Roberto Pontes
Poesia e
libertação em Roberto Pontes
Um dos temas mais
problemáticos da teoria literária contemporânea é a sobrevivência do
épico. Dada a natureza por essência histórica deste gênero, creio
que o problema não pode ser questionado antes de colocado num
determinado tempo. Deste modo, a falência e/ou apogeu do épico se
encontram vinculados à existência/inexistência de grandes
acontecimentos sociais que, numa certa fase da história humana,
ofereçam ou não temas de conteúdo épico.
Por que a Antigüidade e
o Renascimento foram tão fecundos neste gênero? Simplesmente: pela
ocorrência, nessas épocas, de fatos sociais de grandes implicações
humanas no sentido universal. Aplicada a tese ao momento presente, o
problema se resolve: não foi o épico que morreu como gênero
literário, mas um certo épico de linguagem inadequada ao nosso
tempo, um épico de conceituação sedimentada nos limites de uma
estética restrita ao ideário clássico – o pomposo e solene épico de
Homero, Virgílio, Camões, próprio para as sociedades que o gerararm
e consumiram, como só elas poderiam gerá-lo e consumí-lo.
A aparente falência do
épico em nossa época se explica por esta evidência: a instabilidade
do mundo contemporâneo – este pragmatismo materialesco a que nos
atiraram – por um lado nega ao escritor o tempo indispensável para o
labor épico (pelo menos, para o labor épico "a la antigua") e, por
outro lado, nega também ao leitor essa mesma parcela de tempo
necessário para o convívio com os longos poemas que requerem
exegese.
Mas o epos está
presente em qualquer tempo. E a nossa época é, sem talvez, a mais
fecunda de toda a história humana em essência épica: aí estão ainda
as radiações atômicas da última guerra mundial e das mais recentes
bombas de intimidação e exibição; aí estão as lutas de classe
propagando a revolução socialista por todo o globo; aí está o
surgimento deste vasto Terceiro Mundo para uma nova realidade
mundial; e aí está, por fim, a conquista do espaço, afirmando o
domínio do homem sobre o seu universo próximo. Tudo isso, junto ou
isolado, se oferece ao poeta contemporâneo como num desafio: um
desafio àquele que se proponha a deixar, numa obra de fôlego, uma
imagem poética deste tempo desesperado.
Pois bem: um desses
temas – o último – acaba de ser tratado, num longo poema, por um
jovem poeta cearense: Roberto Pontes, prêmio "Esso–Jornal de Letras"
de 1970 (com o ensaio Vanguarda Brasileira: Introdução e Tese), no
livro-poema Lições de Espaço: Teletipos, Módulos e Quânticas 1 ,
premiado pela Universidade Federal no mesmo ano.
Com certeza, podemos
vincular este poema à corrente vanguardista da poesia brasileira:
vanguarda pelo tema, vanguarda pela linguagem. Nisto, cabe notar que
Roberto não circunscreveu o fazer vanguardista ao problema da
linguagem: sendo vanguarda o que sugere um passo à frente – o que,
incorporando um dado novo ao patrimônio preexistente, aponte um rumo
a seguir – ele se situa como vanguardista menos numa perspectiva
lingüística do que numa perspectiva social.
Trabalhando
exclusivamente com a palavra, Roberto Pontes compreende que tem de
explorá-la ao máximo, para compensar a ausência da contribuição
não-solicitada ao figurativo. Por isso ele está sempre
experimentando, reinventando, neologizando a matéria-prima do verbo.
As múltiplas tendências, os vários processos, a polivalência usual
da palavra – todas as diretivas da vanguarada vocabular foram
amalgamadas em Lições de Espaço por um tenaz esforço pessoal
crítico-teórico-criativo em torno de poetas e movimentos
vanguardistas, donde resultou um poema antes de tudo
pesquisa-informação, atualizadas pela unidade de linguagem
conseguida do primeiro ao último verso.
Através da simples
leitura do poema é possível notar a familiaridade do autor com os
experimentalistas da tradição internacional, como Mallarmé, Pound,
Joyce, Cummings, Apollinaire, Maiacovski, ou com os da melhor
vertente nacional nacional, como Oswald de Andrade, Cassiano
Ricardo, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral, Haroldo de Campos,
Mário Chamie. Através dessa convergência de processos, o autor
destas lições de espaço integra-se, via experimentalismo com a
palavra, na determinante verbal da vanguarda brasileira – na mesma
perspectiva em que Guimarães Rosa também é vanguarda, na prosa.
Ele consegue reinventar
o épico através de uma inusitada contenção verbal, de uma fala
renovada, de um discurso condensado, na melhor terminologia
poundiana. Por isso, sendo os seus blocos de verso uma síntese da
cultura humana, eles requerem um nível receptor exigente. Mas é
exatamente no nível solicitado que se concentra a melhor poesia.
O poema está dividido
em três livros.
O primeiro apresenta,
em doze pequenos poemas, a problemática do espaço numa perspectiva
regional. O espaço é o Nordeste brasileiro. Os poemas vão abrindo,
pouco a pouco, um leque de problemas ecológicos, econômicos,
antropológicos e sociais de sua sofrida região, ao mesmo tempo em
que anatemiza a conivência que os conserva.
