL SOARES: Poeta! A facilidade com que as palavras furam meus/nossos olhos, ouvidos, cérebros e corações deve-se unicamente a escolha acertada que você, lapidador, empreende durante as “altas noites” do Ceará. Eu me impressiono, verdadeiramente eu me impressiono. E é uma sensação gostosa da porra estar lendo versos seus. Por exemplo: tu sabes que minha situação financeira não está nada boa. Mas enquanto ouvia você falando que “...agora de manhã, mostrei a advogada, ela trabalha aqui comigo”, juro que esqueci do “pncd” e vivi (por instantes, é verdade!), como o mais abastado dos homens aqui na Terra. Esqueci do que podia esquecer e lembrei do que devia lembrar. Viajei!... Conclui-se: você é um ilusionista, um enganador, um homem cuja crueldade parece não ter fim. Por que tanto talento para tanta maldade? Mas queremos ser iludidos (precisamos), enganados (é importante) e aniquilados (é morte feliz) por causa de seus versos satânicos. Escreva-me mais! Mande-me novos versos! Pois, se o “pncd – pão-nosso-de-cada-dia” está sendo difícil de arrancar do solo canadense (estou sendo dramático demais, aplique o desconto!), que pelo pelo menos a “pntd – poesia-nossa-de-todos-os-dias” não nos seja negada. Pois que já me sinto dono dos teus versos. Vai ver o processo é esse mesmo. Escreveu, desenhou, computou, publicou..., já era, não te pertence mais. É de quem lê, aprecia, cita, divulga... Fiquei feliz porque você manteve o verso “Ela perguntou se tinha bromélias”. Perfeito! Não sei criticar poesia (ainda bem!). Mas sei quando um verso vale a pena! Abraços sinceros! Rosel

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W. J. SOLHA: “— Que mais queres, leitor ávido de coisas?
Uma montanha? Exiges uma montanha,
que eu te fale da montanha?
Pois havia montanha," - ISSO FOI DE MESTRE, MESTRE.
[Face, 7.7.2023]

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