Nordestes

[Porque a Lei federal 9.532/97 revogou as isenções tributárias dos tijolos de barro amassado, das telhas vãs, da madeira bruta, dos chapéus de palha, dos cestos rústicos, dos sapatos do recém-nascido e do soro de veneno de cobra.]

Sem casa, porque os tijolos te seriam
o barro amassado com os próprios pés;
não os terás, porque teus pés, Filoctetes, trazem
todas as chagas desde o Dilúvio, ó filho de Caim!

Sequer um pau-a-pique, madeira bruta,
4 telhas
vãs, uns ripados seriam portas, que nunca o serão,
porque esses produtos, luxo extremado,
não são isentos
do Imposto sobre Produtos Industrializados

Nem um cesto rústico para ajuntar
umas raízes selvagens,
algumas palmas de espinho
para matar, na baba e palma,
a sede Seca – nem um cesto de palha
da carnaubeira terás, do tucum, do coqueiro,
nem da pindoba, Moisés, os juncos nem, porque
os homens gritaram: – Agora é dele, tudo!

Todas estas árvores, todos estes montes,
(disseram os recéns)
e os chãos também pagarão
as moedas, trinta e três, – onde o oleiro? –
ao Imposto sobre Produtos Industrializados.

E a cabeça de Francisco Severino – não seria José?
será relento, a cabeça,
porque este chapéu de palha não te é mais isento
do Imposto sobre Produtos Industrializados.

Sagrarás, ó imundo, o chão da Pátria com o canto
do teu cour'e-osso,
porque a rede – nem a viola – não é, a rede, isenta
do Imposto sobre Produtos Industrializados.

Carcomido por dentro e por fora:
teus vermes, tuas malárias, aos miracídios;
e, por último
a serpente te alcançará o pé –
porque do teu flanco,
só do teu,
o soro!

Dois paus truncados, em madeira embrutecida,
o tributo bruto, te serão pouso
e vingança.

E o sapatinho de crochê do teu primogênito.
[...]
Teu Unigênito.
[...]
também pagará.
[...]
Ora pro nobis.

 

 

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Este, o 21º capítulo de Poética, um livro vivo, aberto, gratuito, participado e participativo, cheio de comentários que, a rigor — esta, a proposta —, os comentários, mais importantes que o texto comentado: abrir o debate, uma multivisão.

— Livro vivo, como assim?

— Porque em permanente movimento, espaço aberto a quem chegar, tão amplo como o espaço àqueles que aqui estão desde os séculos, todos em absoluta ordem alfabética. Seja bem-vindo!

POÉTICA: Capa, prefácio e índice poemas e poetas comentaristas

 

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Comentários:

OFICINA: “Nordestes”, plurais, sim, mais que esta região miserável – ianomâmis e outros matos-mata-matam –, a Pátria, um nordeste só, amplo e singular-plural. Essas isenções do IPI, a Constituição de 46 as registra: “Mínimo indispensável à habitação, vestuário, alimentação e tratamento médico das pessoas de restrita capacidade econômica”. A Lei nº 9.532/97 as revogou. Fiz o poema, postei, divulguei; mandei para eles (Receita Federal, fui de lá, concursado Auditor, até dia destes).
Com vergonha ou sem, mesmo revogadas (justo para darem o bote), até hoje, não cobraram o IPI desses produtos, mas simples “canetada”, basta um decreto, cobrança imediata. O meu protesto? Serviu. Nunca disseram nada. Sim. Serviu.

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ADELAIDE LESSA:

“Tijolo de barro,
porta madeira,
cestinho de junco,
chapéu de palha,
rede sem viola,
soro de veneno de cobra,
sapatinho de crochê do Primeiro Filho,
cruz à beira da estrada,
Ora pro Nobis, Castro Alves de joelhos
sobre o chão da Pátria, hoje, 7 de setembro de 1998.
E também acima do chão.”

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ANÍBAL BEÇA:

[Para Soares Feitosa que moldou em poesia nefandos reflexos de uma lei espúria]

Desde sempre
a cobra morde o próprio rabo,
e tudo recomeça e se acaba
numa mandala girante,
e vira e mexe e volta,
e vai ser bruta matéria
refinada pelo papo
de alguma pelikan
sangrando de azul
as penas de garças afoitas:
folhas brancas em campo blau.

À bênção poeta!
Tudo é tema para poesia.
Teu tributo é teu poema,
que pagas no reverso do verso
e se abusa da paciência
e dos cegos aspeados de plantão.
Onde, os dracmas
dos donos do drama?
Com Mandrakes?

Tua pena não se aluga
se doa a Bil que é Severino,
e a Ribamar que é José
saídos de ventres marianos.