O poeta se define
diante dos problemas em apenas um texto, apesar de sempre curto,
apresentados numa linguagem tão estéril quanto a própria natureza
nordestina. Mais que em qualquer outra parte do poema, é neste
primeiro livro que se tem a perfeita adequação da linguagem ao tema
focalizado: através da aridez da linguagem chega-se a uma idéia da
aridez da vida que ela representa.
No poema
o piso não fabula a verdura
engastada na poeira e no salitre
nem mesmo as próprias raízes
desbebidas no lençol de anidro
o solo ingere as forras tessituras
dessangradas dos folículos e folhas
ele suga a sudorência do granito
seus produtos se arrimam na caliça
a terra não concebe o nobre cepo do cedro
cisma a figura inane do xerófito
o gozo estriado dos fibromas
e a indigência epitelial da citra (p.10)
o poeta descreve esse
espaço e revela a natureza do solo naquilo que ele pode germinar.
Mas esse solo não germina o que pode – "a terra não concebe" –
esterilizado pela incipiência da agricultura:
o fazedeiro
de safras
lavra a dor
e lavrador
lavra dores
dá cifras
e não decifra
a grandeza do lavrar (p.22)
uma agricultura
desinstrumentalizada, que explora mais o homem ("lavra a dor") do
que a terra, num processo onde o sertanejo, ignorante de sua função
social ("dá cifras/ e não decifra/ a grandeza do lavrar"), é o forte
que, antes de tudo, ainda depende da chuva, preso a um sistema
medievalizado que lhe proporciona uma subsistência de conveniência,
como na expressiva síntese práxis-concretista destes dois
versos-palavra:
salário
solário (p.18)
O segundo livro
apresenta, em quarenta poemas de seis versos em média, a
configuração do espaço numa perspectiva planetária. O espaço é a
Terra. E, para entendê-lo, o poeta ressalta o uso que o homem faz do
raciocínio, da inteligência, da sensibilidade e do seu poder de
criação. Com o espaço circundante compreendido, vem a apreensão do
universo – tônica do segundo livro. E, numa linguagem agora lírica,
o poeta tenta uma definição do planeta, apoiado em informações
científicas:
o universo
tem seu porte e suporte
em elétrons nêutrons prótons
é urgência ao poema
a fissão da massa atômica
a micro física quântica
os princípia matemática
tem o limite dos cardos
cortantes da metafísica
estrela sistema cosmos
o fascínio da galáxia
o silêncio da palavra
o carpir em abstrato
cem mil milhares de sóis
igual lote de anos-luz
o poeta assim disserta
premissas e teoremas
de sua esfera anilada
entre parábolas e elipses
que vagam por aí em expansão
burila zumbidos de metal (p. 37-40)
Nesse livro, nos
deparamos com freqüentes alusões à História Antiga, como (p.69):
egeus, pirâmides, acrópoles; à ciência: não euclidiana (p. 42),
scutum sobiesky (p. 43), mecânica do vôo (p. 73); também à
tecnologia: bússola (p. 56); artifício de pólvora (p. 56), satélites
(p. 69); e à arte: bizantino (p. 70), barroco (p. 70), pisa (p. 71)
etc. – enfim, uma focalização globalizante da cultura humana
acumulada em tantos séculos de civilização. Para essa compreensão do
nosso espaço vital, o poeta tem o homem e seus produtos como ponto
de referência: como se dissesse que o universo só tem sentido se o
seu centro deixar de ser a nossa melhor tradição humanista. O
segundo livro persegue, pois, uma re-humanização do universo.
Finalmente, o terceiro:
em dezoito teletipos (notícias informativas da conquista do cosmo,
em ordem cronológica), três módulos (as três etapas da conquista) e
cinco quânticas (cânticos – em transsemia com o vocábulo "quanta" da
Física incorporado à poética como sinônimo de "cântico"ou "cantiga"
– em louvor a esses feitos), nesses vinte e seis minipoemas ele
focaliza o espaço numa perspectiva cósmica. O espaço agora é o
vácuo, o éter, o infinito. E o poeta narra, como se estivesse dentro
de todos os foguetes e satélites já lançados ao cosmo, toda a
escalada sideral desde Gagarin:
hoje eclodiu a chama
o oriente cavalga o cosmos
seu cavalo sputnik
vai sem chouto
a 7 mil km por segundo
rompe a barra magnética
o cinto atmosférico
abre a cortina do espectro
e proclama nova era
(teletipo 1957, p.82)
até Armstrong:
mar da tranqüilidade
face a muitos sintomas
e sinais de iniludível crescimento
não mais se pode ocultar
a lua esteja grávida
de gente
(teletipo 1969, p.103)
Roberto Pontes escolheu um tema pertinente a e representativo de
nossa época. Talvez o maior feito de toda a História humana,
realizado em parceria pelo homem oriental e ocidental: um prelúdio
ao comportamento político do homem futuro?
