Gustavo Felicíssimo
A
POESIA NATURAL DE VALDELICE PINHEIRO
Os homens são iguais em
direito, não em qualidade. Esse fato, além das características
inatas de cada um, é que diferencia os seres. Assim acontece também
com o poeta, e nesse caso, o que diferencia um de outro, são as suas
vivências, incluindo-se também, de maneira específica, as suas
leituras, seus estudos, seu cabedal de informações e o seu olhar
sobre as questões fundamentais da humanidade.
Como disse Mário de Andrade,
“o poeta é um fatalizado”, dessa forma, a ele é negado o
livre-arbítrio, pois, ou se nasce poeta ou nunca se chegará a sê-lo.
Foi o que aconteceu com
Valdelice Pinheiro, uma poetisa natural, como os aedos, que
muitos séculos antes de se adaptar a escrita fenícia à língua grega
e de se criar assim esse admirável instrumento de comunicação, que é
o alfabeto, já compunham e sabiam de cor muitas canções. Mas ao
contrário destes, Valdelice cantou as coisas simples
da vida, seus anseios e angústias, não os feitos, de uma maneira
acessível. Sobre isso ela mesma afirma que sua poesia é “toda
nascida de uma linguagem cotidiana, sem rebuscos.” E desse mpodo ela
canta: Os vagalumes desta noite/ iluminam minha noite/ e me
emprestam/ sua luz e suas asas./Então, feliz,/ a estrada clareada,/
eu vou te ver.
Valdelice
sabia que um poema necessita de uma sequência lógica, mas em seus
poemas as palavras têm o seu sentido exato, quase dicionarizado,
como no poema acima. Nele, a palavra “noite” é a noite mesmo, e por
conta das imagens suscitadas quase podemos perceber a mulher
caminhando sobre uma estrada iluminada por vaga-lumes.
Sabe-se, porem, que nenhum poema vive em estado de pureza, que
nenhum poema é um objeto intocável ao ponto de explicar-se a si
próprio. Mas nos versos abaixo, Valdelice Pinheiro parece
jogar em nossos olhos estas demandas: O que é real? Até que ponto
podemos decifrar o mundo, o ser e as coisas através do universo
poético? Até que ponto a linguagem de um poema e as coisas do mundo
são realidades conflitantes? Ou, caso não sejam, será que vemos
nesse mundo transfigurado pela palavra a sua essência? Como então,
senhores, lançar de volta os olhos para as coisas sem levar em conta
sua decifração através da leitura?
Entre a inocência/ dos dedos
do menino/ e o revólver/ na mão do assassino,/ há sempre um espaço/
de nada,/ um trágico destino./ Nem escola,/ nem casa,/ nem terra,/
nem pão./ Quando a inocência/ dos dedos do menino/ se quebra/ na mão
engatilhada/ do assassino,/ perde-se a paz,/ porque um homem
escapou/ de seu menino.
De algum modo essas
ocorrências nas palavras, este efeito que as faz refletir sobre si
mesmas, estão dizendo para nós que o mundo pode significar outra
coisa; e essa voz impertinente nos coloca nas frestas do mundo, onde
o mundo deixa de ser o que é para se tornar linguagem, mas que assim
fazendo restaura seu sentido pleno.
Lamenta-se apenas que a
autora, ao longo da sua vivência com a escrita não tivesse tido
passagens pelo verso medido, não para perceber o que nele pulsa, mas
pelo inegável crescimento que o estudo e o uso sistemático da
versificação proporcionam ao autor, afinal, não são os 14 versos que
fazem um soneto.
Os contestadores desta
observação podem argumentar que tal linguagem já teria sido
derrubada pelo modernismo, no entanto, a abertura proporcionada pela
geração de 22 também se ritualizou e possibilitou o surgimento de um
sem fim de poetas cujo pressuposto era o desconhecimento de tudo que
os precedeu, como se a não utilização do verso medido representasse
algum respaldo de qualidade para o verso chamado livre, que de livre
não tem coisa alguma, pois um poema jamais se viu livre da forma, e
sim da fôrma que a abriga desde que o mundo é mundo.
Mas aí são outros
quinhentos...
Artigo publicado originalmente
no caderno Banda B do Jornal Agora - Itabuna/Ba
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