No circo
erras pelo picadeiro,
e ficas com os atirados
às feras de sempre:
retirantes do barreiro,
os mesmos moldados
filhos do barro
barrotes do oleiro-Mór – Ele.

E os outros assistem
da plateia
a argila se derretendo
viscosa
para o repasto ardiloso
dos leões famintos.

Dai a César então
os muitos partos,
a moeda nascitura
cesariana
bem-vinda de dúvidas
no fórceps da dívida.

Ó tributário rio
contrariando Heráclito
tu voltas em eterno retorno
e deságuas nas mágoas
de versos ressequidos
para a goela de muitos orós
para as águas grandes
de marombas manjedouras
de palafitas alagadas
em alugadas preces.
Até quando abusarás?
(Anibal Beça)

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ERNANI GETIRANA: E aqui mais um poema nessa linguagem-raiz, que quanto mais dita mais... necessária. As várias nuances e indicações bíblicas nos remetem a uma releitura num nível semântico e histórico onde os personagens-povo desfilam reclamando por justiça. É a famosa introspecção de “Eu” poético num eu impessoal mas, ao mesmo tempo, restabelecido, esse eu impessoal, numa postura de alterego do poeta. Falando assim parece complicado mas basta dizer que é como se os personagens tomassem “de pena” (caneta) do poeta e dissessem suas verdades e o poeta gritasse: “mas era isso que eu queria dizer, meus irmãos de saga”, Sagarana? “serTÃO assim, como essa fome enjaulada que habita em mim?”. Digo em um de meus poemas. SF escreve como se fôra um menino astuto que acabasse de criar um brinquedo e ficasse ali do lado da criatura a pensar, fui eu? Todo bom artista tem essa mesma sensação após “parir” sua obra. “Parla”, meu caríssimo poeta!

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FRANCISCO JOSÉ AGUIAR MOURA: Caro poeta, como não tenho palavras diante de tanta beleza e consciência, tomá-las-ei emprestadas: “Canto das Três Raças”; interpretação magistral da saudosa Clara Nunes: “Esse canto que devia ser um canto de alegria, soou apenas como um soluçar de dor. Ôôôôôô!”.

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IVONE ALENCAR: De onde vem tanta sensibilidade? Não repousas? Porque tudo te inspira. Ôooo injustiça com nós, pobres mortais.

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JOÃO BATISTA SILVA: Nobre SF, “Nordestes”, para incontáveis visitações. “Do Éden a Patmos, duas vezes trinta e três. Dois paus truncados, em madeira embrutecida, o tributo bruto, te serão pouso e vingança”. Inumeráveis domingos de reflexão. Grato!

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JOCA DA COSTA: Li e vi que o poema é de profeta, daqueles Ezequiéis, que cavoucam pedras no caminho do messias; é todo um evangelho, o de nossa sina; é bíblico, com altar no qual a alma curva-se em oração. Gostei imenso e comovido. O prazer estético também pode ser repor justiça ao mundo, além de adoração.

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LUCIANO LANZILLOTTI: Belo, meu poeta, muito belo!

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LUIS ANTONIO CAJAZEIRA RAMOS: “Nordestes”! Eita que seu poema despertou poemas nos leitores. Poesia que rende poesia! Não preciso dizer mais.

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MARIA DE LOURDES HORTAS: Como diz o ditado: “Pela aragem já se vê o que virá na carruagem”! Aplausos, Poeta.

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REGINA VIEIRA DE SOUZA: Há o que duvidar em termos regionalistas, reflexo de apego à terra natal, ao rincão brasileiro? Seria talvez exagerado considerar o poema como épico, no entanto, os elementos cristãos e as intromissões da fala aí estão para lembrar as grandes epopeias. Os versos que aludem a Francisco Severino, lembram, embora não intertextualizem o velho Drummond: “E agora, José?”.
Dizer mais desta poesia, tão rica em desdobramentos, imagens e inserções vivas de lembranças passadas? Não, melhor é calar-me e “de mim, para mim, comigo” perguntar:
– E, agora, Soares Feitosa, o que mais nos virá desta sensibilidade arguta e suscetível de percepções?

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STELA FONSECA: Poeta amigo, você se supera a cada novo poema. Excelente, dramático, real e belo o seu “Nordestes”. Cada vez admiro mais o seu talento. Como um poema de tema tão árido pode ser transcendente? O seu é. Mais uma vez parabéns, poeta penúltimo.
Abraços. Stela Fonseca

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STELO QUEIROGA: Belos Nordestes nos deste, Soares Feitosa! Os comentários/análises são maravilhosos também!

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