A conquista do espaço e dos planetas. A chegada do homem à lua. Um
sonho de tantos milênios, desde o mitológico Ícaro até Santos
Dummont, passando por Júlio Verne. Não interessa a carga política do
feito, nem o teatralismo de algumas aventuras, nem a precariedade
daquela parceria. O poeta vê no fato um significado mais grave: a
inauguração da Era Cósmica, o princípio de um tão questionado
planetarismo. "Hoje é o amanhã do ontem que se foi"– diz ele (p.
104). O homem em nova encruzilhada diante da História. Mas, para
contrabalançar o euforismo do último livro (o homem de corpo-e-alma
no espaço) e negar o anti-humanismo de um elitismo tecnocrata (o
deslumbramento romântico pelas "viagens" das superpotências), o
poeta abriu o seu poema com um grito de protesto contra o
subdesenvolvimento da sua região – o homem com o solado do pé sobre
o chão calcinado e com as mãos feridas na labuta diária. Não só por
isso: também para questionar o cibernético sonho macluhaniano do
vilarejo universal. Pois o mundo de hoje só é uma aldeia quando a
Intelsat mobiliza o seu sofisticado sistema de telecomunicações para
mostrar à humanidade... uma partida de futebol, a missa romana do
galo, a queda do astronauta na lua. Mas onde está o grosso da
população mundial quando "os grandes"se reúnem, fora do alcance das
câmaras de tevê, para decidir os destinos dos povos? Não: o grosso
da vida humana de hoje não se compõe de shows. E se desenrola noutro
palco, multifragmentado. Quer dizer: o poeta quis demonstrar – e
conseguiu – que, em pleno desabrochar da idade do Cosmo, a
massificação conserva, em nosso planeta, seres humanos e situações
sociais contemporâneos da Idade da Pedra.
Por tudo isso, seu livro é um marco: um documento que reinventa a
linguagem épica. O último poema do livro
cavalgar na luz
cavalgar na luz
retorno ao rio do tempo
onde a vida cresce e diminui
o meu transporte é a velocidade
e sou um rei
a cavalgar na luz
a cavalgar na luz
sou imortal e tudo sei
faço parar meu corpo no espaço
controlo a vida na velocidade
sou cavaleiro
a cavalgar na luz
a cavalgar na luz
bebo verdes ondas de energia
há um sol diverso em minhas veias
pois reconheço meus ecos de origem
e a minha voz
a cavalgar na luz
a cavalgar na luz
sou imortal e tudo posso
até mesmo lançar o maior passo
ou retornar ao ponto de onde vim
ou nem sequer saber se vivo ou se morri
a cavalgar na luz
a cavalgar na luz
(finito/infinito, p. 107)
parece interromper bruscamente e fugir do tema abordado. Parece
indicar que o homem não quer apenas o espaço. Não deseja dominar o
cosmo, mas triunfar sobre o finito e o infinito, a fim de resolver o
enigma da pedra filosofal, da fonte da juventude: a fusão com os
elementos naturais, a paralisação do tempo ao atingir-se a
velocidade da luz para a superação da própria morte. Seria a
libertação total – não a simples libertação social de barreiras
econômicas ou políticas, mas a libertação material de barreiras
físicas ou naturais, que o homem pode operar quando aprender "a
cavalgar na luz", onde "sou imortal e tudo posso", ou seja: quando o
homem se tornar humano, senhor de seu próprio destino. Utopia? A
dimensão maior da História sempre foi a de uma Utopia.
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Poeta de expressão forte e fácil, Roberto Pontes transmite em Lições
de Espaço a mais vasta mensagem de humanismo da poesia cearense
contemporânea e, memsmo, da poesia brasileira.
O livro está aí, circulando restritamente e quase anônimo em edição
decorrente do prêmio. E porque, com toda certeza, acrescentará uma
parcela ao nosso pequeno patrimônio poético, ele já nasce exigindo
uma edição nacional .2
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1 PONTES, Roberto. Lições de Espaço – Teletipos, Módulos e
Quânticas. Fortaleza: Imprensa Universitária, 1971.
2 Este texto aparece aqui em sua terceira redação: nas duas últimas
( a segunda para incorporação como prefácio ao poema), agradeço a
colaboração do próprio poeta, pelos muitos diálogos que ajudaram no
esclarecimento de algumas passagens.
PEDRO LYRA é Doutor em Poética. Professor de Poética na Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Professor-visitante em universidades de
Portugal, Itália, França e Alemanha. Poeta, crítico e ensaísta. É
autor de Sombras (1967), Doramor (1969), Decisão (1983/85), Desafio
(1991), Contágio (1993), Errância (1996), todos de poesia. Livros de
crítica: Poesia Cearense e Realidade Atual (1975/81), O Real no
Poético (1980), O Dilema Ideológico de Camões e Pessoa (1985), O
Real no Poético II (1987). Livros de ensaio: Utiludismo (1976/82),
Literatura e Ideologia (1979/93); Coceito de Poesia (1986/92).
Organizador de Sincretismo: A Poesia da Geração 60 (1995).
Leia obra poética de Pedro Lyra
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