Soares Feitosa
O sertão,
de Peixoto Júnior
Segundo Genuino
Sales, meu amigo, professor e contista dos bons, a verdadeira
educação deveria iniciar-se pelo sertão. Não apenas na cidade do
interior, mas lá na brenha propriamente dita. Um sovaco de serra,
daqueles boqueirões paraibanos onde se criou meu outro amigo Pedro
Nunes Filho, historiador e memorialista do Recife; na chapada do
Araripe, de José Peixoto Júnior; nos sertões de Santa
Quitéria-Monsenhor Tabosa, meus; nos aclives de Pedro II, Piauí, de
Genuino — que tanto faz, que este país Nordestes é o mesmo e único.
Criado brabo, telúrico e chãos, em pleno chão da Terra. E no lombo
dos bichos. E no vôo dos Céus.
Ainda segundo
Genuíno, teria o menino que ficar lá mesmo nos matos, à luz do
querosene, lamparina, onde seria alfabetizado na cultura clássica,
grego e latim. Em paralelo, o chão lhe daria a terra-Terra; o
estudo, de mestre-escola, os ares. Finalmente, digamos, aos 12 ou 13
anos, o jovenzinho viria para a cidade grande. E, obviamente, a
partir de suas raízes de chão, só assim estaria preparado para
“entender” esse mundaréu tão estranho que é a pólis que nada tem de
pólis.
— Bote outra,
mestre Genuino! — disse-lhe. Ele botou e brindamos aos matos, aos
pássaros, à vida rude de campear e correr nos cavalos de pau.
Tudo isto é o que
me vem a propósito do livro de Peixoto Júnior, Sobre o mundo,
Thesauros Editora, 2001, Brasília. Peixoto Júnior mistura o
biográfico, os mitos, as cantorias, histórias de bois, da bagaceira
do engenho de rapadura (e, por favor, se no céu não tiver engenho de
rapadura, até estou meio diabético, mas dispenso a minha vaga por
lá), das feiras e quermeses, de cegos e aleijados, de coronéis e
suas manteúdas, de mulheres “gaieiras” e outras não tão santas —
tudo no linguajar da terra-chão.
Lendo agora o
Peixoto Júnior, em pleno dialeto “nordestino”, foi que me pude
penitenciar perante Guimarães Rosa em quem sempre critiquei a
invenção de um outro idioma que não o português. Perdão, seu Rosa!
As suas histórias e as de Peixoto não teriam maior graça se não se
assumissem de nossa fala ancestral, com expressões seiscentistas,
direto de um Portugal primitivo aprisionado nos grotões da pátria, e
das corruptelas que nos levam, lá, a chamar neblina de librina...
Depois, as
colocações de raro sabor, de profundo saber: “Os bens de fôlego
em quantidade grande espalhavam-se pela extensa área dos bens de
raiz”. Ora, quem fala tão bonito assim é o livro de Josué nos
informando que aqueles loucos, do deserto, tão parecidos com nós
outros deste deserto imenso, o semi-árido nordestino, haviam passado
a fio de espada tudo aquilo que respirava... Os bens de fôlego e
seus espelhos embaciados. Está morto, compadre! — assim dizemos,
aqui, dos caídos.
Noutra passagem,
Peixoto Júnior nos fala de uns céus... “Construiu na beira do
talhado, donde a vista lanceava sobre o sertão cinzento, verde nas
águas quando o mato acorda, sertão que fica, na lonjura, azulzinho
azulzinho até se mudar em céu”. Bom, isto só para quem é de lá é
que há de entender, refrescar, benzer, lembrar. E prossegue:
“Júlio-preto parecia ter intimidade com bicho de pêlo, de pena ou de
ferrão e possuir o dom de rastejar”. E as historinhas de mocós
(um rato selvagem, saborosíssimo de que também se aproveita o coalho
para fazer o melhor queijo da região) e seus rastejos nos lajedos de
pedra lisa —persignando-se na hora de morrer... tome-lhe chumbo, meu
compadre mocó! Se é cruel? É a lei, de lá.
A descrição
agronômica da terra fértil: já conhecia uma outra, de um coroné
pernambucano, que terra fértil é aquela em que morrem gentes,
muitas, de morte brigada, que ninguém é doido para brigar por terra
magra nem por muié feia. Peixoto Júnior nos ensina esta outra:
“Já se saía com o gado quase alcançando o lombo da Baixa, onde os
paus nasceram muito perto um dos outros”. Ah, Peixoto, um outro
cantador, este aqui, noutro dia escrevera: “eu apertei a casca
limosa da floresta vasta,/ quando meus pés chiaram lama entre os
dedos tarsos,/ quando meu lombo se encharcou da chuva rápida
[1]” —, não, Peixoto, este outro cantador, este seu velho amigo
aqui, falava do Amazonas, numa homenagem a Thiago de Melo, mas terra
fértil deve ser assim mesmo como você descreve.
Ainda me lembro, um
dia muito distante, descia na garupa da burra do tio Vicente, que
Deus o tenha em Sua glória, os gruteões da serra. Era lá nos sovacos
da Girita, Serra das Matas, a caminho da casa dos avós, Bom-Jardim,
Joaquim e Francisca, naquele tempo. Chegava-se, súbito, num lugar
moitoso, ensombrado e assombrado, um filete d’água onde a burra
tomava das rédeas para beber. Ali os paus cresciam linheiros,
pipinando os chãos de tantos paus, as vergônteas do mameleiro tão
distintas, esgueiradas aos céus, tão diferentes daquela garrancheira
de lá do sertão de favelas e galheiras de baixo ventre. Era aquilo
um fértil, de úbere e chã, de chão profundo e escuros céus de nuvens
fartas. Ah, Peixoto, certamente que a fartura da Baixa de que você
fala é a mesma desta outra, minha, de lá, dos outeiros da Serra das
Matas... (Será que lá, nos meus, ainda correm águas?). Melhor que
nem me contem.
E Peixoto nos conta
das lendas: “Dizem que morcego é passarinho do diabo. Esse “rato
cego” tomara conta da casa-grande, havia tempo. Enchera-a de sua
inhaca pestilenta. O ar fedia. Vôos fantasmas ao som de gritinho,
considerados por Júlio risadas do maldito”.
De que nos falta o
livro de Peixoto? Com toda certeza de uma boa sova no próprio
Peixoto! Como é que se atreve com tanta verve do bem-contar a nos
servir um livro magro de pouco mais de 100 páginas?!
Meu caro Peixoto, o
mesmo anjo que um dia pegou o Profeta de peia e exigiu que ele
profetizasse; que também pegou São Jerônimo e exigiu que traduzisse
o Livro em língua do vulgo e não para os eruditos — foi assim que
tivemos o Corão e a Vulgata —, que ele também te pegue de peia e te
obrigue a nos dar um livro de pelo menos umas 600 folhas de espiar e
cantar — Um sertão, vereda de grande olhar — é o que este teu colega
exige de ti. Enquanto não vem, guardo este, de cabeceira e leitura
amena. Louvado seja!
[1] Soares Feitosa, in
Thiago
SOARES FEITOSA, Francisco José, Ceará, 1944, edita o Jornal de
Poesia:
www.jornaldepoesia.jor.br
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